terça-feira, 3 de abril de 2012

Robert Doisneau: O Fotógrafo Está No Rio


Robert Doisneau (1912-1994) foi um dos maiores fotógrafos do século passado e com , Cartier-Bresson, Eugène Atget e André Kertész, suas maiores influências, retratou o cotidiano marcado pelas guerras, o gigantesco desenvolvimento econômico e a multiplicação das manifestações artísticas, especialmente na Europa. Deste ambiente de profundas transformações políticas e sociais Robert Doisneau soube captar vínculos especiais entre as cidades e os campos, entre os pequenos-burgueses e os trabalhadores, crianças e velhos, donas de casa e mulheres que ganhavam crescente participação na vida ocidental. 
Assim como Cartier-Bresson, Doisneau foi um artista que se aproveitou da luz e das sombras com exemplar maestria. Muito embora suas fotos pareçam (e provavelmente sejam) "mais posadas" que a de Cartier-Bresson, a estética de ambos não merece reparos, muito embora Doisneau seja menos "comemorado" que seu colega francês. (A propósito, no próximo 14 de abril comemora-se os 100 anos de seu nascimento).
A exposição de 152 fotografias do mestre francês no Centro Cultural Justiça Federal no Rio de Janeiro é um acontecimento perfeito para que o público, leigo ou não, possa interagir com a arte deste maravilhoso retratista do século passado. A curadoria da exposição (a cargo de Agnès de Gouvion Saint-Cyr) conseguiu enquadrar, com oportunidade e talento, a visão, ao mesmo tempo, oportuna e romântica de Doisneau. Não é tarefa fácil como alguns poderiam simplificar.
Doisneau traduz por meio de registros cotidianos e, com evidente viés jornalístico, uma série de fronteiras que podem ser apreciadas em função da excelente organização da mostra do francês. Estas fronteiras saem da banal vivência dos transeuntes, dos pequenos agricultores, das moradias populares para a convivência entre o natural e o extraordinário, o excêntrico e o comum. Ademais, não é fácil fugir da obviedade de suas mais famosas fotos, estas quase todas aproveitadas pela cultura pop pós-II Guerra Mundial. A mais famosa Le baiser de l'hôtel de ville (O Beijo no Hotel de Ville) per se é uma marca registrada e fiel de sua obra, mesmo que tenha sido exageradamente "aproveitada" para fins de consumo de massa. Permito-me expor abaixo uma das minhas prediletas e que espelham com fidelidade o senso de oportunidade, humor, luz e poesia do fotógrafo francês.


É notório perceber que ao longo da exposição não há uma fotografia sequer que sugira ou induza o apreciador de sua obra a um pensamento elaborado, a uma ideologia delimitada ou a um modelo "bizarro" ou "contestador" de arte. O que se vê são fotografias marcadas por temas (crianças, jovens, Paris, os mercados e assim vai) que ressaltam uma profunda humanidade, simples e complexa, sem a necessidade de que o artista se envolva demais com o seu objeto a ponto de pretender transformá-lo na mente de quem vê a foto. Disto decorre a lindeza da exposição. Um detalhe importante: a iluminação da exposição do Rio sabe aproveitar e valorizar no limite a qualidade da obra deste fotógrafo que deixará suas marcas por muito tempo entre os amantes da fotografia. Vale visitar o Centro Cultural Justiça Federal no Rio. 
Por fim, gostaria de deixar aos amigos deste blog um poema de outro fotógrafo francês famoso, amigo de Robert Doisneau: Jacques Prévert. Este poema juntamente com um belo café após a exposição carioca refresca a alma e faz a vida mais bela. Ainda mais para aqueles que acreditam no amor. É isso mesmo, o amor. De novo.

Café da Manhã

Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu

debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.


  

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A Poética de "A Dançarina e o Ladrão"

