sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Salinger: O Autor é um Mito, Seu Personagem é Real

Leio nos jornais que Jerome David Salinger morreu. Noto que o personagem Salinger é tratado pelos críticos e literatos como mito, possivelmente fruto de sua misteriosa vida que, por sua vez, seja fruto de sua obstinação pela reclusão na cidade norte-americana de Cornish, no estado de New Hampshire.
De outro lado, é igualmente notório que o imaginário personagem de sua principal obra de 1951, O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye), Holden Caulfield, tenha se tornado uma realidade na medida em que se atribui a este personagem a inspiração para toda uma geração. Além do fardo de ser uma espécie de aliciador de paranóicos como Mark Chapman, aquele tresloucado que matou John Lennon em 1980. Com Chapman foi achado um exemplar dO Apanhador. Mais combustível a alimentar a horta da mitologia em torno de Salinger.
Vejam bem: J.D. Salinger um mito. Seu personagem Holden Caulfield, algo real, nada ficcional.
Desconfio severamente de toda a mitificação, não exatamente porque esta não aconteça, mas em função da obscuridade que recai sobre aqueles que se propõem a desvendar o mito. Este acaba por devorá-los tal qual a esfinge. Assim, fica-se sem o real e sem o mito. 
Lembro neste ponto um texto contido no livro Mitologias (2007) do escritor e semiólogo francês Roland Barthes sobre o poeta trágico Jean Baptiste Racine (1639-1699). O nome deste pequeno texto é Racine é Racine. Escreve Barthes: "Nossos críticos essencialistas passam o tempo a reencontrar a "verdade" dos nossos gênios passados; a Literatura é para eles uma vasta loja de objetos perdidos, onde as pessoas tentam localizar alguma coisa. " Barthes atribui isto a uma tautologia pequeno-burguesa que "dispensa ter idéias".
O personagem dO Apanhador, Holden Caufield pode ser até expressão do niilismo da vida burguesa de uma era ou dos anos pós-II Guerra, bem como o célebre livro de Salinger é de fato um livro bem escrito. Todavia, permitam-me a partir deste modesto blog duvidar sobre a decantada e imensa influência de Salinger sobre os fatos sociais e políticos da geração pop. Prefiro acreditar no Zeitgeist (espírito do tempo) que é capaz de formas múltiplas propiciar condições para que a sociedade e os indivíduos se movam à frente, para trás ou para a esquerda e direita. Um livro como O Apanhador é que está neste espírito e não o espírito que é saído dele. Os tautologistas burgueses (com uma nova permissão de Barthes), deveriam arregaçar as mangas e desmistificar J. D. Salinger. Deveriam parar de alimentar com a sua preguiça mental o mito Salinger e refletir sobre ele com um pouco do niilismo de Holden Caufield. 
Por fim, há um risco adicional em tudo isto: Salinger teria muitos escritos inéditos. Enquanto estes estiverem escondidos pelas gavetas da casa dele em Cornish, prevalecerá toda esta mitificação do autor norte-americano. Será que alguém está disposto de mergulhar na obra de Salinger e descobrir que os anos 50 ou 60 seriam iguais aos que foram sem que existisse a obra dele? Ou que os anos 60 não passaram de um passeio pela selva e anti-civilização? Por Deus, a turma hippie trabalha hoje em Wall Street... Como diz o próprio Holden Caufield: "As pessoas batem palmas pelas coisas erradas."

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O Tempo da e na Rede Global

Assisti ontem (27/2) a uma interessante palestra patrocinada pela agência de comunicação CDN e proferida pelo competente professor Sílvio Meira, especialista e pesquisador na área de engenharia de software e internet. Sua reputação é internacional e a abrangência de seu trabalho transcende um universo que possa ser previamente estabelecido. A sensação de quem o escuta é que ele está como na teoria do big bang, ou seja, em contínua expansão.
Bem, de minha parte, não tenho competência para fazer uma reflexão mais apurada sobre o que seriam "os pensamentos" do referido professor sobre uma larga gama de assuntos relacionados com o mundo virtual (ou será real?). Assim sendo, me contenho apenas sobre um tema en passant abordado pelo professor. Trata-se sobre o significado do tempo no atual contexto onde tudo torna-se "instantâneo". Algo sobre o qual Santo Agostinho, Husserl e Bergson se debruçaram com redobrado esforço filosófico. Chegaram a algumas conclusões, mas se perderam em outras tantas.
Sou fascinado pelo tema do tempo, o qual considero uma daquelas abstrações humanas que nos abarcaram de tal forma que passamos a comemorar aniversários, datas, episódios históricos, etc. como se estes estivessem aprisionados pela régua que mensura esta abstração. O meu livro tem o título de Tempo Inaudito, uma abstração poética sobre outra abstração poética. Um tempo "que não se escuta".
O professor, em meio as palavras do jargão cibernético, trouxe à tona a idéia de Gilberto Freyre sobre o Tempo Tríbio, aquele onde confluem o passado, o presente e o futuro, onde o que é, o que virá e o que foi estão como em interação "dialética" (não sei se é a melhor palavra) numa fusão sobre a qual não sabemos ao certo a sua composição. Um tempo em três pessoas, o passado, o presente e o futuro.
Neste sentido filosófico, qual seria então para o professor Meira, o "tempo da rede". Seria o futuro trazido para o presente. Cada partícipe da net , ao aceitar o jogo virtual, seja no twitter, orkut, facebook, google, etc, está no presente antecipando o futuro.
Interessante este conceito. De fato, penso eu, esta "antecipação do futuro" é realizada de forma caótica, imponderada. Afinal, esta antecipação é feita "descontando-se as percepções do futuro" com base num conjunto de valores, conceitos, interesses, etc absolutamente atomizados e individuais. Com base neste conceito, um show do U2 a ocorrer em alguns meses, pode ser "antecipado" pelos indivíduos e pelo seu conjunto (em rede) e sobre este show pode se formar uma percepção que adquiriria "forma" quando ele de fato ocorrer. Ora, neste contexto o absoluto (o show real) é relativizado pelos participantes da rede (o show virtual ou percebido). 
Não vou me delongar ainda mais neste complexo tema. Apenas registrar esta visão do professor Sílvio Meira. Não importa aqui se ela é "correta" ou "errada", afinal estamos a tratar de abstrações que se movem em ações individuais e coletivas (participativas). O que realmente importa é que  no realismo fantástico da internet as equações daquilo que pensamos de forma consolidada (a verdade de cada um) estão se tornando instáveis. Uma instabilidade que talvez não consigamos conviver com ela senão por meio da coletividade da própria net. Um processo internetropofágico. (O termo é meu, nada a ver com o professor Meira).

