segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Avatar, Demasiadamente Humano

Se Avatar (2009, com Sam Worthington, Sigourney Weaver, Michele Rodriguez e Giovani Ribisi), vale o meio bilhão de dólares gasto, somente um excepcional especialista em tecnologia digital aplicada pode avaliar. Uma coisa é certa: o filme em 3D impressiona pela qualidade estética e pela execução cênica, dentre os seus enormes méritos. É difícil mensurar onde está o valor da mão do diretor  James Cameron (o mesmo de Titanic) e dos respectivos técnicos e qual é o valor da tecnologia usada na consecução do filme. Aparentemente, o público já o consagrou na medida em que apenas no primeiro fim de semana a bilheteria de Avatar alcançou a cifra de pouco mais de US$ 260 milhões, sendo cerca de US$ 80 milhões apenas nos EUA. Não serão as palavras escritas de um blog que poderão transmitir a experiência de ver o filme. É preciso ir assisti-lo para que a pretensão maior de Cameron - arrebatar a admiração do público pela sua execução tecnológica - possa de realizar de fato. Este objetivo é alcançado - bem vindos ao mundo pós-moderníssimo!
De minha parte, o que me chamou a maior atenção foi o roteiro do filme, este também escrito por James Cameron. Nele a criação é uma bem realizada transposição para o campo do fantástico da realidade humana que mais facilmente possamos garimpar no nosso cotidiano ou nas páginas de qualquer jornal no mundo. Neste estrito sentido, não há novidade no filme. Avatar reproduz todas as ambições mais mesquinhas do ser humano desde que Adão e Eva traíram o Criador. 
Pandora, o imaginário planeta onde se passa o filme, poderia ser facilmente a Terra nos seus primórdios (históricos e, possivelmente, imaginados). Cameron seria o desconhecido autor do Gênesis, o primeiro livro sagrado da Bíblia. Não há para o homem, conforme infelizmente aprendemos cotidianamente, limites aos rancores, ambições desmedidas, maldade e assim por diante. 
Cameron, não roga nenhuma praga aos seres humanos que tentam colonizar Pandora e os seus clãs nativos, os Na´vi, estes também humanos "geneticamente modificados". Apenas deixa os terráquios agirem como sempre: sob o signo da aventura movida pelo egoísmo desmedido e no uso da mais corriqueira arma de conquista, a violência. Ah sim! Na tentativa de conquistar Pandora, a força-tarefa humana (bélica), a serviço do "capital privado", não respeita sequer a árvore da vida (Eywa). Por estes lados de nosso planeta, aqui e agora, há lugar para Deus?
Bem, há ainda a conversão de certo conquistador (Jake Sully) a partir da iluminação de sua mente pela agonia dos conquistados. Sim, há o Amor, Agápe, aquele que Platão tão bem descreveu. (Sully ama além de sua própria amante, a princesa Neytiri).
O filme me lembrou a aventura de Bartolomé de las Casas (1474-1566), o frade dominicano que viajou com Colombo na sua segunda expedição à América. De las Casas começou participando das expedições que escravizavam os índios. Depois, por tudo que de trágico viu, tornou-se o ferrenho defensor dos direitos dos índios junto à Espanha, ao trono poderoso de Roma e a toda a Igreja Católica. Escreveu um pequeno livro, Confesionario, no qual pregava que antes de se confessar os cristãos deveriam libertar os seus escravos (muitos deles índios). Foi um denunciador da barbárie da colonização da América Latina e escreveu com brilho sobre a pureza da alma indígena. Bem, a América poderia ser Pandora e de las Casas poderia ser Jake Sully. Como se vê, não há nada de novo no front imaginado por Cameron em Avatar. Ele retrata com cores vibrantes, desta feita colorações tecnológicas, uma história já conhecida. Quanto mais alienígena se torna o ambiente com o qual se defrontam os conquistadores de Avatar, mas próximos eles estão das antigas e trágicas conquistas históricas cá na Terra. Dos faraós até George Bush, pai e filho.
Avatar é um filme magnífico. Merece ser visto no detalhe. A trilha sonora é de James Horner (que também escreveu as notas musicais de Titanic e Aliens). A música é incrivelmente, digamos, proporcional à épica do filme. Reveste a imagem 3D com um agradável sabor.
Vejamos como reagirão as multidões que estão a comprar ingressos da obra de Cameron. Espero que possam ir além da óbvia sensação de grandiosidade das imagens e, por assim dizer, possam captar a pequeneza do ser humano frente aos seus pares geneticamente modificados. Afinal, quando as imagens tridimensionais de Avatar se aproximam dos rostos dos expectadores é certo que não dá para pegá-los no ar. Mas, se pudéssemos alcançá-los com as mãos, não seriam outras imagens senão as nossas mesmas.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

"Justiça sem Limites" Põe a América no Banco dos Réus

Boston foi berço da Revolução Americana e de onde saíram idéias que marcaram o desenvolvimento político, social e econômico da maior nação do mundo. Além destes marcos históricos de peso, é lá a sede da série de TV Justiça sem Limites (Boston Legal, com James Spader,William Shatner e Candice Bergen, produzido por David E. Kelley).
A América se tornou império há pouco mais de 50 anos. Há pelo menos dois séculos, muitos pensadores ainda pesquisam e tentam entender o fundamento-mor do extraordinário desenvolvimento dos EUA. A Grande República do Leste nasceu e cresceu de maneira espetacular. Rejeitou o absolutismo e a monarquia, logo na sua independência política em 1776, bem como na Constituição de 4.400 palavras de 1787, e baseou-se no idealismo da Liberdade e Justiça para construir um modelo extraordinário de civilização e crescimento. A República nunca sucumbiu a nenhum atentado que colocasse as suas sólidas instituições sob qualquer jugo que contrariasse os princípios constitucionais. Suas crises políticas, sociais e econômicas nunca retiraram do povo americano os ideais nacionais. Num país complexo que absorveu imigrantes de todas as partes do mundo e que teve na escravidão o mais importante marco contra a civilização pós-1789.
Apesar desta história bela e marcante não são poucas as contradições daquela sociedade. A América ainda é o mais desigual país de primeiro mundo, o menos universal e o símbolo de um individualismo que vai além dos direitos civis e resvalou para excesso de consumo e apreço excessivo pelos bens materiais. Nem se fale de sua dificuldade para exercer o seu papel imperial no mundo. É difícil para a América sair de suas raízes provincianas.
Justiça sem Limites é uma série que examina com enorme humor estas contradições da sociedade norte-americana. Os cases nos tribunais nada mais são que um contundente exame do espírito da América. Muito além da reflexão de Max Weber no seu livro clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904).
Pelas bancas forenses de Justiça sem Limites desfilam personagens que ilustram as glórias e as mazelas da sociedade americana. Pouco importa quem ganha e quem perde. Os personagens do escritório de advocacia Crane, Poole & Schmidt, bem como os seus clientes são amostras que compõem a alma (sadia e doente) da América. De forma crítica e, muitas vezes bizarras, advogados e clientes são a face visível, mas não totalmente compreendida, dos próprios expectadores norte-americanos. A sexualidade que oscila entre a perversão e o puritanismo, o apreço ao uso da armas de fogo, as causas milionárias (e muitas vezes absurdas), a obesidade mórbida, o consumismo exagerado, a contradição entre a ética e a lei, o poder do dinheiro e, assim por diante, -  tudo está nos capítulos de Justiça Sem Limites. Aparentemente, a América ri – já são cinco temporadas! Resta saber se a crítica lhes causa assombração sobre o que é a sociedade americana. Para o bem e, infelizmente, para o mal.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A Simplicidade da Sicília: Tonno Alla Palermitana