A América Latina é um canto do mundo recheado de surpresas e esperanças, tantas vezes marcadas pela sina da miséria, corrupção e sofrimento eivadas pela desesperança. Historicamente, as terras ocidentais e abaixo do Equador, mostraram-se irrelevantes em muitos aspectos, mas, de vez em quando, se enchem de leveza, pureza e dão exemplos ao mundo.
A Argentina, melancólica terra que canta o seu passado (não tão) glorioso, tem feito no cinema uma obra magistral, fluida em frescor e competência técnica e dramática. De sua posição geopolítica irrelevante tem sido o cinema um sinal de modernidade e renovação para a arte deste apêndice do globo. Isso, nestes tempos recentes, pela atuação espetacular de Ricardo Darín, o melhor ator de língua espanhola da atualidade. O melhor dentre os melhores da atualidade.
É o que se vê no filme A Dançarina e o Ladrão (El Baile de La Victoria, Espanha, 2009, dirigido por Fernando Trueba, com Ricardo Darín, Abel Ayala, Miranda Bodenhofer, Ariadna Gil , Julio Jung, Mario Guerra, Marcia Haydée, Luis Dubó, Luis Gnecco, Mariana Loyola). Baseado no romance do chileno Antonio Skármeta (1940-      ), é roteirizado pelo diretor Fernando Trueba e pelo próprio Skármeta, este filme foi indicado, sem sucesso, pela Espanha para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Pena que demorou certo tempo para percorrer as salas de cinema do Brasil.
Trata-se da estória de uma ladrão de cofres, Nícolas Vergara Grey (Darín), anistiado do cumprimento de parte de sua pena por um crime comum, no exato momento em que a democracia chilena tentava jogar luzes sobre o período ditatorial de Augusto Pinochet. O ditador acabava de chegar de sua estadia forçada na Inglaterra (2000), quando foi mantido em prisão domiciliar pela tentativa da justiça da Espanha em lhe aplicar sanções criminais em função do assassinato de cidadãos daquele país durante o regime ditatorial chileno. Neste contexto, Vergara Grey é libertado e tenta reencontrar sua esposa e filho. Sua busca resulta na descoberta de que estes moravam com o "novo" marido de sua amada. Em meio a esta decepção amorosa, carcomido pela angústia de seus espetaculares feitos de ladrão de cofres, Vergara Grey encontra casualmente Ángel Santiago (Ayala), também um ladrão anistiado, mas sem a fama de Grey. Santiago, em seu primeiro dia liberto, encontra uma dançarina pobre e desamparada, órfã de ativistas políticos assassinatos no período ditatorial, por quem se apaixona e passa a conviver. Nasce assim um amor puro cheio de descobertas e senões existenciais.
Do inusitado encontro dos dois ladrões, nasce a ansiedade e insistência de Santiago em atrair Vergara Grey para a realização de um roubo cinematográfico. A recusa de Vergara Grey em realizar um novo crime se afasta quando comovido pelo amor poético e sofrido de Ángel e Victoria, esta uma dançarina talentosa perdida em meio às ruas da capital do Chile.  
É precioso neste filme, a mistura de beleza poética do relacionamento entre os personagens e, ao mesmo tempo, a rudeza da realidade de cada um deles e de sua convivência meio forçada e meio desejada. A certa altura do filme se somam elementos factuais e uma doce fantasia. A percepção do que é metafórico e real se afasta e o espectador cai na cilada da estória. Em meio à emoção, se espera o desenrolar dos fatos e ao andamento dos acontecimentos cede-se à aceitação da mensagem poética. O encadeamento das cenas tem um força dramática especial, não importando os resultados que se constatam dos fatos, mas a sua construção. Nem mesmo a realização do roubo dos dólares de um ex-general ligado a Pinochet chega a se descolar deste cenário, digamos, cheio de lirismo. Não à toa, o roteiro pode atrair para si a beleza dos versos de Gabriela Mistral (1889-1957), escritora chilena ganhadora do Prêmio Nobel de 1945:


"Sentirás que a teu lado cavam briosamente,
que outra dormida chega a quieta cidade
Esperarei que me hajam coberto totalmente…
e depois falaremos por uma eternidade!" 


Reconhecemos neste filme muitos de nossas esperanças e sonhos. Neste sentido, a competência do diretor espanhol Fernando Trueba (ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro por Belle Époque em 1993) possibilita que todas as simbioses, sejam poéticas, artísticas ou dramáticas, possam ser levadas ao público com imenso e raro bom gosto. (Não seria difícil que o filme caísse na pieguice). A verdade é que, esgotado o tempo em que estamos embebidos pela estória, acabamos por perceber que nos faltam filmes como este, cheio de renovação, mistério, poesia e amor. Tudo isso, carregado de elegância, competência visual, uma musicalidade além da própria (e boa) trilha musical, posicionamentos de câmeras bem pensados e uma teatralidade que condiz com plenitude com aquilo que Skármeta quis passar em seu romance.
A safra de filmes de Hollywood não tem sido generosa. Em certo sentido a vulgaridade da festa do Oscar lhe faz boa companhia.
Em, A Dançarina e o Ladrão, podemos nos sentir recompensados pela insistência em amar o cinema. Podemos sair leves e cheios de esperança da sala do cinema. E, se ainda tivermos vontade, podemos recitar versos, quem sabe os da própria Mistral, na certeza de que a poesia vive em meio à miséria do mundo.