terça-feira, 14 de janeiro de 2014

"A Grande Beleza" Mimetiza o Mundo e o Renova

Reinou durante a segunda metade do século XX até a queda do Império Soviético, a crença de boa parte do pensamento de que os valores burgueses necessariamente corroíam as perspectivas do proletariado. Em seu famoso livro "A Sociedade do Espetáculo" de 1967, Guy Debord afirma que "toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação". Não é preciso nos desgastarmos excessivamente para que possamos enxergar que a síntese de Debord manifesta-se claramente por todos os afluentes e vazantes da sociedade moderna. Além disso, falta-nos um sentido de totalidade e um "sentimento de mundo" com a licença ao poeta Drummond.  Espalha-se, ademais, uma cultura vazia de valores (individuais e coletivos), descartável e, permitam-me o termo, "brega" e "grosseira".
É a partir da premissa brevemente enunciada acima que passo a comentar o filme A Grande Beleza (La Grande Bellezza, Itália/rança, 2013, 142m, dirigido por Paolo Sorrentino, com Toni Servillo,Carlo Verdone, Sabrina Ferilli, Carlo Buccirosso e Serena Grandi), ganhador do Globo de Ouro (2013) de melhor filme estrangeiro. . Trata-se de um filme que pode ser visto por variados ângulos, mas de muitas formas estes fluem para uma ácida critica para a "sociedade do espetáculo" que transborda por todos os lados de nossa vida, digamos, "burguesa". 
Jep Gambardella, interpretado brilhantemente por Servillo, é um jornalista que escreve sobre as faces da vida da alta sociedade romana, especialmente sobre arte contemporânea. É uma espécie de colunista de arte/social, um observador agudo e crítico daquilo que vê, um escritor de apenas um livro, escrito em sua juventude (ele tem 64 anos). Nada, após seu primeiro livro, o empurrou para escrever outro. É como se um tédio se abatesse por décadas, sem um grande amor (que teve quando jovem) e sem um insight que justificasse um novo empreendimento do pensamento.
O filme é um flanar de Gambardella por sua Roma querida, observando as cenas urbanas e delas retirando, com humor e perspicácia, a vulgaridade, o vazio e a inconsequência daquilo que vê. Sorrentino, o jovem e talentoso diretor do filme, constrói um roteiro (juntamente com Umberto Contarello) que consegue ser explícito por meio de um cultivo precioso do detalhe. É a partir das particularidades cênicas que Sorrentino expande as ideias e o imaginário do espectador. Não é um filme "fácil" no sentido de que é preciso estar atento ao que se passa, pois quase tudo parece importante (e, às vezes, não é). Há cenas que são verdadeiramente hilariantes na medida em que o trajeto dos personagens e a progressão das cenas mostra cenas bizarras e explícitas, absurda mesmo, sobre a vulgaridade e o vazio mundano. Paolo Sorrentino carrega para a tela toda a tradição de Federico Fellini ("A Doce Vida"), seja na temática estupenda, seja na forma inovadora e cheia de "estranhamentos artísticos". Há, inclusive, várias cenas que põe a nu a vontade de Sorrentino em expor ao público a pura fonte felliniana. 
São muitas as divagações de Jep Gambardella (Servillo): o amor, a arte contemporânea, as relações sociais, o papel dos intelectuais, a gastronomia, a loucura humana, o sexo, as drogas, e assim vai. Em tudo há espírito crítico, mas o diretor/roteirista não se furta a contradizer o fato vulgar com uma visão alternativa (seria uma fuga?). Em palavras singelas, Sorrentino "bate e rebate". Mostra disso é a cena em que uma criança joga aleatoriamente e violentamente tintas de todas as cores sobre uma imensa tela. Está a "elaborar" um quadro de arte. Nas cenas seguintes, a câmera desliza lentamente por entre obras de arte renascentistas como se mostrasse uma porta de saída para aquela coisa horrorosa de uma tresloucada menina. É como se o diretor gritasse: "parem o Romero Brito!"
O filme conspira sem solenidade contra a "sociedade do espetáculo" que passamos a vivenciar conforme o desenvolvimento capitalista se expandiu desde o início do século passado. A corrosão não é mais capitalista. É da alma mesmo. A Grande Beleza contesta a ausência de espírito na matéria, a alma penada e perdida do nosso cotidiano e, em meio a uma bela e cuidada contestação, ela abre os portões para o belo. Sorrentino não tem medo de combater numa trincheira na qual dificilmente haverá vitória. A realidade parece um jogo perdido, mas sempre devemos construir oásis em meio ao deserto. É preciso ver e sentir a realidade, mas é necessário sonhar e superar o espetáculo vazio por meio de um sonho.
Do ponto de vista artístico Toni Servillo dá um show de interpretação. Ele combina rara capacidade de se mostrar delirante e, ao mesmo tempo, sóbrio e irônico. Lembra muito Marcelo Mastroianni, morto em 1996. Esteja o seu olhar na câmera ou no horizonte, Gambardella transmite com perícia a linguagem do filme e, criativamente, constrói um personagem que serve ao roteiro e vice-versa. Espero ver Servillo mais vezes na tela.
A Grande Beleza é, enfim, um filme espetacular. O seu nome condiz com esperança que devemos cultivar.