Sou fascinado pela Sicília. Naquele lugar onde a maioria dos lugares históricos é composta pelas obras da Grécia Clássica, os valores da sociabilidade, a famiglia, o sol escaldante, o mar (!) a solidão de seus planaltos e montanhas e as pedras adornadas pela típica vegetação se constituem em um cenário desprovido de realeza, mas recheado de sabores. Sempre resgato do fundo de minha mente as imagens da região compreendida entre o mar e Agrigento, cujo nome é Káos (dado pelos gregos). Lá repousam os templos e os anfiteatros helênicos de onde Luigi Pirandello extraiu a maior parte de sua obra. Pirandello era um burguês rico que, apesar da educação tradicional, se recobriu dos pendores históricos da Sicília onde nasceu. È certo que aquela ilha nos arrasta para algo além de suas aparências. Caímos em suas entranhas e de lá parece que nunca saímos.
Na culinária, a Sicília surge de forma especial. Há muitas predileções e caprichos por lá. Uma delas são os petiscos e os pratos simples. Destes surgem sabores surpreendentes. Parecem tão óbvios. De fato, somente quando provamos o significado desta simplicidade é que mineramos uma sensação extraordinariamente compensadora e, portanto, nada óbvia. Os sabores vêm de muitos povos que por lá passaram e se conservam nos pratos exóticos, simples, coloridos, aromáticos, daquela misteriosa ilha.

Façamos então, em homenagem à simplicidade siciliana, um Tonno Alla Palermitana (Atum à Moda de Palermo). Vejamos.

Coloque numa tigela um copo de vinho branco seco, o suco de um limão siciliano, alecrim (um ramo), um ou dois dentes de alho (recortados da parte central e esmagados) e um pouco de sal e pimenta. Corte 600 gramas de atum fresco em bifes e, depois de bem lavá-los,, coloque na tigela para marinar. Deixe por boas três horas.
Com cuidado retire as partes do atum da marinada e deixe escorrer. Depois grelhe os dois lados, salpicando-os com a marinada. Com cuidado e atenção, diga-se. Depois reserve o atum numa travessa.
Aqueça seis colheres de azeite numa frigideira, junte três filés de anchova italiana e com uma colher de pau vá desfiando-as até que esta mistura se torne uma espécie de pasta.    
 Despeje a pasta de anchova sobre o atum, acrescente um pouco de alecrim e enfeite o prato com rodelas de limão siciliano. Sente-se à mesa e chame os seus para saborear o atum com um belo vinho branco. Há algo mais simples e belo a fazer neste momento portentoso? 

Borges: biografia e sentimento

Escrever a biografia de alguém é tarefa hercúlea. Dados, depoimentos, informações, datas são excepcionalmente difíceis de serem compiladas, analisadas e confrontadas. Mais difícil ainda é traçar um perfil que se aproxime ao máximo daquilo que poderíamos chamar de realidade ou verdade (factual e do próprio perfil do personagem real). De certa forma, o biógrafo é um pretensioso. Há certa arrogância em acreditar que é possível reconstituir a história de alguém. Sobretudo, dos mortos.
O Olhar de Borges: Uma Biografia Sentimental, escrita por Solange Fernández Ordoñez (Editora Autêntica, 2008) é um livro muito bem escrito e que retalha aspectos, ou na própria expressão do título, um olhar do (e sobre o) escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
Tenho para mim que Borges está entre os três maiores escritores latino-americanos do século XX - os outros seriam, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Gabriel Garcia Marquez). Dos três citados, Borges é certamente o mais universal. Escreveu a partir de sua Argentina para todos e sobre todos. Certos recantos ideológicos da América Latina o acusavam inclusive de não ser um escritor latino americano do ponto de vista literário. Bobagem. Talvez isto se deva a extraordinária cultura de Borges, o fato de ter dominado várias línguas (e autores) ao mesmo tempo em que se iniciava na língua portenha e de ter vivido por alguns bons anos na Europa. Borges é infinito, belo, transcendental, rico, elegante e seus escritos nos transportam para a beleza da arte e da vida. É um genial escritor. O resto é ideologia barata.
Esta biografia me fascinou. Confesso que a comprei há algum tempo e a mantive em minha estante por mais tempo que devia. Olhava para ela e me perguntava como alguém poderia escrever "uma biografia sentimental". Ora, ao abrir os primeiros capítulos logo percebi que aquele exílio do livro em minha estante nada mais era que um arrogante questionamento literário.
Um Olhar de Borges é simplesmente um livro magnífico. Consegue ao mesmo tempo, localizar Borges no tempo e espaço e, sem torná-lo hermético, nos transporta para o fundo da alma do autor. O livro é baseado em cadernos de anotações de Borges e a partir dos quais a autora retrocede no tempo e se aprofunda no autor a partir dele mesmo. Portanto, se não é preocupação essencial do livro a cronologia, é certo que ela consegue extrair daquelas letras dos cadernos muito além do que os fatos, os dados, as informações, poderiam nos mostrar sobre Borges (e sua obra). Assim, o texto da biografia sentimental desliza das páginas dos cadernos para a alma do leitor: é possível entender a essência de Borges.
Há outro aspecto notável no livro: a autora resistiu a construir uma visão, digamos, acadêmica. Diga-se que teria tudo para enveredar por este caminho e, até mesmo, seria mais do que justo. Todavia, ela preferiu jogar Borges ao público, mesmo o leigo, para que ele preservasse a sua universalidade temática, lírica e de forma. Acabou por alçar vôo para um público igualmente universal. Mérito raro de uma autora (também argentina) cujo background  é largamente acadêmico.
Recomendo a leitura deste livro. Nestes tempos de aridez intelectual, é fantástico ler sobre Borges e refrescar a nossa vida com a sua poesia. Se não for possível "compreender" Borges, é muitíssimo provável para aqueles que amam a literatura que se possa entender a si mesmo. Borges desperta a nossa alma e o prazer de viver. Com encantos e inquietações, mas acima de tudo, o viver bem.
Não resisto, por fim, a extrair do livro um pequeno poema de Borges sobre Buenos Aires, mais especificamente o bairro de Palermo onde nasceu. Leia o poema agora, mas leia também quando estiver a flanar pelas ruas de Buenos Aires. Você poderá constatar que a poesia de Jorge Luís Borges exala os sabores portenhos como se fossem um vinho que desce pela garganta como água doce e sobe à mente como se fosse um sonho de menino.