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Stallone, o Homem das Duas Telas

Fui informado pela revista Piauí 40 (Jan, 2010) que Sylvester Stallone é também pintor. Dedica-se ao preenchimento artístico de telas há trinta anos - possivelmente extraia a graça da arte em meio às filmagens nem tanto artísticas. Além disto é colecionador de artistas de renome, tais como, Rodin, Monet e Dali. Entre os dias 3 e 6 de dezembro do ano passado, Stallone participou da versão 2009 da maior feira de artes dos EUA, a Art Basel Miami Beach e expôs quadros nas cercanias de outras obras de artistas famosos. O nome da Stallone collection é nada mais nada menos que The Electric Bust of Criativity (A Explosão Elétrica da Criatividade).
O mais incrível desta notícia é que os críticos não arrepiaram o herói das telas (cinematográficas, neste caso) com críticas negativas. Ao contrário, houve até elogios. De outro lado, algumas obras de Stallone foram arrematadas para juntar-se à coleção de um milionário que já possui quadros de Picasso, Cézanne, Rembrandt e Van Gogh.
Bem, estes são os fatos e não há porque duvidar deles. De minha parte não vi os quadros e provavelmente não verei. Todavia, tenho certeza interior, tal qual uma convicção de fé, que Stallone faz parte da sombria perspectiva que recai sobre a arte de hoje em nome da modernidade. Fico imaginando seus quadros com tons que penetram nos olhos de forma aguda e das figuras distorcidas que tentam expressar o que os modernos de outrora já expressaram. (A bem da verdade no artigo da Piauí há uma descrição de duas obras, Trapped Ideals e Superman que por certo me trouxeram esta visão do Stallone pintor).
Não acredito minimamente na sensibilidade estética ou ideológica de Sylvester. Não recomendo nenhum tempo dispendido com este artista. A não ser que seja para o atingimento de objetivos financeiros. Afinal, em tempos de títulos sub-prime, de fundos especulativos (hedge funds) e ações chinesas, é possível que os quadros de Rambo, Cobra, Rocky e Falcon possam propiciar algum lucro. Tudo isto em detrimento dos melhores "fundamentos artísticos" - na falta de melhor termo, vamos usar este.
Por fim, fico especulando se os galeristas do Village novaiorquino vão ser atraídos pelos quadros "baratinhos" de Stallone - um Yves Klein sai por US$ 12 milhões, um Stallone custa a bagatela de US$ 90 mil. O mundo está tão complicado que posso imaginar o vasto público gay do Village se defrontando com as telas de um homenzarrão que declara docemente que "o macho americano está em extinção". Será que eles vão comprar os quadros? Afinal se trata do artista que está a simbolizar o verdadeiro crepúsculo do macho...  

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Em "Vício Frenético", Herzog Revela a América Profunda

