Sobram análises e elogios a José Saramago depois de sua morte neste 18 de junho de 2010 aos 87 anos. O escritor português finalmente encontrou repouso na sua casa nas Ilhas Canárias (exatamente na Ilha de Lanzarotte). Sua obra sempre foi inquietante.
A obra de Saramago é muito comemorada como inovadora - utilizou a língua portuguesa com um estilo seco em meio a frases longas e pontuação nada obediente aos preceitos e tradições clássicas da gramática da última flor do Lazio. No que diz respeito à temática soube ultrapassar limites óbvios que estavam dispostos ao tempo e à realidade que viveu e conviveu. De todo o modo, dos temas de seus livros podemos destacar que, em cada parágrafo ou capítulo de seus livros, podia-se observar a oscilação constante entre a ficção e a não-ficção. Algo frenético, intenso, questionador e angustiante. É o caso de Ensaio Sobre a Cegueira e Memorial do Convento. Em poucos livros - destaco O Ano da Morte de Ricardo Reis - a profundidade da ficção se torna mais clara e muitos aspectos são explorados sob o manto de uma literatura, digamos, menos engajada à realidade, mais voadora e com latitude romanesca.
Suspeito que a sua maior preferência tenha sido a de ser um ficcionista polêmico. Seu melhor papel. Aí é onde se destaca mais pelas inferências e intervenções racionais no contexto de sua literatura. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é marco desta sua característica. Nele Saramago parece mais realizado e exercitando a sua imaginação em nome de uma coerência pessoal no que diz respeito ao seu ateísmo e seu anti-clericalismo. No mundo hodierno talvez esta sua face tenha se tornado mais sedutora aos olhos de críticos literários, bem como dos pensadores de nosso tempo. A rebeldia é sempre mais sedutora e, convenhamos, exerce além do fascínio uma espécie de "efeito congelante" sobre o pensamento crítico do leitor/pensador.
José Saramago reunia uma série de atributos que lhe permitiam que a coroa de iconoclasta lhe caísse bem: nascido de uma família pobre, foi trabalhador pouco especializado e tinha uma extraordinária capacidade autodidata. Logo aos 22 anos publicou seu primeiro livro depois de anos de uma educação formal deficiente. Foi um ícone da esquerda mundial e de muitas formas seu porta-voz.
A glória, não apenas literária, de Saramago é, obviamente, produto de seu tempo. Todavia, não se pode atribuir-lhe posições avançadas. Não era um visionário, era um crítico do presente que utilizava ferramentas arcaicas do passado. Nunca revisou seus conceitos stalinistas, estes muito além dos marxistas. Seu ateísmo sempre me pareceu uma decorrência natural de sua visão política e não fruto de uma mastigação demorada e intelectual. Deus não parecia caber no homem e vice-versa. Porém, o homem de Saramago foi igualmente construído à semelhança da visão cética de uma religião, no caso, o marxismo. Ele foi um devoto do materialismo que, pouco a pouco, na sua literatura e na construção de suas opiniões pessoais, foi fossilizado em dogmas rígidos. As críticas que dispensava ao mundo católico saíam de sua boca e pena, ambas devotadas aos mais duros e intransigentes dogmas. Neste sentido, não há revisão crítica nem em sua vida e nem em sua obra.
Há, ademais, uma incoerência intrínseca de seu pensamento - se é que existiu um. Saramago é fruto de muitas experiências que se propagaram mundo afora e lhe permitiram chegar ao Nobel de Literatura. A mais importante é a liberdade que gozou como poucos privilegiados e, muito provavelmente, não gozaria no regime soviético - apenas para citar o mais óbvio. Contestava um capitalismo que lhe deu abrigo e promoção. Criticava a Igreja Católica e os cristãos sem que fosse capaz de entendê-los no tempo. Falava de justiça, mas de uma justiça estrangulada pelos seu dogmas cultivados e deixados numa estante a vigiar os seus pensamentos. Afirmava que a "democracia agonizava no mundo", mas nunca foi capaz de estruturar o significado da própria construção frasal.
Em A Viagem do Elefante de 2008 ele nos contou a história do transporte de um elefante de Goa (Índia) até a Aústria, passando pela Espanha e Portugal. Tudo se passa no século XVI. Aquela transição exótica do elefante é uma espécie de uma longa tentativa de Saramago de transfigurar o ser humano. Não conseguiu. Sua mente ficou petrificada nos seus próprios limites dogmáticos. Embora voassem suas idéias literárias, o homem de Saramago permaneceu na sua tumba, sem chance de reviver e exercer seu potencial criativo. O homem de Saramago foi condenado pela Inquisição do célebre escritor português. Mesmo assim, a liberdade manda lembranças e aplaude a sua grandiosa obra literária.