Esta cidade que acreditei ser meu passado
é meu futuro, meu presente;
os anos que vivi na Europa são ilusórios,
eu estava sempre (e estarei) em Buenos Aires.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pannetone: Receita Histórica

É por demais arriscada a tarefa de empreender uma receita datada do século XI. O pannetone está para mim como uma espécie de mitologia gastronômica no que tange à sua execução, mesmo que este mito se corrompa na gula de comê-lo lentamente e continuamente.
Os milaneses são conhecidos pela prática dos vocábulos expressos em diminutivos e aumentativos. Esta lingüística reforça a idéia do tamanho das especialidades da Lombardia, mas não diz nada sobre o como fazer esta iguaria saída dos fornos.
Trata-se de um pão de Natal, de cuja altura despenca uma mistura saborosa da massa levedada adornada pelas passas e frutas cristalizadas. Se fosse uma jóia seria uma grande pérola, revestida por pedras preciosas de várias espécies. Parece singelo, mas é sofisticado este (grande) pão. Em cada fôrma de papel soma-se a massa (em pouca quantidade) que sobe muito sob o fogo uterino do forno. Nunca se retira o papel do pannetone. É ele que garante aquela umidade da qual exala um perfume raro.
Outra coisa notória do pannetone é o seu caráter, digamos, “sociológico”. Em Milão, era o presente na medida a marcar a relação do padrone para com os seus empregados. Das fábricas, saíam (e ainda saem), os empregados felizes a carregar aquele pão doado pelo capitalista em dia de generosidade para ser consumido em casa. Não há luta de classes, no caso. Apenas a delícia de viver. Vale até um discreto sorrisso do padrone.
Gosto muito de comer o pannetone acompanhado de moscatel. Acredito que aí temos a junção feliz e sem contrastes entre dois doces. Nada mais harmônico. Tão harmônico que não mereceria muitos comentários dos chefs que estão a desfilar suas receitas pelas TVs a cabo do mundo inteiro. A coisa fala per se. Entendem?
Outra coisa que deveria ser professada e ardentemente seguida pelos fiéis é a forma de comer. Parece elegante cortar o pannetone. (As aparências enganam). Todavia, é correto e muito mais saboroso ir desfiando as suas partes sem faca. Trata-se de um exercício prazeroso, mesmo que secundário – conversar e beber o moscatel (ou outro espumante) são as tarefas principais.
Beber (ou comer) na “fonte d´água” é sempre preferível. O pannetone mais saboroso e original sai dos fornos da Marchesi , pasticeria de Milão (ou Milano, se preferirem os puristas). Todavia, por estes Tristes Trópicos há um lugar que produz um pannetone tão delicioso quanto aquele milanese. Trata-se do pannetone produzido pelo meu querido amigo Massimo Ferrari. Ele que tocava o Ristorante Massimo agora tem um canto saboroso na Vila Olímpia em São Paulo. Trata-se da Rotisserie Felice e Maria (R. Helion Póvoa, 65 - Vila Olímpia - Oeste. Telefone: 3849-2504). Ali, entre tantas preciosidades, reina um pannetone saborossímo. Daqueles que cria uma inquietação íntima entre a vontade de comer e a necessidade de guardar, mesmo que um pouco, para depois.
Não sei e não saberia escrever a receita de um pannetone. O sabor deste pão tem algo divino que não compreendemos, mas sabemos que a ele devotamos certa dose de amor.

500 Dias com Ela: Um Filme e Uma Era.

500 dias com Ela (500 days of summer - EUA, 2009 com Joseph Gordon-Levitt, Zooey Deschanel, Geoffrey Arend, Matthew Gray Gubler). Eis um filme, dirigido pelo estreante Marc Weber, que parece desprovido de pretensão, mas que acaba por levar a audiência a refletir sobre as variáveis e os valores do comportamento amoroso nos dias que estamos a viver. De um lado, temos Tom (personagem de Joseph Gordon-Levitt) fragilizado diante do amor por Summer (vivido pela delicada e sexy Zooey Deschanel). Tom não vê acolhida à necessidade do carinho e à ambição de um “compromisso de amor”. Summer deseja, planeja e age em prol de um relacionamento que, mesmo não sendo efêmero – de vez que se sustenta por 500 dias –, seja algo superficial e impossível de ser propagado pelo tempo. Summer luta para que não haja enlace, senão sexual ou das coisas cotidianas que possam ou pareçam ser prazerosas. A superficialidade do relacionamento não “acontece”, ela é provocada, desejada, ambicionada e cuidadosamente cuidada por ela. Tom se retorce de dor, seja pelo desejo ardente de que ela se torne uma namorada “presente”, aquela que faz planos e tece os dias para que estes se tornem anos. Os 500 dias que Tom vive são de verdadeiro vazio existencial e de “recheios” materiais. Para Summer, os 500 dias são uma dedicada busca pelo mesmo vazio (res)sentido por Tom, pelo relativo e pelo descompromisso.