Durante quase todo o século XX houve um progressivo crescimento da atenção dos norte-americanos sobre si mesmos, mesmo que fosse este um processo vagaroso. Em grande parte da história norte-americana o “presente” pouco importava, uma vez que o " futuro"  religiosamente formado no subconsciente nacional lhes pertencia. A crise atual da sociedade americana projeta no rosto da sociedade uma imagem que já não reflete a confiança de outrora. O futuro já não é um destino certo. Os pesadelos estão à solta e percorrem o id, o ego e o superego psicossocial.
O filme “Vício Frenético” (EUA, 2009, The Bad Lieutenant: Porto f Call New Orleans, Direção de Werner Herzog, com Nicolas Cage, Val Kilmer e Eva Mendes) é a retratação tragicomica dos vícios e mazelas que afetam a sociedade norte-americana moderna. O filme tem o mesmo nome daquele realizado pelo diretor norte-americano Abel Ferrara em 1992, mas o seu roteiro apenas guarda remota semelhança com o filme de Ferrara.
O policial Terence McDonagh (Cage) sintetiza todas as possibilidades: na tentativa de identificar, prender e acusar o autor de uma chacina de uma família de negros envolvida com o tráfico de drogas em New Orleans, Terence se envolve com drogas, chantagens, prostituição, jogos ilegais, traficantes, criminosos, policiais corruptos, velhos em decadentes casas de repouso e assim vai.
O filme combina uma visão sombria sobre os fatos, a cidade (pós- furacão Katrina), o sistema policial e legal, a complexidade do tecido social (negros, latinos, anglo-saxões e asiáticos) e a marginalização social propriamente dita. Terence nada mais é do um agente do “sistema” que sabe exatamente o que fazer, mas que está emaranhado nas teias doentes do ambiente que o cerca. Para cada passo na investigação, o diretor Werner Herzog expõe de forma crua e cômica o retrato da América. Herzog não perdoa: envolve o público e lança na sua cara os fatos como eles são. Não importa se há metáforas cinematográficas. O que importa é que não há fuga para a audiência - esta tem de rir e ficar boquiaberta sobre o estado das coisas. A escolha de New Orleans não é ocasional. É ali que a ferida foi aberta pelo furacão Katrina e mostrou para o mundo via satélite que os EUA não são mais os mesmos. Não é mais a terra da liberdade e da oportunidade. O país está como o policial Terence: viciado, negociando tudo com todos e, ao mesmo tempo, enquadrado num sistema pantagruélico que o obriga à ação.
Nicolas Cage está bem no papel central. Seu personagem é amplamente dominante e Cage cumpre bem todo a tragicomédia. Cage não é um ator de muitos recursos para representar diferentes papéis. Todavia, neste caso, o roteiro e a direção lhe caem como uma luva.
O ponto alto do filme é a direção de Herzog. O diretor alemão cumpre a tradição do novo cinema alemão e realizou um filme revelador e ao mesmo tempo cheio de obscuridade. Fosse ele americano talvez fizesse concessões ao momento da América. O povo de lá e do mundo tem de saber de toda a paranóia e doença que está a cercar o Império. Os tempos são tenebrosos e este filme faz rir e chorar daquilo que é por ora o sonho americano. Ou melhor, o seu mais profundo pesadelo.



domingo, 17 de janeiro de 2010

Guy Ritchie Wanted: Sherlock Holmes is Dead

Em 1897 foi comemorado o Jubileu de Diamante da Rainha Victoria. Esta foi a data que marcou o auge do Império Britânico, aquele que não presenciava jamais o pôr do sol. Fosse Sherlock Holmes um personagem real certamente estaria entre os convidados nobres da Rainha Victoria e seu Consorte Albert. O personagem criado por Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) simboliza como poucos a personalidade arquetípica do inglês. Holmes é amálgama de qualidades e defeitos fascinantes: arrogância, inteligência, perspicácia, intolerância, preconceito, sabedoria, frieza, humanidade, beleza, pragmatismo e assim vai. Um Império como o Britânico tinha tudo isto ao mesmo tempo. Sherlock Holmes simbolizava-o com destreza. Além disto, sobrava-lhe elegância, apesar de ser um boxer arrojado. Do meu ponto de vista, Holmes é um personagem mais provocador que o espetacular Hercule Poirot criação da escritora mais lida do mundo, Agatha Christie.

Guy Ritchie (Diretor), Michael Robert Johnson e Anthony Peckham (ambos roteiristas) conseguiram construir um Sherlock Holmes (2009, EUA, com Robert Downey Jr., Jude Law e Rachel McAdams) que mais parece um artista circense. Sua vitalidade física supera em muito a sutileza intelectual do personagem de Doyle. O que parece é que Ritchie e os roteiristas construíram o filme como se fosse uma história de quadrinhos onde o reducionismo da “fala” se justifica em função da estética visual. Ocorre que nos quadrinhos a caricatura é tudo. Num personagem como Sherlock Holmes a caricatura não sobrevive perante a “verdadeira” personagem de Sir Arthur Doyle. O que sobra é um volume gigantesco de estética (e tecnologia) sobre quase nada de personagem. E verdade seja dita: chega a ser um milagre que Robert Dowley Jr. e Jude Law tenham sobrevivido à desastrosa direção de Guy Ritchie. Ambos os atores estão impecáveis perante a proposta a qual se avizinharam.

O espectador fica o tempo inteiro com a sensação de que falta algo na estória. Afinal, esta resvala para uma pobreza de argumento e de diálogo. Todavia, o que falta mesmo é o personagem central. Ele não tem nem a personalidade do “velho” Holmes e, ao longo do filme, desfila uma série de personalidades que formam um mosaico que não forma figura. Ou seja: Sherlock Holmes está mais para Macunaíma, aquele que não tem caráter. O que lhe sobra é vigor físico e presumidas cenas de ciúmes em relação ao seu companheiro Doctor Watson. (Coitado de Watson: nada lhe é elementar, ele vaga no filme procurando se enquadrar em algo que é útil ao distinto espectador. Elementar é o próprio).

