Leio nos jornais que Jerome David Salinger morreu. Noto que o personagem Salinger é tratado pelos críticos e literatos como mito, possivelmente fruto de sua misteriosa vida que, por sua vez, seja fruto de sua obstinação pela reclusão na cidade norte-americana de Cornish, no estado de New Hampshire.
De outro lado, é igualmente notório que o imaginário personagem de sua principal obra de 1951, O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye), Holden Caulfield, tenha se tornado uma realidade na medida em que se atribui a este personagem a inspiração para toda uma geração. Além do fardo de ser uma espécie de aliciador de paranóicos como Mark Chapman, aquele tresloucado que matou John Lennon em 1980. Com Chapman foi achado um exemplar dO Apanhador. Mais combustível a alimentar a horta da mitologia em torno de Salinger.
Vejam bem: J.D. Salinger um mito. Seu personagem Holden Caulfield, algo real, nada ficcional.
Desconfio severamente de toda a mitificação, não exatamente porque esta não aconteça, mas em função da obscuridade que recai sobre aqueles que se propõem a desvendar o mito. Este acaba por devorá-los tal qual a esfinge. Assim, fica-se sem o real e sem o mito.
Lembro neste ponto um texto contido no livro Mitologias (2007) do escritor e semiólogo francês Roland Barthes sobre o poeta trágico Jean Baptiste Racine (1639-1699). O nome deste pequeno texto é Racine é Racine. Escreve Barthes: "Nossos críticos essencialistas passam o tempo a reencontrar a "verdade" dos nossos gênios passados; a Literatura é para eles uma vasta loja de objetos perdidos, onde as pessoas tentam localizar alguma coisa. " Barthes atribui isto a uma tautologia pequeno-burguesa que "dispensa ter idéias".
O personagem dO Apanhador, Holden Caufield pode ser até expressão do niilismo da vida burguesa de uma era ou dos anos pós-II Guerra, bem como o célebre livro de Salinger é de fato um livro bem escrito. Todavia, permitam-me a partir deste modesto blog duvidar sobre a decantada e imensa influência de Salinger sobre os fatos sociais e políticos da geração pop. Prefiro acreditar no Zeitgeist (espírito do tempo) que é capaz de formas múltiplas propiciar condições para que a sociedade e os indivíduos se movam à frente, para trás ou para a esquerda e direita. Um livro como O Apanhador é que está neste espírito e não o espírito que é saído dele. Os tautologistas burgueses (com uma nova permissão de Barthes), deveriam arregaçar as mangas e desmistificar J. D. Salinger. Deveriam parar de alimentar com a sua preguiça mental o mito Salinger e refletir sobre ele com um pouco do niilismo de Holden Caufield.
Por fim, há um risco adicional em tudo isto: Salinger teria muitos escritos inéditos. Enquanto estes estiverem escondidos pelas gavetas da casa dele em Cornish, prevalecerá toda esta mitificação do autor norte-americano. Será que alguém está disposto de mergulhar na obra de Salinger e descobrir que os anos 50 ou 60 seriam iguais aos que foram sem que existisse a obra dele? Ou que os anos 60 não passaram de um passeio pela selva e anti-civilização? Por Deus, a turma hippie trabalha hoje em Wall Street... Como diz o próprio Holden Caufield: "As pessoas batem palmas pelas coisas erradas."
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
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