terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Sob a Influência de Harold Bloom

Temos de reconhecer que os livros, tal qual ainda o vemos, são peças cada vez mais raras no cotidiano humano. Interessante que a leitura mais escassa, fugidia da superficialidade que domina o mundo, não é sinal de progresso. Ao contrário: na era da informação há uma concatenação entre o excesso de notícias, dados, descrições, fofocas e, de outro lado, pouco conhecimento e uma visão além do meramente aparente. Diz Harold Bloom, no seu magnífico livro "Como e Por que Ler": "Nos dias de hoje, a informação é facilmente encontrada, mas 
onde está a sabedoria?"
Harold Bloom é daqueles oásis no qual repousa a sabedoria. Trata-se de uma virtude torneada de conhecimento que se expande por um campo definido, o da literatura e outro indefinido, a vida.
 “A crítica literária como tento praticá-la é em primeiro lugar literária, ou seja, pessoal e apaixonada. Não é filosofia, política ou religião institucionalizada. Em sua melhor forma, (...) é uma espécie de literatura de sabedoria e, logo, uma meditação sobre a vida”, diz com singeleza e profundidade, ao mesmo tempo. 
Aos 83 anos, Harold Bloom leciona há mais de 57 anos, sem nenhuma interrupção significativa. É professor da Yale University, entidade na qual a literatura ainda ocupa lugar de imenso prestígio dentre as ciências mais modernas. Também foi professor da New York University de 1988-2004. É imensamente recompensador escutá-lo sobre o seu papel de professor aos 83 anos, mesmo para aqueles que jamais serão seus alunos: 
"— Dar aulas hoje significa tudo para mim. Quando você chega a uma idade como a minha ainda dando aulas, aprende a amar os estudantes de uma forma muito elevada." Trata-se inequivocamente de uma vocação amorosa e não propriamente de uma profissão, daquelas que estão filiadas a um determinado sindicato.
Em Anatomia da Influência (Anatomy of Influence, Yale University Press, 2011, lançada no Brasil em outubro de 2013 pela Editora Objetiva, tradução de  Renata Telles e Ivo Korytowski), Bloom retoma, após largo período, desde 1973, o texto que o lançou como um dos ícones da crítica literária, "The Anxiety of Influence". Esta obra calçou uma concepção de crítica literária diversa daquela que dominou o século XX, sobretudo após os anos 20, quando T.S. Eliot lançou o seu estrondoso poema The Waste Land (1922). A partir de Eliot, críticos literários, tais como William K Wimsatt e Monroe Beardsley, passaram a pregar que autores não podem ser vistos ou avaliados por intenções, mas apenas pelo texto produzido de onde se extrai a fonte pura de sua arte. Portanto, esta crítica jogava um balde de água fria nas concepções historicistas da literatura, em geral, e da poesia, em particular. Creio, de minha parte que esta concepção se afastou, inclusive, daquela preconizada originalmente por T.S. Eliot, que diz em seu famoso ensaio A Função da Crítica (1923) "que nenhum poeta, nenhum artista, tem significação sozinho". Ademais, Eliot defendia que um artista tem herança e causa comum com outros artistas e, neste sentido, há uma submissão que deve ser superada para que um autor se torne único, especial. Ora, esta visão Eliotiana está mais próxima de Bloom que os seguidores do primeiro. Os Neocríticos, ao rejeitarem a investigação da crítica sobre as variáveis da criação literária (as intenções e contemporaneidades), acabam por se afastar da ideia da influência de uns autores sobre os outros. É neste campo que Bloom navega com grande intensidade teórica e versatilidade estética. É o ágon de Bloom.
Em Anatomia da Influência Harold Bloom explora as "lutas" e "as relações" entre escritores de diferentes épocas, em diferentes momentos e, até mesmo, por diferentes razões. Não é, contudo, uma relação marcada pela temporalidade, mas pelo ego literário de um autor em relação à outro. Nesta diapasão, Bloom imagina que Freud pode ter antecedido a Goethe. A construção de um autor não pode ser completamente  afastada de outras influências e esta interação se dá por meio de uma "luta" do autor para superar o influenciador. Deste princípio, Bloom analisa com maestria os vetores da influência dos autores canônicos (para usar uma expressão que Bloom popularizou) sobre outro autores igualmente canônicos. Milton, Shelley, Whitman, Crane, e, sobretudo, Shakespeare, este ganhador da "luta" com Homero. 
Há outro aspecto notório na obra de Harold Bloom que é a interação permanente, não passível de ser ontologicamente separada, entre a vida e a literatura. Para ele, a literatura é a própria vida e não se pode estabelecer um "momento" ou qualquer outro critério que possa delimitar onde uma começa e a outra termina. A independência destas ideias literárias de Bloom parece fácil aos olhos do leitor, mas é preciso entender que em Anatomia a forma e as conclusões das investigações de Bloom tem repercussões elásticas sobre a apreciação da arte literária. Não há, por assim dizer, nenhuma concessão às facilidades da era moderna. Para Bloom, a busca da sabedoria é uma atividade que demanda tempo e dedicação. Deve ser realizada de forma "experimental e pragmática" (neste sentido, não é educacional) o que implica na desleitura do texto literário em busca de sua influência anterior (e, como dito, posterior). A partir da influência é possível que encontremos o autor ou sejamos encontrados por ele. Shakespeare é, ao mesmo tempo, a sublime experiência do humano, seja em Hamlet ou Rei Lear, ou é o encontro com a nossa própria alma. A desleitura proposta por Bloom é sempre um inevitável encontro. Daí, porque não há como separar a vida da literatura.
Creio que a leitura de Anatomia é uma tarefa relativamente difícil quando temos por referência o texto fácil da cibernética que nos rodeia. Certamente não é um texto que será valorizado no Twitter ou no Facebook. Em tempos de redes, Harold Bloom pode parecer demais. Todavia, ao percorrermos o seu livro, vai nos tomando conta da alma uma série de referências estimulantes que nos levam a querer apreender mais e mais do sabor das influências entre os autores e os leitores. É uma tarefa muito mais "barata" que os muitos reais que boa parte da classe média dispende para "educar" os seus pimpolhos. 
Em Bloom estamos diante de um desafio, é verdade! Mas, trata-se de um desafio alimentado pela sedução literária desprovida das presunções que estamos acostumados a fazer de quase tudo. É uma navegação livre e infinita e que pode ser reavivada no tempo que se quiser, pois a literatura é uma invenção não apenas do autor, mas de cada um dos leitores que solitariamente navegam por mares já navegados e jamais totalmente conhecidos.