quarta-feira, 2 de maio de 2012

A Beleza do Kilimajaro

É possível extrair vários fragmentos fantásticos de grandes obras e, a partir destes, construir outras derivações artísticas que nos remetem a outras tantas ideias e reflexões. Foi da inspiração do poema de Victor Hugo (1802-1885) Pobres que nasceu o argumento do filme francês As Neves de Kilimanjaro (França, 2011, dirigido por Robert Guédiguian, com Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilye Canto, Grégoire Leprince-Ringuet).
Trata-se de uma obra que remete com significativa carga dramática à crise atual do Velho Continente.
Michel é um líder sindical que é demitido de uma empresa portuária em Marselha. Seu nome foi sorteado juntamente com outros vinte para fazer parte de um programa de demissão. Ele não precisava se autoincluir dentre os possíveis sorteados, mas o fez por pura generosidade e fidelidade aos seus ideais político-sindicais. Uma vez demitido, vê-se solitário e diante da perspectiva da aposentadoria e da melancolia que começa a se desenrolar pelo início da velhice. Sua esposa Marie-Claire é depositária não somente de um profundo e duradouro amor, mas é a coluna vertebral de seu cotidiano, marcado pelos costumes proletários da França hodierna.
Na comemoração das bodas de prata do casal seus amigos lhes presenteiam com uma viagem para a Tanzânia, onde visitarão o Kilimanjaro, cujas neves foram celebrizadas no filme homônimo a este de 1952, com Gregory Peck, Susan Hayward e a estonteante Ava Gardner. A semelhança com o filme norte-americano pára na sua simples menção. Depois da festa, o casal e seus melhores amigos são roubados e, assim, perdem as passagens e o dinheiro arrecadado para a viagem. Inusitadamente, Michel descobre quem são os assaltantes. Um dos presos é um jovem igualmente desempregado que sustenta outros dois irmãos menores e abandonados pela mãe. Tanto Michel quanto Marie-Claire se envolvem emocionalmente com a dramática situação cujo desfecho é lapidado por uma sensibilidade imensa.
Desde a Revolução Francesa (1789), o ocidente é marcado por diversos tipos de burguesia. Não importa qual seja a sua tipologia, os marcos desta estão entranhados na sociedade: o regime da propriedade, a ordem econômica (em tese) competitiva e a ideologia do consumo e do individualismo. Tudo isto revestido por uma democracia representativa que varia os partidos, mas não radicaliza o modus vivendi burguês. Pois bem: o filme não propaga ideologias políticas, no sentido clássico da palavra. Nada revela sobre a dominação burguesa, ou mesmo, as hemorragias do desemprego e da desesperança. De forma elegante e bem construída, o roteiro e sua excelente execução trata da abnegação, da solidariedade, do amor genuíno pelo próximo e pela sensibilidade que nasce do coração na direção do outro. Esta ideia de alteridade não é diluída por uma estória fácil ou "água com açúcar" . Ao contrário, nasce das dificuldades de uma família proletária que vive um de seus piores momentos. A burguesia e suas opressões e o sindicato combatente ao qual pertence Michel estão presentes, mas preferem o anonimado quando se trata das escolhas pessoais que os personagens principais vão fazendo ao longo do filme.
No contexto real de uma Europa que sofre as agruras do desemprego e da desesperança, o filme não escolhe a realidade como ponto de reflexão e de inflexão de direção. Prefere a imagem e a ação do homem na direção de sua tarefa para com o próximo. Uma bela e, de certa forma, incompreensível imagem à luz do cientificismo social e político que costuma se engrandecer nos momentos difíceis das sociedades. Michel e Marie-Claire não escolheram os trágicos fatos com os quais se defrontam, mas, uma vez estes presentes, são capazes de dizer para si mesmos e para os outros que a vida não é feita para a ordem do mundo, mas para que sejamos mais do que indivíduos que estão de olho nas próprias preferências. É preciso não negar a dor, mas para curá-la o primeiro passo cabe ao próprio"homem de barro com um sopro de espírito".
Do ponto de vista "técnico", a direção é competente e não há nenhum apego às manobras da câmera ou às tomadas diferenciadas das cenas. Trata-se de um filme bastante tradicional neste estrito sentido. O grande destaque artístico cabe à atuação segura e muito bem ambientada de todo o elenco. A atriz Ariane Ascaride (Marie-Claire) se destaca por uma representação precisa de uma mulher proletária moderna. Claramente, a atriz explorou o que de melhor a personagem lhe fornece e, desta forma, conquista o público e o restante do elenco.
Eis um belo filme para pensar e sairmos mais determinados a enobrecer a nossa própria humanidade.