Tom e Summer são, de fato, representações de uma era. Fosse noutro tempo, seria a mocinha morrendo de angústia pelo desejado mocinho. Agora, são os homens possuídos de incompletude e sob o risco da solidão e do abandono, mesmo que estejam a viver um relacionamento. A inviabilidade de construir algo, digamos, amoroso não retira o ranger de dentes do amante perante sua indiferente amada. Ela pode lhe servir para o cotidiano, mas não lhe serve para o viver. Doce ironia vive o primeiro sexo enquanto o segundo parece querer se divertir. Summer não é a beleza da vida. É o caráter estóico e epicurista do mundo pós-moderno ou pós-feminista. Como no verso de 1914 de Ricardo Reis em Fernando Pessoa:


“Vem sentar-se comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.” [315]

Não vou pregar a libertação do homem (macho) no que tange aos seus ardentes desejos amorosos. Nem o filme pretende isto. Ao contrário. O diretor Weber entrega tudo de início: mostra como acaba o filme nas primeiras cenas. Sob o som de uma magnífica trilha sonora (que vale a pena ser adquirida), a paisagem e o cenário do filme são obscuros como obscuro é aquele desejo incompleto de Tom. Daí em diante, reconstrói o ceticismo dos relacionamentos, a implacidez da alma perante a plácida face da amada e o fatídico dia em que, ao final do filme, Tom pode ressurgir das cinzas (será?). Não há redenção do macho. Apenas o desejo de um pouquinho de amor e esperança.
Os homens já estiveram melhores na vida e no cinema - afinal, a vida imita a arte e vice-versa. Isto não implicou em dias melhores para as mulheres...

domingo, 13 de dezembro de 2009

Clima: Mudar Completamente o Sistema Econômico

Por estes dias, a mídia mundial está a fazer alertas seguidos e inquietantes em relação à mudança do clima e o contexto de múltiplos interesses desembarcados em Copenhague. Há probabilidade elevada de o tal do “encontro do clima” fracassar. Há alguns que colocam como manchete midiática períodos simples e compostos tais como “uma semana para salvar a terra”. Ora, quem sou eu a rejeitar quaisquer destes alertas. Ao contrário: se me parece impossível estimar a extensão dos efeitos do aquecimento da terra, acredito que o sentido destes efeitos é muito provável e já presente.Todavia, tenho para mim que o “fracasso” deste tipo de evento se deve a um fator um pouco mais estrutural. Sinceramente, não acredito em nada que seja meramente cosmético quando se trata de sustentabilidade. A mudança do destino do aquecimento implica numa revisão completa do sistema econômico como um todo. Bom, isto pode ser realizado passo a passo, mas o tamanho do passo implica em proporcional impacto sobre o planeta. Maiores reformas econômicas, melhores possibilidades para o planeta. E, infelizmente, vice-versa.
O atual modelo capitalista de produção e consumo é absolutamente incompatível com a sustentabilidade. Qualquer visão “adaptativa” requer muita explicação para no final se retornar ao ponto inicial: o modelo tem de ser completamente mudado. Basta verificarmos que se a China, sob uma ditadura infernal que atrai as atenções do mundo, alcançar o padrão médio de vida do americano, o mundo simplesmente acaba. Não há recursos naturais disponíveis para isto. O assustador é que a discussão toda não passa por esta reflexão, muito embora ela seja a essência do problema.
Não perco tempo com previsões, essas fazem parte da alegoria dos comentaristas e pensadores, hoje providos de computadores e modelos espetaculares. A verdade é que a revisão das previsões já feitas em todos os tempos nos leva a concluir que quase todas foram para o fundo da gaveta e sequer apareceram na realidade.
Os marxistas do começo do século XX apostaram na exclusão como catalisador do processo revolucionário. Bem, o império soviético caiu e as moças de Moscou preferem usar a moda capitalista do ocidente. Os liberais apostaram na alocação eficiente dos recursos econômicos. Nunca se viu em um século tanta crise, inclusive sistêmicas. Tudo fruto da ineficiência do tal do “mercado”. Os social-democratas, coitados, acreditaram no meio termo. O que se viu é a sua política caindo de vez em quando para o liberalismo (vide Tony Blair) e outro tanto para o populismo de esquerda ou de direita. Hoje são o big nothing político do mundo. No século XX caíram cinco impérios (cinco!): o Austro-Húngaro, o Britânico, o Otomano, o Alemão e o Soviético. Em maior ou menor medida todos eles tiveram pretensões de dominação e preponderância política e econômica. A história não se repete, mas o declínio da América deveria implicar em um ajuste mais linear de todo o sistema econômico. Quem ganha com isto: a ecologia.
Copenhague é apenas um (importante) evento. Todavia, somente um sistema econômico mais solidário assegurará sobrevivência ao planeta. Uma revisão completa do processo de produção, investimento, monetário e de emprego é urgente. Isto não é mais parte de uma utopia, mas de uma necessidade. Ora, alguém sempre levantará a voz e dirá que “isto é impossível”. Pois que fique sabendo que sem isto é o fim mesmo. Não porque estejamos a prever isto, mas porque isto já está a acontecer.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Os Incompreendidos: Truffaut, Um Menino e Paris