Não escrevo isto tudo apenas por se um fã da personalidade intrigante de Holmes, autêntico filho de Doyle. É possível se fazer “releituras” interessantes sobre quase tudo, mesmo que esta atividade esteja cada vez mais cansativa para os “leitores”. Contudo, o que foi feito de Sherlock Holmes neste caso foi uma tragédia no lugar de um romance policial. Coisa tão trágica que ao final dá vontade de rir da própria falta de sorte de ter ido ao cinema. Se ainda fosse Holmes um trapezista a coisa toda podia funcionar num circo ou numa festa de Bodas de Diamantes de George W. Bush. Afinal, nem Holmes, nem o Império Britânico são mais os mesmos...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Visitante: Imigrantes Salvam os Nativos

Durante a Guerra Fria o maior medo dos norte-americanos era dispensado a uma presumida vitória do comunismo sobre o style of life do país. Havia a certeza da corrida armamentista, acelerada sobremaneira nas décadas seguintes aos anos 50. Todavia, o temor militar era muito distante do argumento ideológico doméstico de que o comunismo era o “bicho papão” do modelo sócio-econômico de consumo dos EUA. Hoje, sentado na confortável cadeira do futuro, é possível afirmar que a invasão bárbara mais notória à sociedade americana é a imigração massiva, visível em qualquer centro urbano da América.
A democracia americana não é capaz de lidar com este fenômeno nos limites imaginados pelos founders fathers da nação. E muito menos está a sociedade habilitada para incorporar as multidões que invadem o país – outrora, no final do século XIX e início do XX, os imigrantes foram vistos como parte do progresso da América.
O filme O Visitante lida com este assunto de maneira dramática e é capaz de inverter os papéis com elegância e dramaticidade. Um professor universitário viúvo, entediado e indolente em suas tarefas acadêmicas tem de ir proferir uma palestra em New York. Lá vai pousar em seu próprio apartamento. É assim que descobre que lá vivem, sem o seu próprio conhecimento, um músico sírio casado com uma artesã africana, ambos imigrantes ilegais. A surpresa é que a reação do professor é serena: aceita aquela situação pacificamente e no decorrer da convivência percebe que aqueles dois personagens são capazes de resgatá-lo de seu próprio exílio interior.O risco compensou o retorno. Os bárbaros convertem-no à vida: ensinam-lhe a tocar música, a percorrer as ruas sem a indiferença em relação aos “outros” e a reacender o sabor dos prazeres mais genuínos aos viventes. A tragédia, porém, está a caminho. O sírio é preso por motivo banal e injusto e da prisão é deportado. Sem apelos e sem lei.Logo ele que resgatou um americano para a sua própria vida...
Este é um filme positivo de vez que evoca os melhores valores que tornam possível, do ponto de vista humano, a convivência com a realidade da imigração. De outro lado, mostra a incapacidade e a bestialidade do Estado e da Lei diante do fenômeno.
A interpretação de Robert Jenkins, indicado ao Oscar, é brilhante. Sua expressão dramática é não somente artística, mas política: é a cara da América assombrada pelos seus fantasmas. Fantasmas estes que não têm mais o revestimento ideológico dos tempos da Guerra Fria, mas que se corporificam nos transeuntes que batem à porta das casas dos yankees. Tudo muito explícito.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Globalização: Realidade Contrasta a Ideologia

É certo que o mundo está muito mais complexo do que desejaríamos. Há algum tempo a globalização ganhou contornos ideológicos - seria o globalismo? - o nos coloca de cara com a realidade multifacetada das sociedades. Raças, línguas, costumes, cores, nível educacional, enfim, tudo e todos se misturam numa enorme geléia geral. A questão fundamental e que poucos estão dispostos a formular é: será que este novo mundo vai dar certo?
A distância entre classes sociais, dentro da maioria dos países, as relações multilaterais entre países ricos e pobres e os padrões culturais em interação nas diversas sociedades são apenas algumas das facetas que indicam as enormes dificuldades para se crer na globalização como um fenômeno passível do sucesso imaginado por uma gama de ideológos. Esta pode até ser inevitável, mas pode ser um imenso insucesso.
Um brasileiro de classe média tem o padrão de consumo de um trabalhador alemão. Nestes dias conheci um motorneiro de bonde suiço que faz turismo ao redor do mundo. Um motorista de ônibus de São Paulo certamente teria de fazer muitas contas para ajustar o seu orçamento aos seus planos de turismo global. A natureza deste tipo de diferença é barreira severa aos auspícios da globalização. Afinal, estaria o motorneiro suiço disposto a sofrer uma efetiva concorrência de seu colega motorista de São Paulo?
A multiculturalidade exige altas doses (e contínuas) de aceitação do outro como ele é. Esta alteridade pode ser um desejo ideológico da ONU, mas não consigo ver esta batendo na porta dos interesses mais imediatos dos cidadãos dos países ricos. A divisão internacional de trabalho estabelecida há pelo menos dois séculos criou uma vala enorme entre os homens ricos e pobres que é difícil imaginar eles batendo papo sobre suas diferenças, digamos, culturais. Ricos e pobres podem até usar telefones celulares e cartões de crédito com chip, sinais inequívocos da globalização. Daí a isto ser um sinal de que as coisas vão bem, vai uma distância amazônica...
Uso estas poucas linhas para levantar a suspeita de que há um grande engodo que está apenas no começo. Trata-se da globalização. Não estamos enfrentando este processo, analisando sobre o que fazer e pensando sobre suas variáveis. O que estamos mesmo a fazer é substimando os seus efeitos e levianamente confiando de que tudo isto vai dar certo. Pode não dar.

