quarta-feira, 17 de novembro de 2010

"José e Pilar": Um filme (não apenas) Sobre o Amor

Quando dizemos a outrem que assistimos a um documentário vem logo a pergunta: sobre o que ou quem era o documentário? Se fosse um filme de ficção a pergunta recairia sobre o desenrrolar do roteiro, os personagens, os atores, etc.
José e Pilar (2010,Brasil/Portugal, dirigido por Miguel Gonçalves Mendes) mostra a intimidade do casal José Saramago e Pilar del Rio, em suas viagens internacionais e, sobretudo, na Ilha de Lanzarote na Espanha onde o escritor português morou por longo período e ali morreu. O filme demorou três anos para ser concluído, entre a captação das imagens e diálogos e a correspondente edição. Foram mais de 200 horas de gravação.
Confesso que eu não saberia dizer exatamente sobre o que é o documentário. Digo isto de maneira bastante singela e sem a pretensão de desqualificar o filme. Ao contrário: há todo um frescor nesta história toda, uma intimidade bem retratada e sem esnobismos estéticos. O diretor do filme, Miguel Mendes, em entrevista ao jornalista Luiz Zanin do Estadão em junho deste ano, diz que o "este filme é sobre o amor que se estabeleceu entre José Saramago e Pilar Del Rio". Maria del Pilar del Rio Sánchez é a jornalista espanhola com quem José Saramago casou-se em 1988 e com ela permaneceu até a sua morte em junho deste ano. Bom, de fato há uma boa dose de amor na relação mostrada no filme entre José Saramago e a esposa dedicada. Todavia, parece-me que reduzir o filme a esta relação seria empobrecê-lo. Não é o caso. 
O documentário não tem a menor pretensão de situar o autor em relação à sua obra criadora, apenas mostra a banalidade da vida de um Nobel em sua casa, em suas viagens e (também) com sua esposa. Ela sim protagoniza uma relação direta entre a sua obra (organizar a vida do escritor português) e a sua vida (a intimidade litarária,inteligente e cheia de opiniões). Frente à figura de Pilar, José não parece um vice-rei. Parece mais um súdito que contempla a vida imaginativa, enquanto Pilar coloca o cotidiano frente-a-frente com aquelas imensas lentes dos óculos de Saramago. O feijão e o sonho. É o que me parece.
De outro lado, há um momento literariamente interessante que é quando o escritor português inicia e termina (depois de uma demorada doença e convalescença) o livro "A Viagem do Elefante." Há poucas e boas cenas que retratam o ato sofredor, intenso e torturoso da criação literária. Não afirmaria que é o ponto alto do filme, mesmo porque não consigo identificar um ponto alto neste filme que conta uma história plana, mesmo que cheia de significados.
Quanto ao escritor, não há brilho propriamente nas imagens captadas. O que vi foram suas velhas obsessões com a morte, a insignificância do ser humano, com Deus e com Portugal. Saramago destila novas frases sobre estes temas, mas a temática já é por demais conhecida. Acho até mesmo que por detrás de suas opiniões há umas reticências de vaidade extraída de sua sabedoria. Sei lá! Foi o que me pareceu. Posso estar errado, é claro!
Em certo momento, fiquei comovido quando Saramago (que estava aqui no Brasil) diz que se pudesse pedir algo ele pediria tempo. O tempo necessário para continuar fazendo suas coisas e obras e, da mesma forma, para estar com Pilar. O tempo sempre foi uma obsessão para mim. Trato-o por meio de formas poéticas porquanto eu não consigo entendê-lo racionalmente. Para Saramago, o tempo parece fazer parte da insignificância do mundo e do homem. Para mim, o tempo me parece uma espécie de castigo de Deus, uma cerca de fazenda, para nos fazer relevante perante o mundo. Saramago diz que Homero não sobreviverá ao tempo. Eu digo que Homero apenas existiu porque o tempo assim permitiu. Mas, isto tudo é outra coisa. Não é o caso...
Voltemos ao filme. Ao contrário de muitas pessoas, especialmente as mais "cultas e privilegiadas", eu tenho particular atração pelas declarações de amor. Refiro-me não aquelas que estão contidas na literatura, em particular, ou nas artes, em geral. Digo daquelas em que as pessoas, famosas ou não, olham nos olhos das outras e declaram o seu amor. Considero este momento raro. Isto em função de sua banalização, diga-se. E é este exatamente o desafio dos amantes: puxar do fundo d´alma aquilo que dizem ser o Amor, sem cair no banal, no piegas ou no fingimento ocasional. De alguma forma indescritível, José e Pilar conseguem traduzir em uma declaração, silenciosa ou não, o amor que sentem um pelo outro. Isto é muito belo e vale a pena ver e sentir. Mesmo para aqueles que se julgam céticos como o escritor português. Por isto mesmo acho que Homero vive...

