sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Os Incompreendidos: Truffaut, Um Menino e Paris

Assistir ao filme Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, França, 1959) de François Truffaut (com o menino Jean Pierre Léaud, Claire Maurier e Albert Rémy)  possibilita uma reflexão relativamente abrangente, muito embora a época em que se passa o filme (no início dos 50 em Paris) tenha distanciado o filme da possibilidade de estabelecer relações mais próximas ao nosso tempo e à problemática da (anti)civilização moderna.
O filme trata da estória - na verdade, a auto-biografia de Truffaut, portanto história – do menino Antoine Doniel que vive em conflito com os pais, é muito travesso na escola e passa a cometer pequenos delitos por Paris.
 A primeira distinção difícil em se fazer com relação ao filme é sobre a transgressão - quem a cometeria?. Afinal, o que se vê, de um lado, é um lar desestruturado, os pais em conflito permanente, a mãe adúltera e, de outro, uma escola arcaica, baseada numa relação desigual entre professor e alunos, utilizando métodos inadequados de educar e um ambiente entediante. Em meio a esta realidade, vemos Antoine Doniel, carente de afetividade, solitário e sem possibilidade de ver florescer os seus sonhos de menino. É certo que suas travessuras e, a partir do agravamento dos conflitos, o cometimento de pequenos delitos, são uma expressão de suas próprias impossibilidades. (Truffaut foi salvo pelo jornalista André Bazin, para o qual é dedicado o filme, que o levou a escrever críticas de cinema).
 A certa altura do filme, Antoine “descobre” Honoré de Balzac. Lê e é seduzido pela imaginação do gigante da literatura francesa e universal. Escreve uma redação sobre  o escritor e espera o reconhecimento de seu feito literário. Contrariamente, ocorre que é acusado de plágio pelo professor. Em casa, coloca a foto do autor francês num lugar como se santo fosse ele. Acende uma vela. Há um pequeno incêndio. É fisicamente repreendido pelos pais. Mais uma decepção. Resta-lhe a fuga pouco planejada e a freqüência aos cinemas de Paris e as voltas por Montmartre, Pigalle e por toda Rive Gauche..
Todavia, a transgressão em tudo isto não está em Antoine Doniel, mas sobre ele. Não há socorro na escola, na família, na mãe ou no pai, no reformatório (onde vai parar e de onde foge e encontra o mar pela primeira vez). Há apenas o cinema, nem mesmo Balzac.
 Interessante notar que o filme não é feito, digamos, em primeira pessoa. É um olhar em terceira pessoa como se Truffaut olhasse por cima da cerca daquele reformatório que de fato freqüentou e tentasse elencar fatos sem entrar no juízo destes - ele próprio era a obra daquela construção. O juízo cabe ao expectador. Nada mais nouvelle vague. Com isto, não se vê um filme com o olhar de uma criança, mas tudo na obra parece parte de uma engrenagem compreensível e decifrável.
 Há ainda o conflito imanente ou aparente entre o antigo e o moderno. Além dos limites da escola (conforme comentei acima), o adultério da mãe de Antoine, o seu casamento, seu papel de dona de casa e de mãe é mais que uma reunião de fatos: esconde-se aí um conflito de uma sociedade em transformação, outra ética e moral e um modo de vida que combina tempos distintos. Outro fato a evidenciar o conflito temporal: Antoine Doniel nasceu antes do casamento de sua mãe com seu pai (de fato, seu padrasto) e foi “salvo” por uma avó que não permitiu que sua mãe o abortasse. A avó, uma representação significativa das relações entre gerações.
 Muito embora Antoine sofra as penas daquela realidade, temos de reconhecer que o mundo ao seu redor não o massacra. Tolhe-o e joga-o num reformatório, mas não recai sobre o menino toda a tragédia psicossocial existente no mundo atual. Hoje, mesmo na moderna  França, a “transgressão” de Antoine não seria a de pequenos furtos ou a deliciosa vagabundagem pelos cinemas. Certamente, teríamos de adicionar componentes muito mais violentos, mais sexualidade, mais impossibilidades e mais sofrimento interior e físico. Basta que projetemos em nossas mentes as imagens de outro filme, cujo o tema é a escola: Entre os Muros da Escola (Entre les murs, direção de Laurent Cantet, França, 2007). Ali, além da transgressão juvenil, temos uma quase impossibilidade civilizatória, fruto da falta de coesão cultural e da ampla dificuldade de tratar o problema da multiculturalidade, a partir da qual cada um aceita o outro como ele é e vive (alteridade). Neste sentido, Antoine Doniel (ou François Truffaut) teve “sorte”. Seus maiores riscos sequer estavam por detrás dos muros da escola, como no filme de 2007.Por fim, Os incompreendidos nos traz um convívio agradável com a lente de Truffault, cuja direção é impecável (ganhou o Prêmio Cannes como melhor diretor), a fotografia é sedutora, o roteiro é elegante e a interpretação dos atores é na medida – de fato, a obra como um todo se sobressai largamente sobre as interpretações individuais. Há, ainda, a Paris entre o outono e o inverno. Embora não houvesse naquele tempo, a pantagruélica sociedade de consumo de agora, a simplicidade de Paris respira a beleza que a cidade possui há muito. No filme, a certa altura, Antoine, preso, murmura que “não é proibido fugir (do reformatório), é proibido ser capturado”. De Paris não se deve fugir. E nada melhor que sucumbir a ela.

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