Assistir ao filme Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, França, 1959) de François Truffaut (com o menino Jean Pierre Léaud, Claire Maurier e Albert Rémy)  possibilita uma reflexão relativamente abrangente, muito embora a época em que se passa o filme (no início dos 50 em Paris) tenha distanciado o filme da possibilidade de estabelecer relações mais próximas ao nosso tempo e à problemática da (anti)civilização moderna.
O filme trata da estória - na verdade, a auto-biografia de Truffaut, portanto história – do menino Antoine Doniel que vive em conflito com os pais, é muito travesso na escola e passa a cometer pequenos delitos por Paris.
 A primeira distinção difícil em se fazer com relação ao filme é sobre a transgressão - quem a cometeria?. Afinal, o que se vê, de um lado, é um lar desestruturado, os pais em conflito permanente, a mãe adúltera e, de outro, uma escola arcaica, baseada numa relação desigual entre professor e alunos, utilizando métodos inadequados de educar e um ambiente entediante. Em meio a esta realidade, vemos Antoine Doniel, carente de afetividade, solitário e sem possibilidade de ver florescer os seus sonhos de menino. É certo que suas travessuras e, a partir do agravamento dos conflitos, o cometimento de pequenos delitos, são uma expressão de suas próprias impossibilidades. (Truffaut foi salvo pelo jornalista André Bazin, para o qual é dedicado o filme, que o levou a escrever críticas de cinema).
 A certa altura do filme, Antoine “descobre” Honoré de Balzac. Lê e é seduzido pela imaginação do gigante da literatura francesa e universal. Escreve uma redação sobre  o escritor e espera o reconhecimento de seu feito literário. Contrariamente, ocorre que é acusado de plágio pelo professor. Em casa, coloca a foto do autor francês num lugar como se santo fosse ele. Acende uma vela. Há um pequeno incêndio. É fisicamente repreendido pelos pais. Mais uma decepção. Resta-lhe a fuga pouco planejada e a freqüência aos cinemas de Paris e as voltas por Montmartre, Pigalle e por toda Rive Gauche..
Todavia, a transgressão em tudo isto não está em Antoine Doniel, mas sobre ele. Não há socorro na escola, na família, na mãe ou no pai, no reformatório (onde vai parar e de onde foge e encontra o mar pela primeira vez). Há apenas o cinema, nem mesmo Balzac.
 Interessante notar que o filme não é feito, digamos, em primeira pessoa. É um olhar em terceira pessoa como se Truffaut olhasse por cima da cerca daquele reformatório que de fato freqüentou e tentasse elencar fatos sem entrar no juízo destes - ele próprio era a obra daquela construção. O juízo cabe ao expectador. Nada mais nouvelle vague. Com isto, não se vê um filme com o olhar de uma criança, mas tudo na obra parece parte de uma engrenagem compreensível e decifrável.
 Há ainda o conflito imanente ou aparente entre o antigo e o moderno. Além dos limites da escola (conforme comentei acima), o adultério da mãe de Antoine, o seu casamento, seu papel de dona de casa e de mãe é mais que uma reunião de fatos: esconde-se aí um conflito de uma sociedade em transformação, outra ética e moral e um modo de vida que combina tempos distintos. Outro fato a evidenciar o conflito temporal: Antoine Doniel nasceu antes do casamento de sua mãe com seu pai (de fato, seu padrasto) e foi “salvo” por uma avó que não permitiu que sua mãe o abortasse. A avó, uma representação significativa das relações entre gerações.
 Muito embora Antoine sofra as penas daquela realidade, temos de reconhecer que o mundo ao seu redor não o massacra. Tolhe-o e joga-o num reformatório, mas não recai sobre o menino toda a tragédia psicossocial existente no mundo atual. Hoje, mesmo na moderna  França, a “transgressão” de Antoine não seria a de pequenos furtos ou a deliciosa vagabundagem pelos cinemas. Certamente, teríamos de adicionar componentes muito mais violentos, mais sexualidade, mais impossibilidades e mais sofrimento interior e físico. Basta que projetemos em nossas mentes as imagens de outro filme, cujo o tema é a escola: Entre os Muros da Escola (Entre les murs, direção de Laurent Cantet, França, 2007). Ali, além da transgressão juvenil, temos uma quase impossibilidade civilizatória, fruto da falta de coesão cultural e da ampla dificuldade de tratar o problema da multiculturalidade, a partir da qual cada um aceita o outro como ele é e vive (alteridade). Neste sentido, Antoine Doniel (ou François Truffaut) teve “sorte”. Seus maiores riscos sequer estavam por detrás dos muros da escola, como no filme de 2007.Por fim, Os incompreendidos nos traz um convívio agradável com a lente de Truffault, cuja direção é impecável (ganhou o Prêmio Cannes como melhor diretor), a fotografia é sedutora, o roteiro é elegante e a interpretação dos atores é na medida – de fato, a obra como um todo se sobressai largamente sobre as interpretações individuais. Há, ainda, a Paris entre o outono e o inverno. Embora não houvesse naquele tempo, a pantagruélica sociedade de consumo de agora, a simplicidade de Paris respira a beleza que a cidade possui há muito. No filme, a certa altura, Antoine, preso, murmura que “não é proibido fugir (do reformatório), é proibido ser capturado”. De Paris não se deve fugir. E nada melhor que sucumbir a ela.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

"Lula, o Filho do Brasil": Sobra Preconceito

Não sou lulista. Nunca votei no atual presidente, embora o reconheça como um político que exerceu um papel fundamental na consolidação da redemocratização brasileira pós-64.
O novo filme do produtor Luiz Carlos Barreto e dirigido por seu filho Fábio Barreto tem sido muito comentado pela mídia e nas rodas sociais e de "formadores de opinião". No geral, o que tenho ouvido são críticas negativas, visto como deficiente de credibilidade no que tange ao roteiro, bem como sendo fruto do "oportunismo" político do atual presidente. Fala-se inclusive de populismo e das facilidades comerciais na obtenção de patrocínios, embora não exista apoio oficial ao projeto. Até mesmo nas salas de cinema freqüentadas pela classe média e abastada paulistana, durante a apresentação do trailer do filme, ouve-se comentários negativos e pejorativos. 
Fico pensando se não estamos diante de um preconceito pernóstico - seja político, seja de classe. Com o agravante de que quase ninguém o viu.
Se alguém perguntasse se o Presidente Barack Obama mereceria ser personificado no cinema, talvez estes que criticam o filme de Barreto balançassem a cabeça em favor da execução de uma obra "obamiana". Por que Lula não mereceria ser biografado num filme? Sua história não o faz por merecer? Não é a sua trajetória política significativa? 
Responder positivamente a estas questões não implica em nenhuma concordância política ou, até mesmo, biográfica com os fatos relatados sobre o filme. Se fosse assim, Hitler, um dos maiores ou o maior canalha da história, não poderia ser objeto de um filme. Ou alguém admira Hitler?
Se há críticas a fazer em relação à película que estas sejam feitas naquilo que lhe diz respeito: à segurança e brilho da direção, à qualidade da produção, à interpretação, ao roteiro e por aí vai. Se houve favorecimento comercial ao projeto que isto seja criticado e noticiado, como aliás, já ocorreu. Agora, se há um fato real e claro em tudo isso, este está do lado da platéia e nos críticos do filme: o preconceito enorme para com o filme e o presidente. 
Se um comercial de TV ou um documentário sobre Luciana Gimenez sofresse este tipo de críticas haveria entre os "formadores de opinião" defensores da liberdade e contra os preconceitos. No caso do Filho do Brasil, tudo que se diz parece óbvio, preconceituoso e ignorante (na medida em que sequer se assistiu ao filme). Há ainda a gozação daqueles que dizem "que não viram e não gostaram". Bem, neste caso chegamos ao limite entre a realidade e a ficção. Esta sim, a única coisa que se consolidou como majoritária em relação ao Filho do Brasil.

