sábado, 17 de maio de 2014

Lisboa, poética e mundana



    Lisboa com suas casas  
    De várias cores,

    Lisboa com suas casas
    De várias cores,

    Lisboa com suas casas
    De várias cores ...
   

    À força de diferente, isto é monótono.
    Como à força de sentir, fico só a pensar. 

   

    Se, de noite, deitado mas desperto,  

    Na lucidez inútil de não poder dormir,  

    Quero imaginar qualquer coisa
    E surge sempre outra (porque há sono,
    E, porque há sono, um bocado de sonho),
    Quero alongar a vista com que imagino
    Por grandes palmares fantásticos,
    Mas não vejo mais,
    Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
    Que Lisboa com suas casas
    De várias cores. 

   

    Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
    A força de monótono, é diferente.
    E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo. 

   

    Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,

    Lisboa com suas casas
    De várias cores.



(Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio/Poesia de Álvaro de Campos 11-5-1934)



Lisboa é um eterno recomeço para os portugueses e uma pedra angular para nós brasileiros. Um lugar no qual a saudade parece começar antes da despedida. Fernando Pessoa, este “indisciplinador de almas” é uma espécie de retrato humano desta capital que se reveste de extratos melancólicos, bucólicos e suaves. Olhar o Tejo para nós brasileiros é como nos puséssemos a retornar do exílio na direção da ensolarada costa de nosso Nordeste. Enquanto isso, para os portugueses, o Tejo, nas suas profundezas, é para os lusitanos um mergulho no passado, na busca do Sebastianismo enfim restaurado, de um Portugal, pequeno no tamanho, mas grandioso nas ambições.

Antes de ir as beiradas do Tejo, recomenda-se um passeio descompromissado e lento pelo Chiado e pelas cercanias da Rua dos Douradores, pelo bar Martinho das Arcadas e pelo Café “A Brasileira”. Nada melhor que nesta andança cercar os olhos em uma livraria próxima e, quando dela se aproximar, despreocupar-se com os temas certeiros dos livros de autoajuda, dos romances medíocres (tal qual, “Comer, Rezar, Amar”, de Liz Gilbert). O momento é para o lirismo de Pessoa, para a ironia refinada e ilustrada de Eça de Queiroz e para o romance tortuoso de José Saramago. Ou ainda, para revisitar “Os Lusíadas”, estes sim!, versos para se ler silenciosamente ao longo das margens do Tejo. Depois, solte um grito de glória como se independente fosse.

Lisboa é como um vinho estruturado, mas, ao mesmo tempo, simples, doce e com bouquet cheio de nuances e referências imemoriais. Não cabe perder tempo se preocupando com o último post do Twitter ou do Facebook. Senão, Lisboa se torna um vinho varietal sem o frescor necessário à curtição da cidade, nas suas fotos vívidas e sem as encostas dos “amigos” da rede que nunca passam na sua casa.

Os bondes em Lisboa são lentos até nas ladeiras do Forte de São Jorge. Na parada do Largo de São Carlos desça e veja o que se passa nos vitrais que anunciam o espetáculo do momento no teatro de mesmo nome. Tudo é elegante, gentil e culto, sem que seja argentário ou cercado dos flanelinhas de Copacabana. Não há a pressa do tempo moderno, por certo.

Se misture ao povo e sinta-se um “emissário de um rei desconhecido”. Verá que aquele sotaque que despenca dos lábios carnudos das belas raparigas que passam nas largas avenidas é cheio de sensualidade e beleza. Se estiver ao lado de alguém amado (amado mesmo!), espete um beijo nos seus lábios para conter o ímpeto que nasce nas entranhas. Se estiver só como um berbere no Marrocos, sinta-se alado para o amor. Anime-se, mas com lucidez.

As horas em Lisboa sempre hão de interrogar sobre onde e quando parar e sorver um café, um doce de ovos ou um pescado à moda portuguesa. Não hesite em responder: pare no “Martinho das Arcadas” para o café e sinta-se recebendo os amigos como Fernando Pessoa recebia. Coma um “pastel de Belém” na rua de mesmo nome e pergunte, depois da primeira mordida, se foi por ali que os anjos que cercaram a manjedoura passaram antes de irem para a Judéia no tempo daquela criança que mudou o mundo. Quanto ao pescado, bem isso é um mar (ou oceano?) de possibilidades. Se quiser fugir do mais ordinário, vá ao “O Polícia”, ali na Rua Marquês Sá da Bandeira, 112ª. Recomendo o vinho Quinta Pacheca para acompanhar os pescados, sejam quais forem estes. Este branco é um corte do Douro, das castas Cerceal, Malvasia Fina, Gouveio e Moscatel. Diferente, muito diferente.

Em Portugal se comemora neste ano os quarenta anos da Revolução dos Cravos que encerrou (para sempre) a ditadura do período de Salazar. Vá a Alfama e comemore a liberdade (que também é sua). Não deixe nunca de passear por entre os parques da cidade. Não é apenas um lugar de repouso para a elevada luminosidade que penetra nos olhos. Dá para se encantar com as variedades de árvores, algumas trazidas do Ultramar, dos recantos quase infinitamente distantes que Vasco da Gama ousou singrar.

Lisboa deveria ser sempre a primeira cidade a visitarmos na Europa. De lá podemos partir mais humanos e simples, mesmo que revestidos pela Graça de sentir Pessoa nos seus versos que abrem este singelo texto. A Europa tem fronteiras que se expandem para dentro das pequenas comunidades, suas relvas próprias, sua comida típica, seus vinhos sedutores, seu povo provinciano. Lisboa, por sua vez, nos avisa que “a poesia é a maneira figurada de se viver”. As suas bordas, portanto, nunca se firmam em definições, mas numa leveza cândida que nos leva a viajar: o rio e o mar, os conventos e os puteiros, as avenidas e vielas, o universo e o canto de um bairro, as casas grandes e os pequenos palácios. Não há amarguras quando sabemos que ficamos sozinhos em Lisboa, cercados de nódoas de amor juvenil por todos os lados...