domingo, 10 de janeiro de 2010

O livro Uma Nova República - História dos Estados Unidos no Século XX (A New Republic - A History of the United States of America) de John Lukacs é daqueles compêndios de idéias e reflexões que nos tornam de facto capazes de pensar e elaborar sobre o presente a partir de um compreensivo entendimento do passado. O livro foi escrito em 1984 e revisado em 2004 e claramente há de sobreviver outros tantos anos.
Lukacs ora definha os fatos históricos do século XX, o século da América, com uma visão antropológica ou social, ora extrai da política a melhor explicação sobre os fatos. Não há ortodoxia na sua visão, mas também não há concessões às facilidades mentais tão notórias quando alguns tentam explicar coisas e fatos complexos como se tivessem a vender peças de roupa prêt-à-porter. A leitura da imprensa sobre o tema, por exemplo, é sofrível, muito abaixo da média.
O gigantesco volume de análises recentes sobre o declínio do império americano carece de uma reflexão como a de Lukacs. Afinal, os eventos que formaram o caráter da América que prevalece sobre o mundo se formou quase todo no século XX e por razões que necessitam ser conhecidas para que se possa analisar com efetiva propriedade se e por que os EUA estão numa fase de declínio. O incrível é que embora não seja um tempo tão distante, os fatos do século XX ainda não foram consolidados e refletidos em grande parte da cabeça das pessoas - há uma legião destes que acreditam ser portadores da "verdade histórica". Dou um exemplo: para muitos pensadores marxistas, a revolução de outubro na Rússia determina o marco decisivo no pensamento social do século passado. É como se Lênin fosse o messias a delimitar os acontecimentos posteriores, sobretudo nas sociedades ocidentais. Todavia, como nos ensina Lukacs em seu livro, 1917 também marca a entrada dos EUA nas batalhas da Primeira Guerra Mundial. Daí para frente, a América se consolidou como o país prevalecente, seja do ponto de vista geopolítico, econômico, militar e cultural. Neste meio tempo, ocorreu a depressão pós-29, a Segunda Guerra Mundial e a reconstrução da Europa pós-guerra, em tese "menos importantes" quando se analisa a formação do Império norte-americano. Como se vê, entender os fatos de 1917 não é tão óbvio quando inicialmente poderia parecer. A começar que a Rússia comunista caiu. Tombou junto com as estátuas de Lênin.
Por fim, como é bom mergulhar num livro que nos permite pensar e que não tenta nos atrair para nenhum tipo de modelo mental previamente construído. Estou convencido que este é um dos mal du siècle que mais nos persegue, sendo que muitas vezes estes modelos pétreos nos são vendidos com a aura de "liberais". Não são. São como feitores de escravos modernos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Viva Zapata! Um Centenário Para Lembrar

Não apenas o centenário de fundação do Corinthians merece relevo. Dentre as muitas datas que serão lembradas este ano, uma que talvez não ganhe relevância na mídia e nas mentes seja o centenário do início da revolução mexicana de 1910. Esta é uma data revestida de significados na medida em que esta foi uma revolução que ocorreu em meio ao primevo desenvolvimento industrial de um país. O chamado país de capitalismo tardio.
Sob a presidência de Porfírio Diaz (por mais de trinta anos, a partir de 1876) o país tinha iniciado um processo de enormes investimentos em infra-estrutura e no setor industrial, os quais foram viabilizados pelas grandes empresas estrangeiras, sobretudo norte-americanas e inglesas. O ditador Diaz bancava a ordem, enquanto as empresas transnacionais viabilizavam o progresso. Como se vê, uma forma ideológica conhecida pelos nossos lados.
A revolução mexicana perdurou por quase dez anos, desde a tentativa eleitoral de Francisco Madero o qual pediu a introdução de uma reforma agrária e a renúncia de Porfírio Diaz até o assassinato de Venustiano Caranza em 1920. Todavia, os personagens mais marcantes da revolução foram Pancho Villa o qual tentou tomar o poder por meio de um golpe e Emiliano Zapata quem controlava a guerrilha rural e adepto de uma reforma agrária radical. Villa liderou a revolução a partir do norte do país e Zapata a partir do sul.
A revolução mexicana consolidou uma ideologia anti-clerical e nacionalista. Todavia, a Constituição dos Estados Unidos Mexicanos de 1917 pode ser considerada como a primeira que consolidou a doutrina da segunda geração dos direitos sociais e civis iniciada pelo lançamento do Manifesto Comunista (1848) e pela Encíclica Papal Rerum Novarum (1891). 
Chamo a atenção para a data de vez que esta comemoração evidencia o atraso da agenda social, política e econômica da América Latina como um todo. A quase totalidade dos temas que engendraram a revolução mexicana, sobretudo a influência do capital estrangeiro, a reforma agrária, a profunda desigualdade entre ricos e pobres, a compressão da classe média, a funcionalidade do processo eleitoral, a ausência do Estado na tutela dos direitos, a legitimidade dos governantes e a viabilização de um modelo de desenvolvimento mais equilibrado permanecem na agenda de todos os países latino americanos. Sem exceção.
Num ano eleitoral como será 2010 aqui no Brasil nada melhor que dar uma olhadinha na história mexicana e lá encontrar muita fonte para reflexão e ação.
Por fim, lembro aos cinéfilos o filme Viva Zapata! (1952) dirigido com brilho por Elia Kazan e escrito por John Steinbeck. Os jovens e arrojados Marlon Brando (Emiliano Zapata) e Anthony Quinn (Eufemio Zapata) estrelam um filme que marca uma visão de fora do México sobre os acontecimentos revolucionários da década de 1910. Vale a pena ver e afinar o espírito crítico.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Não Há Tensão em Procurando Elly