Uma Receita da Puglia para os Amigos

Na Puglia, região Meridional da Itália, sua cozinha tradicional é indissociável do forno. Do pão à carne, passando pelos frutos do mar, grande parte dos pratos é feito no forno. Normas antigas das autoridades da região impediam a construção de fornos em função dos riscos de incêndio. A população tinha de usar os fornos públicos e se sujeitar ao pagamento de taxas. Para fugir da cobrança das prefeituras, a população construía fornos rurais para fazer os seus deliciosos pratos. Estes fornos tinham de ser, digamos, discretos, pois as autoridades podiam destrui-los tão logo fossem localizados. Todavia, os fornos sobreviveram e, ainda hoje, se utiliza a tiella, uma pequena caçarola de barro com tampa de metal para se fazer a focaccia, o calzuni (uma espécie de pastel com cebola, azeitonas sem cascas, tomate e filetes de anchovas) e o panzerotti (também um pastel em forma de almofada mais ou menos com o mesmo recheio do calzuni.
Aí vai uma receita que gosto muito e que espero seja apreciada pelos amigos. Tiella Alla Barese.
Coza o arroz (200g) em água e sal, como se fosse um macarrão. Pegue os mexilhões (700g), lave com redobrado cuidado com água corrente e leve-os ao fogo com o alho (apenas um dente sem “alma”, a sua parte central) e o azeite de oliva. Depois das cascas abrirem, desligue o fogo e reserve o “suco” da panela (depois de passá-lo por um coador ou um pano fino). Retire os mexilhões das cascas e reserve num prato. Descasque sem furor as batatas (400 g) e corte-as em rodelas mais ou menos finas. Unte com carinho uma forma com azeite e cubra-a com as batatas. Faça a seguir camadas de arroz, cebolas cortadas (uma ou duas de tamanho médio ou grande), queijo pecorino ralado (você vai precisar de 70 a 100g), salsa picada e os mexilhões. A última camada deve ser de batatas. Tempere por cima com pimenta do reino moída a seu gosto. Salpique azeite já saboreando o prato e regue com o suco de mexilhões anteriormente reservado. Leve ao forno pré-aquecido (digamos, a 180º) por 45 minutos.
Este prato é simples, tem o ar campônio da Puglia, o sabor do mar e dá para quatro pessoas repartirem o saboroso prato, um vinho (sugiro um Tormaresca Puglia Neprica, um corte de negroamaro (40%), primitivo (30%) e cabernet sauvignon (30%)) e uma saborosa conversa. Seja feliz! Você merece!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um Aniversário Sem Aniversariante

Alguém consegue imaginar uma festa de aniversário na qual o próprio aniversariante não é comemorado ou, até mesmo, esquecido? O caso é gritante, notório e, ao mesmo tempo, facilmente perceptível. Basta um pouquinho de reflexão.

O Natal é o aniversário de Jesus Cristo, o maior acontecimento da humanidade, para os crentes que Nele crêem o Filho de Deus, e para os descrentes que apenas acreditam nos fatos históricos (e comprovados). Do ocidente ao extremo oriente, Jesus Cristo é conhecido e é um “divisor da história”. Ocorre que nesta era hipermoderna o fato é que “Papai Noel” ou Santa Claus tomou conta do pedaço e é ele a maior representação do Natal. O pequenino de Belém parece permanecer quieto e esquecido no presépio repousando sobre aquela manjedoura sob o calor do bafo dos animais que rodeiam o menino. Nem se ouve o canto de aleluia dos anjos.
Se retirarmos o caráter religioso da data ainda restaria muito a ser discutido em relação a esse aniversário. Do ponto de vista histórico, o choque entre as civilizações passa necessariamente pela reflexão do seu papel ao longo dos séculos e do atual contexto do cristianismo. Ora, a mídia considera o assunto como secundário. Parece-me um equívoco de pauta.
Do ponto de vista religioso, Jesus Cristo permanece como a figura mais discutida e discutível nesta era de globalização. O Judeu Marginal nascido a pouco mais de dois milênios não foi um pregador fundamentalista. Ao contrário: enfrentou o Poder Romano e Judaico de sua época com preceitos simples e que magnetizaram pensadores e multidões ao longo dos séculos posteriores ao seu nascimento. Para além dos doze (ou onze) homens que o seguiam.
Por tudo isto, Jesus Cristo mereceria maior atenção da mídia. Maior que as notícias sobre as disputas sobre o clima e muito maior que os últimos parceiros amorosos das estrelas do cinema e da TV. Aparentemente, nem os homens da propaganda sabem extrair deste personagem o que ele tem de melhor e que ainda é raro no mundo moderno: uma concepção excepcional sobre o amor.
Se para Marx, a “religião era o ópio do povo”, no momento a indiferença é o ópio da verdade. Seja histórica, seja religiosa.

Notícias Negativas e a Opinião Pública

Acabo de finalizar um pequeno, mas precioso livro. Trata-se de "Churchill e o discurso que mudou a história" (Blood, toil,tears and sweat - (The dire warning), 2008) de John Lukacs, editado no Brasil pela Zahar. Lukacs é um dos biógrafos de Churchill mais traduzidos em todo o mundo. A obra analisa, à luz do famoso discurso de posse como premier de Churchill em 13 de maio de 1940, o andamento da política e dos preparativos do Reino Unido imperial para o enfretamento com os alemães na "Batalha da Inglaterra". Um momento trágico e fascinante do ponto de vista histórico.
O ponto alto da obra de Lukacs é quando ele descreve o processo de convencimento da sociedade inglesa sobre os perigos que a rondavam. A missão de Churchil era genuinamente crítica: diante da desconfiança de muitos sobre o seu novo primeiro-ministro, bem como da indiferença ou crença equivocada de que a "amada ilha" estava a salvo da máquina de guerra nazista, era preciso encerrar o "pensamento positivo" e mobilizar o povo britânico para o pior. Uma missão e tanto.
Pois bem: entre 10 e 14 de maio (um dia após a posse de Churchill) a opinião pública mudou de uma posição levemente otimista para uma pesadamente pessimista. Churchill conseguiu, em meio ao quase esmagamento das tropas da Força Expedicionária Britânica em Dunquerque na Bélgica, mostrar para a opinião pública que não havia razão para otimismo. Hitler era o maior atentado à civilização jamais existente.
Notável é que Churchill alcançou seus objetivos sem que isso implicasse numa desmobilização dos ingleses em relação à guerra - inversamente, foi aí que a mobilização se intensificou.
Trata-se de uma lição de política, de relação com a opinião pública e de coragem pessoal de um dos maiores políticos do século XX. Muito útil para os que desejam enfrentar os desafios deste milênio e que, para lograrem sucesso, têm de mostrar às sociedades os riscos nos quais estas estão mergulhadas. Em tempos de Copenhagen, vale a lembrança...