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

"A Grande Beleza" Mimetiza o Mundo e o Renova

Reinou durante a segunda metade do século XX até a queda do Império Soviético, a crença de boa parte do pensamento de que os valores burgueses necessariamente corroíam as perspectivas do proletariado. Em seu famoso livro "A Sociedade do Espetáculo" de 1967, Guy Debord afirma que "toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação". Não é preciso nos desgastarmos excessivamente para que possamos enxergar que a síntese de Debord manifesta-se claramente por todos os afluentes e vazantes da sociedade moderna. Além disso, falta-nos um sentido de totalidade e um "sentimento de mundo" com a licença ao poeta Drummond.  Espalha-se, ademais, uma cultura vazia de valores (individuais e coletivos), descartável e, permitam-me o termo, "brega" e "grosseira".
É a partir da premissa brevemente enunciada acima que passo a comentar o filme A Grande Beleza (La Grande Bellezza, Itália/rança, 2013, 142m, dirigido por Paolo Sorrentino, com Toni Servillo,Carlo Verdone, Sabrina Ferilli, Carlo Buccirosso e Serena Grandi), ganhador do Globo de Ouro (2013) de melhor filme estrangeiro. . Trata-se de um filme que pode ser visto por variados ângulos, mas de muitas formas estes fluem para uma ácida critica para a "sociedade do espetáculo" que transborda por todos os lados de nossa vida, digamos, "burguesa". 
Jep Gambardella, interpretado brilhantemente por Servillo, é um jornalista que escreve sobre as faces da vida da alta sociedade romana, especialmente sobre arte contemporânea. É uma espécie de colunista de arte/social, um observador agudo e crítico daquilo que vê, um escritor de apenas um livro, escrito em sua juventude (ele tem 64 anos). Nada, após seu primeiro livro, o empurrou para escrever outro. É como se um tédio se abatesse por décadas, sem um grande amor (que teve quando jovem) e sem um insight que justificasse um novo empreendimento do pensamento.
O filme é um flanar de Gambardella por sua Roma querida, observando as cenas urbanas e delas retirando, com humor e perspicácia, a vulgaridade, o vazio e a inconsequência daquilo que vê. Sorrentino, o jovem e talentoso diretor do filme, constrói um roteiro (juntamente com Umberto Contarello) que consegue ser explícito por meio de um cultivo precioso do detalhe. É a partir das particularidades cênicas que Sorrentino expande as ideias e o imaginário do espectador. Não é um filme "fácil" no sentido de que é preciso estar atento ao que se passa, pois quase tudo parece importante (e, às vezes, não é). Há cenas que são verdadeiramente hilariantes na medida em que o trajeto dos personagens e a progressão das cenas mostra cenas bizarras e explícitas, absurda mesmo, sobre a vulgaridade e o vazio mundano. Paolo Sorrentino carrega para a tela toda a tradição de Federico Fellini ("A Doce Vida"), seja na temática estupenda, seja na forma inovadora e cheia de "estranhamentos artísticos". Há, inclusive, várias cenas que põe a nu a vontade de Sorrentino em expor ao público a pura fonte felliniana. 
São muitas as divagações de Jep Gambardella (Servillo): o amor, a arte contemporânea, as relações sociais, o papel dos intelectuais, a gastronomia, a loucura humana, o sexo, as drogas, e assim vai. Em tudo há espírito crítico, mas o diretor/roteirista não se furta a contradizer o fato vulgar com uma visão alternativa (seria uma fuga?). Em palavras singelas, Sorrentino "bate e rebate". Mostra disso é a cena em que uma criança joga aleatoriamente e violentamente tintas de todas as cores sobre uma imensa tela. Está a "elaborar" um quadro de arte. Nas cenas seguintes, a câmera desliza lentamente por entre obras de arte renascentistas como se mostrasse uma porta de saída para aquela coisa horrorosa de uma tresloucada menina. É como se o diretor gritasse: "parem o Romero Brito!"
O filme conspira sem solenidade contra a "sociedade do espetáculo" que passamos a vivenciar conforme o desenvolvimento capitalista se expandiu desde o início do século passado. A corrosão não é mais capitalista. É da alma mesmo. A Grande Beleza contesta a ausência de espírito na matéria, a alma penada e perdida do nosso cotidiano e, em meio a uma bela e cuidada contestação, ela abre os portões para o belo. Sorrentino não tem medo de combater numa trincheira na qual dificilmente haverá vitória. A realidade parece um jogo perdido, mas sempre devemos construir oásis em meio ao deserto. É preciso ver e sentir a realidade, mas é necessário sonhar e superar o espetáculo vazio por meio de um sonho.
Do ponto de vista artístico Toni Servillo dá um show de interpretação. Ele combina rara capacidade de se mostrar delirante e, ao mesmo tempo, sóbrio e irônico. Lembra muito Marcelo Mastroianni, morto em 1996. Esteja o seu olhar na câmera ou no horizonte, Gambardella transmite com perícia a linguagem do filme e, criativamente, constrói um personagem que serve ao roteiro e vice-versa. Espero ver Servillo mais vezes na tela.
A Grande Beleza é, enfim, um filme espetacular. O seu nome condiz com esperança que devemos cultivar.