sábado, 19 de junho de 2010
terça-feira, 8 de junho de 2010
Em "Sex and City 2" a Hipermodernidade é Explícita
Há aqueles que criticam o vazio e o consumismo do filme Sex and the City 2 (EUA, 2010, direção de Michael Patrick King, com Sarah Jessica Parker, Kristin Davis, Kim Cattrall, Cynthia Nixon, Jason Lewis, David Eigenberg e Chris Noth). Há aqueles, ainda, que se divertem com o filme e disfarçam as suas próprias ambições, o desejo de cada um ser aquilo que assistem e as suas próprias frustrações em não viverem o que as mulheres-personagens saboreiam intensamente. Bom, estas são duas percepções que podemos extrair do ponto de vista "negativo" do filme. Todavia, há algo no ar que sai das salas de exibições no sentido norte das sociedades modernas. Como nos ensina Gilles Lipovetsky em seu livro "Tempos Hipermodernos":
"(...)a modernidade passou para uma velocidade superior em que tudo hoje parece ser levado ao excesso: são os hipermercados, o hiperterrorismo, as hiperpotências, o hipertexto, hiperclasses, enfim, o hipercapitalismo. O que isso significa? Que a modernidade não tem mais limites, não tem mais críticas fundamentais em relação a si mesma".
Estamos inseridos neste mundo onde a significação intrínseca das coisas é a própria coisa, o seu sabor imediato, o seu caráter hedonista e que se esgota com grande impacto e de forma instantânea. Os limites da modernidade inexistem e são transportados para o interior de cada ser. As personagens do filme nada mais são do que o espelho concreto (e ao mesmo tempo imaginário) da sociedade que vivemos. E se não vivemos ainda nesta sociedade, por quanto esta pode nos ser inacessível, há ainda a ambição e o desejo que podemos motivar dentro de nossa alma.
Sex and City 2 é uma aposta ainda mais ambiciosa na "coisificação" do espírito, na excessiva individualização da vida. Em certos momentos aquelas mulheres parecem estar reunidas para "curtir" juntas os prazeres de uma viagem exótica. Todavia, elas estão sós, sem maiores divagações coletivas e, de momento em momento, olham para os lados para verificar se o script da hipermodernidade está sendo cumprido: as roupas e bolsas da moda são oportunidade inequívoca de se afirmarem, os comportamentos tem de estar enquadrados em uma moldura, ao mesmo tempo, previsível e obrigatória. A realidade é esta e ponto final.
Os esterótipos são reais e efetivos: a viagem aos Emirados Árabes Unidos é a manifestação mais cristalina de tudo isto. Os árabes são travestidos de idiotas, o exótico é incorporado como se fosse um adereço e as personagens secundárias estão ali para servir aquelas moradoras de New York. O sexo oscila entre o comportamento falsamente moralista de Carrie (Sarah Jessica Parker) e a volúpia descabida e possível da personagem de Kim Catrall. Esta última já beira a menopausa, mas tenta conter o inevitável do tempo com suas 34 pílulas diárias de hormônios. Mais um pouco poderia engravidar, mas o que ela quer mesmo é o pênis alheio.
Tudo isto pode parecer novo, mas nem tanto é. William Shakespeare, já sentenciava na voz de Lady Macbeth na cena II de sua famosa peça:
" Nada se ganha e tudo se perde, quando nosso desejo fica satisfeito sem contentamento.Mais seguro é ser o objeto que destruímos, mais seguro do que habitar uma alegria duvidosa, construída pela destruição."
Não sejamos tão céticos ao assistir este filme. Incorporemo-nos por entre os objetos e nos deixemos consumir. Nem importa que Sarah Jessica Parker (Carrie) não seja tão deslumbrante (tem as pernas excessivamente tortas), que Cynthia Nixon (Miranda) esteja visivelmente acima do peso, que Kristin Davis (Charlotte) manifeste explícita masculinidade ou, até mesmo, a Kim Catrall (Samantha) seja apenas uma mulher ex-sexy e, até mesmo, meio caída.
Nesta infinita aparência do filme, podemos nos divertir e assistir os passos dos personagens que incorporamos na nossa própria vida. A produção bem acabada do filme, sem nenhuma invenção cênica ou estilística, nos dá a oportunidade de nos ocuparmos em desejar, e se pudermos, consumir tudo que lá está. (Atenção: o filme tem quase três horas!). Neste contexto, sequer a defesa das liberalidades hipermodernas tem conteúdo valorativo: o casamento gay, logo no início do filme, não passa de uma ocasião para revelar toda frivolidade vivente. O espetáculo da festa seria homofóbico não fosse tão sintonizado com a forma e a aparência hipermoderna. Os gays também são objetos de consumo.