Tom Jobim e o Tom do Brasil

Ontem fez 15 anos da morte de Tom Jobim. Vi poucas menções à data. É natural que sejam esquecidos certos dias, sobretudo quando se está a lembrar do desaparecimento de alguém que nos deixa saudade. A mesma saudade que sua música pôs-se a espantar.
Tom Jobim é para mim algo além de boa música. Ele é o zeitgeist de um Brasil, ao final da década dos 50, que acreditava em seus próprios horizontes e perfumava a vida com certo ar de inocência (não de ingenuidade!) e frescor nas idéias. Era o tempo de JK e seu sorriso aberto, do Brasil campeão mundial de futebol pela primeira vez, do teatro de rebolado, e assim vai. Tom Jobim, muito mais que o outro co-fundador da Bossa Nova João Gilberto, foi o retrato, a almágama daqueles anos que moldaram o país dali prá frente. Tom respirava alegria genuína, falava de ecologia, quando pouquíssimos se preocupavam com isto, e tocava música apenas comprometido com a elegância estilística e o cuidadoso timbre dos instrumentos musicais. Se olharmos retrospectivamente veremos que a supra-estrutura cultural e intelectual do Brasil do final dos 50 andava à frente de seu tempo. Usualmente, o pensamento anda atrás da sociedade e raras vezes é de fato vanguarda - apesar do que pensam os intelectuais deles mesmos... Tom, ao contrário, respirava modernidade sem que isto significasse um rompimento abrupto e, muitas vezes, descabido entre o presente e o futuro. Tal qual ocorreu nos anos 60 e, em menor medida, nos 70.
O Brasil de hoje está, do meu ponto de vista, próximo a dar uma salto significativo na direção do futuro depois de três décadas  brigando com o passado. De certa forma, faremos as pazes com a perspectiva de sermos de fato uma nação moderna, muito embora isto ainda nos custe muito para ocorrer. A despeito destes tempos modernos que estão a despencar sobre os nossos olhos temos de reconhecer que nos falta um Tom Jobim para andar à frente e nos guiar. Chega de saudade, não é mesmo?

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Boilesen: Uma Ditadura, Um Personagem e Alguns Ocultos

Documentário é uma construção cinematográfica excepcionalmente difícil de ser realizada. Reunir dados, fatos, depoimentos e roteirizá-los é tarefa exigente. O resultado final tem grau de previsibilidade diminuída. Mais que um filme de ficção na medida em que não é possível "criar fatos". "Cidadão Boilesen" de Chaim Litewsky é um excepcional documentário. Está em cartaz nas principais capitais do país. Narra a trajetória de Henning Boilesen, presidente do Grupo Ultra ao final da década dos 60 e início dos 70. Ele foi o empreendedor da "Operação Bandeirantes (OBAN)", responsável pela perseguição dos militantes da luta armada da esquerda brasileira. Esta operação era financiada pelo dinheiro de grupos privados brasileiros e multinacionais e suportou o DOI-CODI, seção do Exército Brasileiro que cuidava da "defesa interna" e protagonizou inúmeras seções de tortura e de operações que resultaram na morte desde pessoas inocentes até militantes armados. Ele próprio, Boilesen, tinha enorme prazer em participar das sessões de tortura. Sua crueldade custou-lhe a própria vida: grupos armados o assassinaram em 1971 nos Jardins em São Paulo. A reconstituição do momento da operação que "justiçou" Boilesen é, a meu ver, o ponto alto do filme. Retrata cruamente o momento histórico do auge da ditadura. 
Boilesen é apenas a feição visível daqueles tempos e é mostrado na tela de forma equilibrada tanto na verificação dos fatos de sua vida quanto na contextualização histórica e psicossocial.
Há depoimentos de próceres da ditatura, tais quais o ex-governador Paulo Egydio Martins (que defende Boilesen com ardor) e o patético ex-secretário de segurança de São Paulo Erasmo Dias que ilustram bem que aqueles tempos duros criaram um ambiente maniqueísta e marcado pela crueldade.
Uma curiosidade ficou no ar: quem foram os empresários que financiaram a OBAN de Boilesen? Quem deu dinheiro para as operações de tortura? Aposto que há muitos deles por aí, bem como suas prósperas empresas... 

domingo, 6 de dezembro de 2009

Os Dois Derrotados do Brasileirão.

Convenhamos. Este campeonato brasileiro foi marcado pelo martírio de seus líderes ao longo da competição, sobretudo nesta fase final, e deste martírio surgiram os vitoriosos. Os derrotados empurraram seus concorrentes para cima, enquanto os vitoriosos mal se seguravam na ponta da tabela. Do meu ponto de vista, o Palmeiras foi o time que apresentou um padrão de jogo mais elegante, com mais talento individual e mais esquema de jogo. Foi vítima de  múltiplos defeitos isolados em uma seqüência de jogos. Há aqueles comentaristas que tecem longos comentários negativos sobre o esquema elaborado por Muricy Ramalho. Todavia, a verdade é que o Palestra Itália foi, a meu ver, o único time que de facto ambicionou um padrão de jogo próprio e de bom nível.  Ficou tristemente fora da Libertadores da América. Os outros times que freqüentaram a ponta da tabela foram inconstantes não somente nos resultados -como o Palmeiras -, mas também no seu padrão de jogo. Incluso aí o meu querido tricolor do Morumbi.
Há, contudo, dois grandes derrotados a cair por terra: o primeiro é a crônica esportiva e seus comentários infelizes, suas previsões incompetentes e a falta de coragem em enfrentar as estruturas arcaicas do futebol brasileiro. Mal se falou de Ricardo Teixeira, o verdadeiro déspota da arte esportiva bretã. Ele que trabalhou intensamente pela manutenção dos times cariocas na primeira divisão e pela vitória do Flamengo. O segundo é a arbitragem, esta sempre a serviço da incompetência, da sedução pela sua própria imagem e pela submissão às estruturas do poder sobre as quais falamos acima. A arbitragem decidiu jogos, construiu faltas inexistentes, puniu sem razão e foi dócil quando deveria ser dura. 
A arbitragem merece ter uma crônica como esta no seu encalço.
A vitória do Flamengo é daquelas coisas que revelam o enorme cinismo na discussão do futebol. "O povão venceu" dirá a tigrada da crônica. Certo, porém, é que esta vitória esconde as vísceras podres do país que sediará a Copa de 2014. Lamento. Por amor ao futebol do qual gosto mais que meu próprio time.

