domingo, 24 de outubro de 2010

Os Dois Outonos do Momento

Nestes tempos de outono no hemisfério norte, veio a releitura de O Outono do Patriarca (Editora Record, tradução de Remy Gorga, Filho, 15ª edição, 2003). Neste texto de 1975 o Nobel Gabriel Garcia Marquez refaz o seu estilo realista-fantástico para colocar de novo o dedo na ferida social do homem, em especial o latino-americano. Trata-se de uma reflexão implacável sobre o poder, a corrupção, as práticas delirantes e a loucura que leva o homem a caminhar como um rei entre os destroços sócio-políticos da comunidade da qual ele próprio emerge. Ora, nada mais atual neste turno de eleições no Brasil quando a leitura dos jornais nos coloca dentro de uma bolha de vidro da qual não conseguimos discernir onde está a verdade dos fatos, mas, que de outro lado, sabemos que sejam quais forem os fatos, lá está intacta a verdade. Nua e crua.

Li este livro há cerca de dez anos. Resolvi relê-lo para verificar se conseguia escapar de certa desesperança que bate à porta quando Marquez escreve sobre a realidade latino-americana. Fiquei novamente estonteado pelo estilo belo e poético do escritor colombiano. Depois de ler As Travessuras da Menina Má do rival pessoal de Marquez, o também Nobel Mario Vargas Llosa, considero a hipótese de me debruçar por entre livros menos substanciosos. Pelo menos por algumas semanas. De ilusão também se vive, não é mesmo?
Também é outono em Nova York. Viver este outono é tarefa bem mais suave e romântica, mesmo que nos intervalos das andanças por Manhattan estejamos a carregar o livro e a lê-lo nos cafés mais charmosos do Soho. Nova York para mim é uma lição de paciência e perseverança, por entre uma tardia esperança nascida da capacidade do ser humano em se superar. Muito seduz e quase tudo nos conduz a terrenos arqueológicos do nosso interior. O jazz do Soho e do lendário Blue Note, o jantar dos pequeninos bistrôs dos arredores das avenidas com numeração mais baixa, os notáveis restaurantes gregos que tanto amo, os shows surpreendentes de velhos ícones e uma inesperada conversa com o ator Jeff Bridges. Nada melhor. Ademais botar nos ouvidos o recém-adquirido iphone e escutar Ella Fitzgerald, o velho Sinatra e Chet Baker, cada um no seu sedutor estilo, cantando ou tocando Autumm in New York. É tudo transbordante e magnífico. Podemos apreciar muito além das aparências do consumo desenfreado e dos friorentos cantos do Central Park. Sorte. Muita sorte. Estar vivo e sóbrio (nem sempre!) para sentir tudo isto. Meio renovado e meio moído. É a vida. Estes dois outonos preenchem a minha vida. Por aqui, fico esperando o verão e seu sol belo e quente. Com a benção de Deus.


Deixo aos amigos um poema que escrevi há dois anos, mas que faz parte de meu centenário interior. Era inverno. Um longo inverno que ainda não acabou.

A Grande Maçã


Se tens as cores e contornos da maçã
Se és uma pequena cidade azul
Ou, ainda, se és o cinza de teus edifícios
Pouco sei ou hei de saber.

Sinto-me possuído de minhas sensações e sentimentos neste mundaréu
Que preenchem uma pequena ilha, assuntada por um rio e um escondido mar
Não vejo a altura dos andares dos prédios por quanto estes despencam
Não vejo as bandeirolas de seus hotéis – são tantas!
Tudo sai dos múltiplos ventres de tuas avenidas e ruas
Todas tão simétricas quanto desigual é tua gente
Como esquecido, sinto-me às vezes em catacumbas.
Só escuto ecos como se estes resvalassem em gargantas
Não há sons em teus ventres, apenas murmúrios
Incompreensíveis, diga-se
Tudo a se derramar...
Até as pontes que pretensiosamente tentam ligar terra a tanta terra
Vãos que carecem de vida e sorrateiros protegem os desprotegidos
Gargântulas estão por todo lado
A consumir tudo ao redor
Sem piedade ou qualquer graça
Da desgraça também se alimenta
Pantagruel incomensuravelmente insaciável
Que draga gente
Que rumina variados vegetais e remédios
Gente, gente, gente e gente de toda raça, de toda terra
Cidade nua que se veste em cada esquina
De sabores confusos e olfatos dúbios
De fedores e esplendores
De longos corredores e museus nus e revestidos
Placas comemorativas e nomes, nomes, nomes, nomes
Quantos beneméricos pode ter uma cidade?
Quanto dinheiro pode ter um benemérito?
Quanta benemerência as carências de tanta gente merecem?
Tantas vias preenchidas de fumaça
Mulheres secas, mulheres cheias, mulheres negras e incolores
De seios pequeninos ou fartos a alimentar sonhos
E tão poucas crianças
Crianças pálidas de pálidos sorrisos
Por entre praças se entrelaçam com pouca mata
Ah a mata! Aquela mata central
Tal qual uma vulva invulgar
Infértil, mesmo que se propague por toda a cidade
De resto, aquela mata que justifica tanto cimento,
Tanto asfalto,
Tanto descaso.
Não há deuses por lá, mas há templos
Resvala certa espiritualidade cheia de esperanças e devaneios
Sem realizações, sem registros, sem livros sagrados e sem cemitérios
Tudo é desejo naquela cidade
Desejo do bem, da glória, da vitória, da saúde e do dinheiro
Tudo é desejo e algum sonho
Sonhar por entre céus sem horizontes
Nas suas lojas, nas suas bodegas, nas mesas de bares
E tudo jaz.
E tudo jazz
Com seus negros atléticos e frenéticos
Seus expectadores e esterótipos
A comida gorda que se esparrama por entre as mãos negras de negras serventes
Aquela batida metronômica, nove notas, nove horas
(Nove?) músicos
A música
De um povo sem nação, de uma terra sem governo e de uma nação sem língua
Jargões e mais jargões
Palavras e mais palavras
Sacudidas nas bocas cheias que expelem sabores confusos pelos trens e salões
É muito cheiro, é muito bafo, é muita saliva
E come, come e come
E bebe, bebe e bebe
E fala, fala e fala
Ninguém escuta
Japonês, tailandês, norueguês, português, chinês, francês, inglês
Clichês, clichês, clichês e clichês
Ideologias e mais ideologias
A justificar quase tudo, mesmo que não haja totalidade.
Tantas luzes, raios e trovões travestidos de canhões
Será a Cidade das Luzes?
Quanta filosofia em vão...


Existem refúgios em meio aquelas ruas e avenidas.
Tantos refugiados
Fugitivos daquela sensação evocada em cada esquina
De que há tantos lugares para ir
Melhor esperar
Por aquilo que não se sabe, não se vê e não se sente
Apenas existe
Furtivamente.

New York, Dezembro 2008