sábado, 19 de junho de 2010

Saramago: Iconoclasta e Dogmático

Sobram análises e elogios a José Saramago depois de sua morte neste 18 de junho de 2010 aos 87 anos. O escritor português finalmente encontrou repouso na sua casa nas Ilhas Canárias (exatamente na Ilha de Lanzarotte). Sua obra sempre foi inquietante.
A obra de Saramago é muito comemorada como inovadora - utilizou a língua portuguesa com um estilo seco em meio a frases longas e pontuação nada obediente aos preceitos e tradições clássicas da gramática da última flor do Lazio. No que diz respeito à temática soube ultrapassar limites óbvios que estavam dispostos ao tempo e à realidade que viveu e conviveu. De todo o modo, dos temas de seus livros podemos destacar que, em cada parágrafo ou capítulo de seus livros, podia-se observar a oscilação constante entre a ficção e a não-ficção. Algo frenético, intenso, questionador e angustiante. É o caso de Ensaio Sobre a Cegueira e Memorial do Convento. Em poucos livros - destaco O Ano da Morte de Ricardo Reis - a profundidade da ficção se torna mais clara e muitos aspectos são explorados sob o manto de uma literatura, digamos, menos engajada à realidade, mais voadora e com latitude romanesca.
Suspeito que a sua maior preferência tenha sido a de ser um ficcionista polêmico.  Seu melhor papel. Aí é onde se destaca mais pelas inferências e intervenções racionais no contexto de sua literatura. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é marco desta sua característica. Nele Saramago parece mais realizado e exercitando a sua imaginação em nome de uma coerência pessoal no que diz respeito ao seu ateísmo e seu anti-clericalismo. No mundo hodierno talvez esta sua face tenha se tornado mais sedutora aos olhos de críticos literários, bem como dos pensadores de nosso tempo. A rebeldia é sempre mais sedutora e, convenhamos, exerce além do fascínio uma espécie de "efeito congelante" sobre o pensamento crítico do leitor/pensador.
José Saramago reunia uma série de atributos que lhe permitiam que a coroa de iconoclasta lhe caísse bem: nascido de uma família pobre, foi trabalhador pouco especializado e tinha uma extraordinária capacidade autodidata. Logo aos 22 anos publicou seu primeiro livro depois de anos de uma educação formal deficiente. Foi um ícone da esquerda mundial e de muitas formas seu porta-voz.

A glória, não apenas literária, de Saramago é, obviamente, produto de seu tempo. Todavia, não se pode atribuir-lhe posições avançadas. Não era um visionário, era um crítico do presente que utilizava ferramentas arcaicas do passado. Nunca revisou seus conceitos stalinistas, estes muito além dos marxistas. Seu ateísmo sempre me pareceu uma decorrência natural de sua visão política e não fruto de uma mastigação demorada e intelectual. Deus não parecia caber no homem e vice-versa. Porém, o homem de Saramago foi igualmente construído à semelhança da visão cética de uma religião, no caso, o marxismo. Ele foi um devoto do materialismo que, pouco a pouco, na sua literatura e na construção de suas opiniões pessoais, foi fossilizado em dogmas rígidos. As críticas que dispensava ao mundo católico saíam de sua boca e pena, ambas devotadas aos mais duros e intransigentes dogmas. Neste sentido, não há revisão crítica nem em sua vida e nem em sua obra.
Há, ademais, uma incoerência intrínseca de seu pensamento - se é que existiu um. Saramago é fruto de muitas experiências que se propagaram mundo afora e lhe permitiram chegar ao Nobel de Literatura. A mais importante é a liberdade que gozou como poucos privilegiados e, muito provavelmente, não gozaria no regime soviético - apenas para citar o mais óbvio. Contestava um capitalismo que lhe deu abrigo e promoção. Criticava a Igreja Católica e os cristãos sem que fosse capaz de entendê-los no tempo. Falava de justiça, mas de uma justiça estrangulada pelos seu dogmas cultivados e deixados numa estante a vigiar os seus pensamentos. Afirmava que a "democracia agonizava no mundo", mas nunca foi capaz de estruturar o significado da própria construção frasal.

Em A Viagem do Elefante de 2008 ele nos contou a história do transporte de um elefante de Goa (Índia) até a Aústria, passando pela Espanha e Portugal. Tudo se passa no século XVI. Aquela transição exótica do elefante é uma espécie de uma longa tentativa de Saramago de transfigurar o ser humano. Não conseguiu. Sua mente ficou petrificada nos seus próprios limites dogmáticos. Embora voassem suas idéias literárias, o homem de Saramago permaneceu na sua tumba, sem chance de reviver e exercer seu potencial criativo. O homem de Saramago foi condenado pela Inquisição do célebre escritor português. Mesmo assim, a liberdade manda lembranças e aplaude a sua grandiosa obra literária. 



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