domingo, 14 de novembro de 2010

"Contos da Era Dourada" Trata de Uma Era Trágica.

Recentemente repassei trechos da magnífica biografia política de Josef Stálin, escrita pelo consagrado escritor marxista Isaac Deutscher,(1907-1967) que além de sua famosa obra sobre Stálin também biografou  LéonTrotsky e fez reputados ensaios sobre o Império Soviético. Um trecho me chamou à atenção em especial. Fazia referência ao escritor Maxim Gorki (1868-1936), famoso escritor e revolucionário, companheiro de primeira hora de Lênin no seu projeto de instalação do regime comunista na Rússia. A certa altura, depois da ascensão de Stálin ao poder , Gorki passou a criticá-lo por meio de seu jornal Novaia Jizn. A resposta de Stalin foi feroz, vulgar e insultante. Em discurso perante seus correligionários afirmou literalmente:
"A revolução russa derrubou muitas autoridades. Seu poder se expressa, entre outras coisas, no fato de que não se dobra diante de "grandes nomes". A revolução recrutou-os a seu serviço ou reduziu-os a nada se não desejavam a aprender com ela." (O grifo é meu).
O filme romeno Contos da Era Dourada (2010, dirigido por cinco diretores romenos, Cristian Mungiu, Hanno Höfer, Constantin Popescu, Ioana Uricaru e Razvan Marculescu) trata exatamente da redução ao nada sobre o qual pregou Stalin. Os contos são uma criação que parece exótica sobre a realidade da Romênia nos anos 80 quando o país estava submetido à ditadura de Nicolae Ceausescu (1918-1989). O filme assume de forma irreverente a forma de comédia muito embora esteja a tratar da mais pura realidade social e política daquele feroz regime comunista. 
Em meio às crises de desabastecimento, à falta de dinheiro e de oportunidade para os mais jovens, à ausência de satisfação mínima aos anseios individuais dos cidadãos e à crise moral que reveste os aparelhos do Estado, os diretores conseguem destilar um refinado espírito crítico cheio de humor e ironia. Uma missão que parece relativamente difícil, mas de fato não é. Afinal, o que se chamava de regime proletário não passa de uma combinação trágica e, ao mesmo tempo, cômica de uma realidade objetiva e incontestável. O lado cômico diz respeito às faces histrônicas e pretensiosas do Poder espalhado pelo território que ocupa. A face trágica diz respeito ao atolamento dos indivíduos pelo regime e a violência que se expressa no cotidiano mais singelo às transações políticas mais nefastas. Tudo sob o silêncio oculto e imperativo de um regime personalíssimo (tal qual no tempo de Stalin).
Ainda é tempo de se fazer uma reflexão sobre o desenvolvimento dos projetos daquilo que outrora se denominou de regimes revolucionários. Neste filme temos os feitos contados por meio de humorados contos cinematográficos. Todavia, há muito mais que ser falado. Os regimes comunistas nos provaram que a a Utopia do proletariado se descarrilou em ditaduras cruéis que escravizaram o povo e cultivaram e cultuaram as personalidades mais obscuras do século XX (Stalin, Mao liderando o ranking) juntamente com Hitler. No final das contas tivemos a destruição de velhas ordens por meio da barbárie e a instalação de regimes novos que foram a barbárie. Há ainda no mundo que encoste o seu pensamento na ilusão de que havia ali algo civilizatório na política e no desenvolvimento social. Nunca houve. Apenas o ovo da serpente brotou e trouxe as suas conseqüências mais horrendas. Estamos hoje livres para constatar isto, mas ainda não estamos livres daqueles que ainda acreditam nestas moléstias.
Os contos deste filme não são dourados e nem a era é dourada. Apenas o humor é nobre. Exatamente para tratar de aspectos e fatos sórdidos. Dura ironia.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Dois Irmãos": Um Filme Cheios de Sutiliezas