Receita Para Um Domingo Nublado

Spaghetto tetrazzini. Eis os ingredientes: 20g ou um punhado pequeno de cogumelos porcini secos, óleo de oliva de preferência grego, 4 coxas de frango, desossadas, sem pele e em pequenos pedaços, sal marinho e pimenta do reino moída na hora, 2 dentes de alho sem a "alma" (a parte central), 400 g de outros tipos de cogumelos, um copo de vinho branco, 400 g de espaguete grano duro, 500 ml de creme de leite integral, 200g de queijo parmesão ralado e folhas de manjericão.
Vamos fazer? Forno pré-aquecido a 200ºC. Cogumelos porcini numa tigela simples, mas funda. Cubra-os com água fervente. Reserve por minutos. Aqueça uma caçarola (suficiente para caber todos os ingredientes) e borrife com o óleo de oliva. Tempere o frango com o sal e a pimenta-do-reino e o sujeite ao fogo médio até dourá-lo. Escorra os cogumelos porcini, mas guarde a água que lhe será útil Coloque na caçarola os outros cogumelos frescos juntamente com o alho "desalmado" (mas, saboroso). Despeje o vinho branco juntamente com a água reservada dos cogumelos porcini. Reduza o fogo e mantenha neste fogo ameno até o frango ficar cozido e o vinho se evaporar até a metade. Em outra panela cozinhe o espaguete da maneira tradicional. Adicione o creme de leite na panela do frango. Ferva com fogo alto e desligue. Prove e acrescente sal e pimenta à gosto. Acrescente o espaguete escorrido na caçarola e misture tudo com vigor (e prazer). Adicione durante a mexida o parmesão (metade!) e as folhas de manjericão. Transfira tudo para uma assadeira e coloque o resto do parmesão sobre a mistura. Asse no forno até ficar dourado. Divida pelos pratos e regue com o azeite grego e acrescente o parmesão, caso assim prefira. Dá para quatro pessoas. Se desejar fazer para mais pessoas, acrescente os ingredientes na proporção dos adicionais participantes da mesa. O frango pode ser substituído pelo peru. Sobretudo, nestes tempos natalinos. Eventualmente, substitua o azeite grego por um italiano. Eis uma pequena concessão que faço. 
Abra um belo Sauvignon Blanc, reparta com os amigos e com o seu amor e sorria. Chegou a felicidade.

Abraços Partidos ou a Metalinguagem de Almodóvar

Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, Espanha, 2009, com Penélope Cruz, Lluís Homar, Ángela Molina, Carmen Machi, Blanca Portillo, José Luis Gómez) é o novo filme de Pedro Almodóvar. Trata-se de uma metalinguagem cinematográfica de alta envergadura. Em verdade, Almovódar é um dos últimos autores de cinema que faz reflexões relevantes sobre a condição do homem e da sociedade por meio de sua câmara. Neste caso, a sua lente percorre com elegância e, ao mesmo tempo, arrojo uma visão particular sobre o cinema. Almodóvar não opta nem pelo rompimento das estruturas da construção de uma filme como Godard em 1963 com "O Desprezo" e nem pela exaltação das situações proporcionadas pela execução de um filme como em "A Noite Americana" de François Truffaut em 1973. Ao contrário. Em Godard, o mito de Homero, autor da Odisséia, é questionado a partir da ruptura entre o Diretor e o Produtor: sobrou para o roteirista. Em "A Noite Americana", Truffault apela para o engraçado e para as barreiras a serem ultrapassadas para se fazer filmes: não há mitificação, mas desconstrução.
Em Abraços Partidos, quase tudo que ocorre sob o olhar de Almodóvar é pretexto para falar de cinema. O trio amoroso, formado pelos personagens de Penélope Cruz (em boa forma, mas com um desempenho discreto), Lluis Homar e José Luis Gómez é o gomo necessário para se criar uma estória dramática que calça o enredo metalinguístico pretendido pelo diretor espanhol. Tudo a partir das relações entre a amante (Penélope) de um empresário poderoso (Gómez) que se torna o produtor do filme de um diretor (Homar) que se envolve com atriz principal que é a própria, a amante do empresário. Ora, nada muito inédito. Todavia, todos os espaços do filme são preenchidos pelo próprio cinema: a direção de arte marcante e impecável, as cenas externas que lembram os vazios da Nouvelle Vague, as cenas de sexo improváveis, o filho "desconhecido" do diretor, o filho homossexual  do produtor que está a fazer um "documentário" e o acidente que mata a protagonista do filme e cega o diretor - há algo de psicanalítico em tudo isto.
Almodóvar neste filme está em excepcional forma. Constrói um enredo marcante, na linha de "Fale com Ela" (2002), "Volver" (2006) e "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988). Há um ingrediente adicional: a capacidade de Almodóvar de conversar com o seu público para dizer-lhe algo sem se preocupar com o que possam pensar ou responder. Uma coragem difícil de encontrar na correção política da cena do cinema mundial. Mesmo entre aqueles cineastas que acham que estão na vanguarda.
Eis um belo filme para se ver. De preferência depois das dez da noite e poder na madrugada ir a um destes restaurantes boêmios e discutir Almodóvar, como ele próprio gostaria que fosse.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Julie&Julia

Belo é o filme sobre uma admiradora da famosa chef norte-americana Julia Child. Meryl Streep dá um show de interpretação, sobretudo se considerarmos o modo particular de falar de Child. Stanley Tucci é o carinhoso marido de Child e tem atuação discreta. A jovem admiradora de Julia Child chama-se Julie (interpretada por Amy Adams), vive em Queens e, aos 30 anos, decide escrever um blog sobre Julia a partir da experiência da execução das receitas dela. O roteiro é baseado em fatos reais e é feito com delicadeza e expressão.  
O filme se passa em tempos distintos e jamais Julie se comunica com Julia. Na imaginação inquieta da jovem Julie, a antiga estrela da culinária norte-americana é uma espécie de redenção. Suas receitas de culinária dão sabor à vida presumidamente pacata dos arredores de New York. Muito embora Julie tenha imposto a si própria um desafio, tudo corre em favor da suavidade e da delicadeza. Ao sair do cinema, a vida parece mais feliz e se pode saber que há algo além do consumismo e da hipocrisia. Julia e Julie foram mulheres que desafiaram a si mesmas, mas não se escravizaram na busca incessante do sucesso. Ao contrário: para ambas a satisfação de suas ambições vem como uma brisa não como uma tempestade. Tudo muito distante dos valores da chamada vida moderna. Longe dos preceitos feministas. Aquelas duas belas mulheres estão mais próximas de seus maridos que de ambições sem controle. Dali, daquele pequeno apartamento do Queens ou da charmosa morada de Child na Paris do pós-guerra, aquelas duas mulheres "tradicionais" conquistam o mundo. Mulheres ditas "modernas" rangem os dentes, mas no fundo têm aquele desejo íntimo de ser uma delas...