Fui assistir ao filme iraniano Procurando Elly (2009, Direção: Asghar Farhadi, com Golsfifteh Farahani, Shahab Hosseini e Taraneh Aidoosti) com duas expectativas. A primeira era a de verificar a qualidade da produção de um país oriental subdesenvolvido do ponto de vista econômico, mas com enorme tradição histórica e cultural. De outro lado, gostaria de ver o quão crítico pode ser um filme de um país submetido a um forte regime teocrático, muito embora existam eleições para o parlamento e para as lideranças do Estado e do Governo. Como se vê, estas seriam curiosidades "naturais" e, até mesmo, comuns para os que escolhem este tipo de filme para assistir.
Saí do cinema frustrado em relação às duas curiosidades prévias. A produção é relativamente pobre, não propriamente em função dos recursos disponíveis, mas pela ausência de uma correlação mais coerente entre a "estética" e o conteúdo dramático da estória. Isto retira a tensão necessária à atenção do distinto público, sobretudo em países com culturas tão diferentes. Em suma: a execução do filme não "prende" a audiência.
No que se refere ao desenvolvimento do roteiro até que há um ritmo intrigante ao espectador: um jovem iraniano que mora na Alemanha está em férias no seu país natal e vai passar um fim de semana com seus amigos (a maioria com família constituída e com filhos). Há uma convidada especial, Elly, que a certa altura desaparece, fato este que proporciona uma confusão significativa. Em meio a tudo isto, vão surgindo fatos relacionados com Elly que ora deixam os viajantes paralisados e ora há ação demais. O problema deste roteiro é que foi perdida uma excelente oportunidade para o exercício de certo espírito crítico em relação à condição da mulher e das famílias no Irã moderno. Claramente o filme não transpõe a estória de seu significante para seu significado. Ou seja, há um aborto de  natureza ideológica e cultural que enterra todas as (maiores) possibilidades do filme. Até mesmo para confrontar culturas (no sentido positivo do termo).
Fiquei com uma sensação de frustração e inquietação. Houve censura em relação ao filme? Ou a direção voluntariamente reduziu a ambição crítica do roteiro?
O Irã é uma país inquieto como sabemos. A revolução islâmica de 1979 liderada pelo Aiatolá Khomeini ao longo das últimas três décadas mostrou-se insuficiente para retirar do país o legado das correntes ditatoriais  deixadas pelo Xá Reza Pahlevi no período entre os anos 50 e o final dos 70. Derrubar velhas ordens parece bem mais fácil que construir as novas. O país hoje parece engessado pela tutela do poder teocrático islâmico e a supra-estrutura cultural parece ser a perfeita representação desta realidade. Ainda bem que não há saudades dos tempos do ditador anterior.
Para nossos olhos e ouvidos que assistiram a este filme neste país abaixo do Equador resta-nos a sensação de que devemos continuar Procurando Elly. Mesmo porque ela parece bem perdida em meio à realidade do "moderno" Irã.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Ler Hamlet Sempre!

Não há como comparar nenhuma outra obra literária à peça Hamlet de William Shakespeare. Esta extrapola todas as expectativas que possam se formar em torno de qualquer outro escrito. Nestes dias em que o questionamento mais profundo da realidade íntima e  social do ser humano passa por tantas terapias e teorias, de Freud aos livros de auto-ajuda, Hamlet nos surpreende pela sua atualidade e pelo espanto do quanto o Príncipe da Dinamarca fala da alma humana. É possível ver o personagem de Shakespeare de muitos ângulos muito embora sejamos seduzidos pela sua figura trágica.
Nos diálogos da peça e na perseguição do fantasma, Shakespeare é capaz de extrair de cada um dos personagens as suas virtudes e os seus defeitos, aquilo que é lúcido ou, ainda, a loucura de cada um. Por meio desta extração somos capazes de nos elucidar e sair da prisão de nosso cotidiano.
Hamlet é uma peça que deveria ser lida e/ou assistida todas as vezes que as nossas inquietações estiverem à bordo de nossa consciência. Assim saberemos emergir, a cada vez,  com inéditas lições que nos inclinarão à ação. Como nos ensina Paul Johnson no seu magnífico livro de ensaios Os Criadores, " ninguém consegue assistir a uma encenação de Hamlet e absorver sua mensagens - sobre a fé e a maldade humana, sobre a cobiça, malícia, vaidade, lascívia; sobre a regeneração e arrependimento, sobre o amor e o ódio, procrastinação, pressa, honestidade e engano; sobre a lealdade e traição, coragem, covardia, indecisão e paixão intensa - sem se emocionar e ficar profundamente pertubado. [...] Hamlet, o jovem gênio confuso e essencialmente benevolente, é imortal, correndo rumo ao céu [...]."
Senti-me inclinado a escrever estas breves linhas ao me defrontar neste início de ano com tanto sofrimento humano ao redor do globo e, especialmente, diante da imposição das agruras vindas dos céus chuvosos. O sofrimento é inerente à humanidade. Nem sempre a ação é - e é por esta razão que recorro ao personagem mais famoso de Shakespeare. Ele amava agir.
Acredito que a alegria é uma virtude, não apenas um sentimento consciente ou inconsciente. No mundo moderno, há ausência de alegria e do pacífico marasmo do espírito. Parece que vivemos em um constante tsunami interior fruto da violência, do desamor, da falta de generosidade, da deselegância, da ausência de caridade e da falta de boa-fé. Ora, estão aí os nossos fantasmas a percorrer os dias e as noites. (E não apenas nos cemitérios). Tal qual no Ato I, cena IV de Hamlet quando ele vê o fantasma e grita com furor: "Anjos do céu, correi em nosso auxílio!" e, uma vez revelada a mensagem daquele fantasma, inicia-se o tormento interior do Príncipe da Dinamarca. Um tormento a nosso favor, à disposição de nossa reflexão. Este tormento não dista daquela que estamos a viver diante das ameaças dos homens. 
Não acreditem que Hamlet exacerba as nossas angústias. Ele apenas revela a nossa própria realidade e, ao desejar as mais profundas chagas para si mesmo, nos dá vastas portas de saída. Shakespeare, apesar de ser um gênio, nunca tentou criar ou disseminar o "novo" ou um "sistema". O escritor inglês valorizou o homem, desnudando-o e engajando-o em tarefas que podem aperfeiçoar o seu caráter e dar esperanças à vida interior e social. Vale a pena lê-lo sempre, mesmo que não sejamos capazes de captar todas as lições que estão disponíveis a nossa frente! Como diz a sentença de um dos personagem de Shakespeare, " melhor um tolo espirituoso do que um espírito tolo." 