O cinema me parece uma das últimas resistências, senão a última, ao processo de "padronização" do pensamento ocidental. De fato, parece que a história acabou, mesmo que saibamos que esta afirmação é uma farsa. O pensamento, a reflexão, a introspecção na alma do homem, são formas nobres de trabalho. (Mas, quem deseja trabalhar?). Nele a mais-valia nada mais é do que aqueles saltos que damos para pensarmos na realidade e na sua correspondente transformação. Ok! Eu sei que estou fazendo uma pregação quixotesca quando olhamos a barbárie que cerca a humanidade, a falta de delicadeza, a ausência de espírito crítico e assim vai. Seria ótimo que alguns loucos (mesmo que poucos) se ocupassem das trincheiras da resistência à banalização fácil do pensamento.
Cinema, assim como literatura, é "estranhamento". Diante de uma realidade objetiva e banal se pode extrair transgressões que nos fazem pensar e ir além. A vida vale a pena por isto. Se se cai no vazio da existência, acabamos sabendo completamente os fatos (basta ir ao google), mas pouco sabemos dos fatos. Um pouco sutil, mas a vida é cheia de sutilezas. A bem da própria humanidade.
O diretor argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (Argentina, 2010, com Graziela Borges e Antonio Gasalla) consegue atingir o "estranhamento" dos fatos de forma delicada, inteligente e com uma ironia suave e aguda ao mesmo tempo. Este filme tem traços da nouvelle vague, não propriamente na temática amoral, mas na ausência de lineraridade entre os personagens e suas estórias. Trata de dois irmãos como reza o título. Ela é uma uma corretora de imóveis, sempre cercada de si mesma, sempre marcada pelo ceticismo e por uma ausência de intensidade. Tudo lhe parece óbvio e capaz de fornecer frutos que possam lhe satisfazer o próprio ego. A vida não tem sutilezas e nem a fortuna de ver além da própria existência "careta" e burguesa.
Já o irmão é revestido de sensibilidade, seja no tratamento carinhoso e generoso à mãe, seja na sua atividade de artesão. A cada passo que dá, ele extrai os temperos da vida, edifica além dos tijolos disponíveis e escassos. O que poderia se esperar de um aposentado? Ele nos prova que muita coisa, inclusive a capacidade de traduzir para si e para os outros os mais profundos significados da existência. 
O filme não é um show e nada tem de pretencioso. Ao contrário: tem o ritmo de uma peça bem encadeada e que a cada cena faz o espectador se entregar a si mesmo. Um espécie de jogo de sedução. As impossibilidades da realidade humana vão se traduzindo em amplos salões que podem ser percorridos por nós mesmos.
Do choque de visões entre os dois irmãos nasce um questionamento raro no cinema, sobretudo naquele que é produzido nas periferias de Hollywood. Não é um jogo de Caim e Abel. Trata-se de um filme inacabado, de fato. O diretor não se preocupa com a paródia, mesmo que esta lhe seja útil. Há uma dialética nada cansativa onde as diferenças se entrelaçam e criam um novo momento. Em certo momento a peça grega Édipo Rei é utilizada com rara beleza, porquanto cria um novo e surpreendente momento, magnificamente encarnado pelo ator Antonio Gasalla. Ali, vemos que a memória e o esquecimento dos fatos se transporta para a própria vida.
Daniel Burman consegue fazer a sua parte e resistir á onda que dilacera a arte cinematográfica. Faz um filme sem chatices, mesmo que acabe por sobrar alguma chateação para aqueles que vêem a vida com a amargura e o niilismo projetados pela também excepcional atriz Graziela Borges.
O saber que provem do cinema é, ao mesmo tempo cognitivo, (conhecemos a realidade) e reflexivo (vamos à essência daquilo que vivemos). Nem sempre é assim, é claro. Somente para aqueles que sabem que existem sempre Dois Irmãos  que nos perseguem em nós mesmos. Felizmente ou infelizmente sempre acabamos por ter de escolher um deles. Não dá para fugir. Mesmo que corramos o mundo todo...