domingo, 12 de setembro de 2010

A Menina Má de Mario Vargas Llosa e de Todos Nós

Mario Vargas Llosa é um escritor genial, dotado de quase todas as virtudes requeridas de um escritor. Todavia, acumula uma versatilidade no uso dos ingredientes que tornam um romance numa obra de envergadura dramática. Em Travessuras da Menina Má (2006, Editora Objetiva, Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht) Llosa consegue escrever sobre um tema - ou será uma idéia? - grandioso, mas que se enquadra na natural estreiteza da caracterização de cada personagem. Uma tarefa nada fácil e que pressiona o escritor a cada parágrafo, sob o risco e a sanção de que perca a necessária tensão da escrita e da idéia que prende o leitor. Neste romance, Mario Vargas Llosa conta em primeira pessoa uma história de amor e desamor entre um tradutor (Ricardo Somocurcio) e a sua fugidia amada ("Menina Má).
Confesso que este livro permaneceu em minhas prateleiras por pelo menos três anos. Fiquei entre a falta de tempo para me ocupar da leitura e a tentação de experimentar mais uma vez a grandeza de Llosa. Resolvi pegar o livro e, pouco a pouco, nas noites e madrugadas, preencher a minha insônia. Resultado: fui dragado pela leitura do livre e pela sua provocação nada gratuita. Caiu como uma luva, como um encontro entre os olhos daqueles que desejam ser desejados.
Tão logo comecei a ler as Travessuras lembrei-me da obra A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho. Neste livro, Dumas conta-nos sobre a frivolidade social típica da segunda metade do século XIX na França quando a expansão econômica da burguesia espalhava-se pelos costumes sociais da época. A cortesã Marguerite Gautier utiliza-se do amor para obter dos pares sociais o reconhecimento. De muitas formas, seu intento se realiza sob a complacência dos que a rejeitavam.  Por sua vez, Armand, parte da burguesia de então, é o homem apaixonado que busca enquadrar os seus sentimentos ao status quo do qual é vítima e algoz ao mesmo tempo. Não há compatibilidade exterior entre as ambições e o amor de cada um deles. O ponto é desencontro e não o encontro.
Mario Vargas Llosa em Travessuras  faz uma opção ainda mais arrojada do meu ponto de vista. A incompatibilidade entre a menina má e Ricardo é interior. O amor é uma impossibilidade inexplicável do ponto de vista dela e é algo absolutamente consolidado no coração dele. A cada encontro amoroso por diversas cidades do mundo (Paris, Londres, Tóquio, etc.) há um correspondente desencontro destas almas. A pergunta mais óbvia é: por que menina má você não é capaz de amar? A resposta não vem e não vem...
Nestes nossos tempos não é raro e sequer difícil cairmos no abismo da absoluta descrença no Amor. Refiro-me ao tema, genérica (como ideal humano) e especificamente (o amor de um homem por uma mulher). Llosa tece um enredo espetacular para estontear os amantes e causar açodamento aos descrentes do cupido. Usa o amor de um homem por uma mulher para mostrar que talvez tenhamos mais razões para duvidar que acreditar. E vice-versa.
O interessante é que nenhum sofrimento de Ricardo diante dos desprezos da menina má interrompe a capacidade dele de prosperar e persegui-la, mesmo que quem o procure seja ela. As suas declarações de amor são tidas por ela como algo brega. O fato é que em lugar destas declarações bregas a menina má nada coloca. Há um completo vazio existencial. Talvez ela saiba que o amor é assim mesmo: parece uma entrega sem charme, sem a aparência lustrada dos tempos modernos, sem os cálculos em relação às palavras e aos interesses, sem o sentimento prévio das vantagens que se retirará do outro, o dinheiro, a vaidade, a ingratidão, etc....
A menina má não cede: ela irá gozar os bons momentos com Ricardo e o descartará sem mito, censura ou candura. Não consegue amá-lo, nem a ele e nem a ninguém. Em cada amante encontra um interesse e o extrai, seja qual for o custo, seja o seu corpo sedutor ou a sua capacidade camaleônica de saber se portar perante cada um. Fatos e sinas. Tristes fatos, tristes sinas, diria Ricardo Somocurcio.
Se em Dumas temos o arquétipo do amor pequeno-burguês em Mario Vargas Llosa temos a essência eterna do Amor, vivida por Ricardo, e a inconsciência construída da menina má que não quer amar por pura conveniência. Parece duro, mas prestemos atenção: o mundo é isto mesmo. Descarta-se não apenas o Amor, mas a própria possibilidade de que ele possa persistir. É preciso trabalhar por ele, mas há muito mais que é priorizado: das coisas frívolas do cotidiano até a ambição de conseguir o que se quer, seja qual for o custo a se tomar. Ricardo, ao contrário do personagem de Dumas (Armand), não é algoz. É a vítima de sua própria crença. É daqueles que acham que a sua bondade para com o Amor há de recompensar. Não recompensa. Não há mal entendidos entre o amante Ricardo e a frieza da menina má. Tudo parece claro a cada encontro, mesmo que existam mistérios,  magnificamente bem explorados pelo escritor peruano. O grande equívoco do romance já é dado pela visão antagônica dos dois sobre o Amor e o equívoco dela que seja possível viver sem ele. Resta saber quais dos dois é o mais lúcido.
Tenho a impressão que os leitores deste romance optam por Ricardo na leitura, mas talvez muitos ajam como a menina má. É claro que isto é uma presunção e tanto, mesmo que os efeitos sobre as relações humanas estejam despejadas por aí, entre tantos desencontros amorosos. Bem, como disse, é uma presunção. Para terminar deixo um trecho das Cartas a um Jovem Poeta  de Rainer Maria Rilke cuja essência tivesse penetrado a alma da menina má talvez o amor merecesse melhor fortuna:


"Parece-nos que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias, porque já não ouvimos viver os nossos sentimentos que nos tornaram estranhos..."