domingo, 3 de janeiro de 2010

Uma Receita de Lentilhas da Umbria

O Mediterrâneo nos deu quase tudo. Não precisa ler os livros de Fernand Braudel sobre aquele mar para ter esta compreensão. Basta experimentar as sensações que habitam as cercanias daquele mar azul turquesa. Dentre os inúmeros presentes mediterrâneos que estão a nosso dispor, estão as lentilhas. Estas vieram do oriente, mas foi lá no mediterrâneo que o seu cultivo deu os melhores frutos.
A lentilha saboreada no início do ano reveste-se de um simbolismo especial: dá sorte e fortaleza para que sigamos em frente no novo ano. A Umbria é uma região montanhosa da Itália e revestida de imenso misticismo e de muita afeição pela natureza. Não à toa, São Francisco, filho de Assis, é o padroeiro de tudo ligado à natureza em função de sua santa afeição pelas coisas da terra que vivem em harmonia. Um santo da antiguidade e que já pensava moderno.
Mesmo que de forma tardia (já se passaram três dias da virada do ano), dou a receita de lentilhas da Umbria. Trata-se a lenticchie di Castelluccio con salsicce. Vejam se não vale a pena.
Repouse as lentilhas (verdes, de preferência) por pelo menos doze horas em água (inicialmente) morna e com um pouquinho de sal. Depois, na hora de fazer o prato, pique uma cebola e um talo de aipo e os deposite na panela com azeite fervente. Deixe que ganhem a cor dourada. Junte as lentilhas (300g) escorridas e massa de tomate (150g). Deposite na panela caldo de carne (1 litro) e tampe a panela. Em fogo brando deixe esta mistura cozinha por uma hora. 
Separadamente, frite (sempre com azeite virgem) linguiças toscanas (de 4 a 8, a gosto do freguês).
Na hora certa, junte as lingüiças e as lentilhas e tempere à gosto com sal e pimenta. Sirva numa vasilha de barro e decore com folhas de manjericão. 
O prato simples está pronto. A sorte vem com o tempo e com o trabalho. 

Ervas Daninhas e as Brincadeiras de Alain Resnais

O cineasta francês Alain Resnais aos 87 anos é um inovador (in)constante. Seu filme Ervas Daninhas (Les Herbes Folles, 2009, França, com Sabine Azéma, André Dussolier, Emmanuelle Devos e Mathieu Amalric) é mais uma nova expressão sobre a forma de um filme. Esta pode variar tanto que é possível desconstrui-la, muito embora esta seja uma palavra perigosa diante das infinitas possibilidades que a lente de um diretor pode adotar.
O roteiro de Ervas Daninhas conta-nos uma estória banal de um homem que encontra a carteira de documentos de uma mulher que tinha sido assaltada em Paris. A partir deste simples enunciado, Resnais vai construindo uma série de cenas e pequenas estórias que se intercalam e que podem ou não sugerir um caminho racional. Se ao assistir a película, você enveredar por um dos caminhos propostos por Resnais, muito possivelmente haverá uma sensação de irracionalidade a percorrer os olhos e a mente. Trata-se, acredite!, de uma trapaça. Afinal, o diretor não tem ali nenhum compromisso com estruturas e roteiros. Apenas se mostra  nas magníficas construções cênicas e dramáticas vistas de forma isolada ou conjunta. O resto é sensação e das boas! Puro hedonismo para os cinéfilos.
Isto me lembra um livro que li (Escritura e Nomadismo) há não muito tempo com um conjunto de entrevistas de Paul Zumthor (1915-1995) um dos maiores teóricos de literatura comparada - ele é muito mais que isto. Em certo trecho, comentando sobre poesia sonora, ele afirma que "a performance é virtualmente um ato teatral, em que se integram todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe." Pois bem: de uma forma geral, e neste filme em particular, a obra de Alain Resnais é exatamente isto. Um ato teatral com variadas expressões no qual a experiência de cada detalhe é a própria obra. Não está ali para explicar nada. Ao contrário, se puder complicar, melhor ainda. Não à toa no filme a dentista pilota aviões, o personagem central é um "dono de casa" que oscila entre o desejo de ser criminoso ou fazer o bem e seguir a Lei e há também espaço para a metalinguagem  onde o cinema é visitado pelo próprio cinema. Desta salada de frutas, sai....um bolo de nozes...
Obviamente, este tipo de experiência não pode ser plenamente realizada num contexto em que a audiência espera um "resultado" para cada cena ou para a estória como um todo. Caso exista esta "ansiedade da razão" é bem provável que a "leitura" sobre o filme seja negativa. Vai de chato a irracional, neste contexto onde a mente tenta seguir a própria razão. Do meu ponto de vista,  é grande engano tomar este caminho.
Resnais é um brincalhão e sabe tirar proveito de todas as possibilidades do cinema. Algumas vezes brinca com o roteiro (como no caso de Ervas Daninhas), outras vezes com os personagens (vide Medos Privados em Lugares Públicos), ou ainda, com a própria estrutura cênica (é o caso de Providence) e assim por diante. É preciso mergulhar de alma e corpo nas brincadeiras de Alain Resnais. Afinal, cinema é (ou pode ser) coisa séria. Não é mesmo?