Por fim, podemos pensar no que as mulheres que empreenderam as primeiras lutas feministas poderiam pensar sobre Sex and City 2. A revolução que elas preconizaram quis jogar o "ex-sexo fraco" dentro do sistema de trabalho e dos valores culturais dominados pelos machos. Sex and City 2 não apenas mostra como demonstra que a tarefa daquelas revolucionárias foi cumprida. Com a vantagem de que não há muros de Berlim para tombarem. As mulheres continuam a viajar, a fazer sexo selvagem, a comprar roupas caras e a trabalhar para pagarem tudo isto. O universo que nós temos é este e não há ninguém que queira mudá-lo. Os machos simplesmente entenderam a jogada. Fazem o jogo com algum prazer e muito cinismo.
"(...)a modernidade passou para uma velocidade superior em que tudo hoje parece ser levado ao excesso: são os hipermercados, o hiperterrorismo, as hiperpotências, o hipertexto, hiperclasses, enfim, o hipercapitalismo. O que isso significa? Que a modernidade não tem mais limites, não tem mais críticas fundamentais em relação a si mesma".
Estamos inseridos neste mundo onde a significação intrínseca das coisas é a própria coisa, o seu sabor imediato, o seu caráter hedonista e que se esgota com grande impacto e de forma instantânea. Os limites da modernidade inexistem e são transportados para o interior de cada ser. As personagens do filme nada mais são do que o espelho concreto (e ao mesmo tempo imaginário) da sociedade que vivemos. E se não vivemos ainda nesta sociedade, por quanto esta pode nos ser inacessível, há ainda a ambição e o desejo que podemos motivar dentro de nossa alma.
Sex and City 2 é uma aposta ainda mais ambiciosa na "coisificação" do espírito, na excessiva individualização da vida. Em certos momentos aquelas mulheres parecem estar reunidas para "curtir" juntas os prazeres de uma viagem exótica. Todavia, elas estão sós, sem maiores divagações coletivas e, de momento em momento, olham para os lados para verificar se o script da hipermodernidade está sendo cumprido: as roupas e bolsas da moda são oportunidade inequívoca de se afirmarem, os comportamentos tem de estar enquadrados em uma moldura, ao mesmo tempo, previsível e obrigatória. A realidade é esta e ponto final.
Os esterótipos são reais e efetivos: a viagem aos Emirados Árabes Unidos é a manifestação mais cristalina de tudo isto. Os árabes são travestidos de idiotas, o exótico é incorporado como se fosse um adereço e as personagens secundárias estão ali para servir aquelas moradoras de New York. O sexo oscila entre o comportamento falsamente moralista de Carrie (Sarah Jessica Parker) e a volúpia descabida e possível da personagem de Kim Catrall. Esta última já beira a menopausa, mas tenta conter o inevitável do tempo com suas 34 pílulas diárias de hormônios. Mais um pouco poderia engravidar, mas o que ela quer mesmo é o pênis alheio.
Tudo isto pode parecer novo, mas nem tanto é. William Shakespeare, já sentenciava na voz de Lady Macbeth na cena II de sua famosa peça:
" Nada se ganha e tudo se perde, quando nosso desejo fica satisfeito sem contentamento.Mais seguro é ser o objeto que destruímos, mais seguro do que habitar uma alegria duvidosa, construída pela destruição."
Não sejamos tão céticos ao assistir este filme. Incorporemo-nos por entre os objetos e nos deixemos consumir. Nem importa que Sarah Jessica Parker (Carrie) não seja tão deslumbrante (tem as pernas excessivamente tortas), que Cynthia Nixon (Miranda) esteja visivelmente acima do peso, que Kristin Davis (Charlotte) manifeste explícita masculinidade ou, até mesmo, a Kim Catrall (Samantha) seja apenas uma mulher ex-sexy e, até mesmo, meio caída.
Nesta infinita aparência do filme, podemos nos divertir e assistir os passos dos personagens que incorporamos na nossa própria vida. A produção bem acabada do filme, sem nenhuma invenção cênica ou estilística, nos dá a oportunidade de nos ocuparmos em desejar, e se pudermos, consumir tudo que lá está. (Atenção: o filme tem quase três horas!). Neste contexto, sequer a defesa das liberalidades hipermodernas tem conteúdo valorativo: o casamento gay, logo no início do filme, não passa de uma ocasião para revelar toda frivolidade vivente. O espetáculo da festa seria homofóbico não fosse tão sintonizado com a forma e a aparência hipermoderna. Os gays também são objetos de consumo.
Por fim, podemos pensar no que as mulheres que empreenderam as primeiras lutas feministas poderiam pensar sobre Sex and City 2. A revolução que elas preconizaram quis jogar o "ex-sexo fraco" dentro do sistema de trabalho e dos valores culturais dominados pelos machos. Sex and City 2 não apenas mostra como demonstra que a tarefa daquelas revolucionárias foi cumprida. Com a vantagem de que não há muros de Berlim para tombarem. As mulheres continuam a viajar, a fazer sexo selvagem, a comprar roupas caras e a trabalhar para pagarem tudo isto. O universo que nós temos é este e não há ninguém que queira mudá-lo. Os machos simplesmente entenderam a jogada. Fazem o jogo com algum prazer e muito cinismo.
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