sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Borges: biografia e sentimento

Escrever a biografia de alguém é tarefa hercúlea. Dados, depoimentos, informações, datas são excepcionalmente difíceis de serem compiladas, analisadas e confrontadas. Mais difícil ainda é traçar um perfil que se aproxime ao máximo daquilo que poderíamos chamar de realidade ou verdade (factual e do próprio perfil do personagem real). De certa forma, o biógrafo é um pretensioso. Há certa arrogância em acreditar que é possível reconstituir a história de alguém. Sobretudo, dos mortos.
O Olhar de Borges: Uma Biografia Sentimental, escrita por Solange Fernández Ordoñez (Editora Autêntica, 2008) é um livro muito bem escrito e que retalha aspectos, ou na própria expressão do título, um olhar do (e sobre o) escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
Tenho para mim que Borges está entre os três maiores escritores latino-americanos do século XX - os outros seriam, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Gabriel Garcia Marquez). Dos três citados, Borges é certamente o mais universal. Escreveu a partir de sua Argentina para todos e sobre todos. Certos recantos ideológicos da América Latina o acusavam inclusive de não ser um escritor latino americano do ponto de vista literário. Bobagem. Talvez isto se deva a extraordinária cultura de Borges, o fato de ter dominado várias línguas (e autores) ao mesmo tempo em que se iniciava na língua portenha e de ter vivido por alguns bons anos na Europa. Borges é infinito, belo, transcendental, rico, elegante e seus escritos nos transportam para a beleza da arte e da vida. É um genial escritor. O resto é ideologia barata.
Esta biografia me fascinou. Confesso que a comprei há algum tempo e a mantive em minha estante por mais tempo que devia. Olhava para ela e me perguntava como alguém poderia escrever "uma biografia sentimental". Ora, ao abrir os primeiros capítulos logo percebi que aquele exílio do livro em minha estante nada mais era que um arrogante questionamento literário.
Um Olhar de Borges é simplesmente um livro magnífico. Consegue ao mesmo tempo, localizar Borges no tempo e espaço e, sem torná-lo hermético, nos transporta para o fundo da alma do autor. O livro é baseado em cadernos de anotações de Borges e a partir dos quais a autora retrocede no tempo e se aprofunda no autor a partir dele mesmo. Portanto, se não é preocupação essencial do livro a cronologia, é certo que ela consegue extrair daquelas letras dos cadernos muito além do que os fatos, os dados, as informações, poderiam nos mostrar sobre Borges (e sua obra). Assim, o texto da biografia sentimental desliza das páginas dos cadernos para a alma do leitor: é possível entender a essência de Borges.
Há outro aspecto notável no livro: a autora resistiu a construir uma visão, digamos, acadêmica. Diga-se que teria tudo para enveredar por este caminho e, até mesmo, seria mais do que justo. Todavia, ela preferiu jogar Borges ao público, mesmo o leigo, para que ele preservasse a sua universalidade temática, lírica e de forma. Acabou por alçar vôo para um público igualmente universal. Mérito raro de uma autora (também argentina) cujo background  é largamente acadêmico.
Recomendo a leitura deste livro. Nestes tempos de aridez intelectual, é fantástico ler sobre Borges e refrescar a nossa vida com a sua poesia. Se não for possível "compreender" Borges, é muitíssimo provável para aqueles que amam a literatura que se possa entender a si mesmo. Borges desperta a nossa alma e o prazer de viver. Com encantos e inquietações, mas acima de tudo, o viver bem.
Não resisto, por fim, a extrair do livro um pequeno poema de Borges sobre Buenos Aires, mais especificamente o bairro de Palermo onde nasceu. Leia o poema agora, mas leia também quando estiver a flanar pelas ruas de Buenos Aires. Você poderá constatar que a poesia de Jorge Luís Borges exala os sabores portenhos como se fossem um vinho que desce pela garganta como água doce e sobe à mente como se fosse um sonho de menino.


Esta cidade que acreditei ser meu passado
é meu futuro, meu presente;
os anos que vivi na Europa são ilusórios,
eu estava sempre (e estarei) em Buenos Aires.

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