sábado, 2 de janeiro de 2010

Hanami, Cerejeiras em Flor: a Vida e Nada Mais

 O filósofo francês Gilles Lipovetsky em seu livro de 2004 Tempos Modernos escreveu: "A partir do final dos anos 70, a noção de pós-modernidade fez sua entrada no palco intelectual [...]. O neologismo pós-moderno tinha um mérito: salientar uma mudança de direção, uma reorganização em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades democráticas avançadas. Rápida expansão do consumo e da comunicação de massa; enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; surto da individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda de fé no futuro revolucionário [...]. De um lado, os indivíduos, mais do que nunca cuidam do corpo, são fanáticos por higiene e saúde, [...] o consumo anômico, a anarquia comportamental." Não resta dúvida de que este é o comportamento social que prevalece nos países mais desenvolvidos, bem como dentre aquilo que poderíamos denominar de "classes burguesas" dos países subdesenvolvidos (ou emergentes, para quem se sentir melhor com o termo).
O filme Hanami, Cerejeiras em Flor (Alemanha-França, 2008, direção de Dorris Dörrie, com Hannelore Elsner, Maximilian Brückner, Felix Eitner, Birgit Minichmayr, Elmar Wepper) é uma espécie de "flor de lótus" em meio aos tempos hipermodernos em que vivemos.
O roteiro transcorre a partir de quando a Trudi é informada sobre a doença terminal de seu marido Rudi. Todavia, quem vem a morrer sob o sono da noite é a própria Trudi. O casal estava em uma espécie de lua de mel, a visitar Berlim, seus filhos (mais do que crescidos) e a praia. Trudi tentava resgatar para o casal um pouco do tempo que lhes restava juntos. Isto sem que Rudi tivesse consciência deste resgate. Depois da morte de Trudi, Rudi empreende uma viagem ao Japão onde mora o seu filho caçula Karl. Esta era uma viagem desejada por sua esposa. Em Tóquio e em seus arredores, Rudi experimenta sensações e lembranças de sua esposa. Ali, ele pode concretizar, mesmo que de forma metafórica, a experiência do amor, da esperança e do próprio tempo. No filme, sobra simbolismo e os detalhes mais sutis do espírito. 
O mais notável do filme a meu ver é a coragem da diretora Dorris Dörrie em projetar uma doce humanidade, por meio de Rudi e Trudi (e algumas coisas mais), em meio à ausência de tempo de seus filhos, da aparente modernidade das relações familiares, da arquitetura da cidade, da tecnologia moderna que em tese facilita a vida e do individualismo extremado dos seres frente aos mais básicos sentimentos humanos (e de suas necessidades). Dörrie já tinha feito isto com muito humor na comédia Homens de 1985. Naquele tempo, eram os homens a direção de sua ironia. Logo os Homens , os machos que foram surpreendidos pela modernidade (?) das mulheres. Desta feita Dörrie recorre à própria realidade para mostrar as virtudes mais, digamos, "arcaicas": a doçura, a generosidade, a percepção do "outro", a delicadeza, o amor e um pouco de esperança. Daí o nome Hanami, literalmente em japonês "olhar as flores".
Este é um filme sobre o quanto é efêmera a vida frente ao declínio que surge tão logo nascemos. Surge, assim, a desesperança, fruto de um construção social e individual fruto das impossibilidades surgidas quando os seres acreditam que chegaram ao fim da história, a hipermodernidade. É aí, em meio ao relento, que Dörrie resgata a beleza da vida. O custo deste resgate é conversão dos homens a sua própria humanidade.
Nestes dias em que nos empolgamos com o fantástico espetáculo tecnológico de Avatar, nada melhor que retornarmos um pouco a nossa alma obscurecida pelo que Lipovetsky descreve no preâmbulo desta nota. Nos últimos anos, a aceleração do desenvolvimento não trouxe muitas "descobertas", apenas nos motivou para o hedonismo e o conforto. Aparentemente, a grande conquista a ser feita nos próximos tempos é a do próprio homem.