terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Dois Irmãos": Um Filme Cheios de Sutiliezas

O cinema me parece uma das últimas resistências, senão a última, ao processo de "padronização" do pensamento ocidental. De fato, parece que a história acabou, mesmo que saibamos que esta afirmação é uma farsa. O pensamento, a reflexão, a introspecção na alma do homem, são formas nobres de trabalho. (Mas, quem deseja trabalhar?). Nele a mais-valia nada mais é do que aqueles saltos que damos para pensarmos na realidade e na sua correspondente transformação. Ok! Eu sei que estou fazendo uma pregação quixotesca quando olhamos a barbárie que cerca a humanidade, a falta de delicadeza, a ausência de espírito crítico e assim vai. Seria ótimo que alguns loucos (mesmo que poucos) se ocupassem das trincheiras da resistência à banalização fácil do pensamento.
Cinema, assim como literatura, é "estranhamento". Diante de uma realidade objetiva e banal se pode extrair transgressões que nos fazem pensar e ir além. A vida vale a pena por isto. Se se cai no vazio da existência, acabamos sabendo completamente os fatos (basta ir ao google), mas pouco sabemos dos fatos. Um pouco sutil, mas a vida é cheia de sutilezas. A bem da própria humanidade.
O diretor argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (Argentina, 2010, com Graziela Borges e Antonio Gasalla) consegue atingir o "estranhamento" dos fatos de forma delicada, inteligente e com uma ironia suave e aguda ao mesmo tempo. Este filme tem traços da nouvelle vague, não propriamente na temática amoral, mas na ausência de lineraridade entre os personagens e suas estórias. Trata de dois irmãos como reza o título. Ela é uma uma corretora de imóveis, sempre cercada de si mesma, sempre marcada pelo ceticismo e por uma ausência de intensidade. Tudo lhe parece óbvio e capaz de fornecer frutos que possam lhe satisfazer o próprio ego. A vida não tem sutilezas e nem a fortuna de ver além da própria existência "careta" e burguesa.
Já o irmão é revestido de sensibilidade, seja no tratamento carinhoso e generoso à mãe, seja na sua atividade de artesão. A cada passo que dá, ele extrai os temperos da vida, edifica além dos tijolos disponíveis e escassos. O que poderia se esperar de um aposentado? Ele nos prova que muita coisa, inclusive a capacidade de traduzir para si e para os outros os mais profundos significados da existência. 
O filme não é um show e nada tem de pretencioso. Ao contrário: tem o ritmo de uma peça bem encadeada e que a cada cena faz o espectador se entregar a si mesmo. Um espécie de jogo de sedução. As impossibilidades da realidade humana vão se traduzindo em amplos salões que podem ser percorridos por nós mesmos.
Do choque de visões entre os dois irmãos nasce um questionamento raro no cinema, sobretudo naquele que é produzido nas periferias de Hollywood. Não é um jogo de Caim e Abel. Trata-se de um filme inacabado, de fato. O diretor não se preocupa com a paródia, mesmo que esta lhe seja útil. Há uma dialética nada cansativa onde as diferenças se entrelaçam e criam um novo momento. Em certo momento a peça grega Édipo Rei é utilizada com rara beleza, porquanto cria um novo e surpreendente momento, magnificamente encarnado pelo ator Antonio Gasalla. Ali, vemos que a memória e o esquecimento dos fatos se transporta para a própria vida.
Daniel Burman consegue fazer a sua parte e resistir á onda que dilacera a arte cinematográfica. Faz um filme sem chatices, mesmo que acabe por sobrar alguma chateação para aqueles que vêem a vida com a amargura e o niilismo projetados pela também excepcional atriz Graziela Borges.
O saber que provem do cinema é, ao mesmo tempo cognitivo, (conhecemos a realidade) e reflexivo (vamos à essência daquilo que vivemos). Nem sempre é assim, é claro. Somente para aqueles que sabem que existem sempre Dois Irmãos  que nos perseguem em nós mesmos. Felizmente ou infelizmente sempre acabamos por ter de escolher um deles. Não dá para fugir. Mesmo que corramos o mundo todo...  

Um comentário:

Marília disse...

Petros,
Tive a oportunidades de assistir este filme no último domingo, achei de uma simplicidade fantástica e concordo com você quando diz que há sempre dois irmãos dentro de nós!
Por favor, escreva com mais freqüência, sua escrita é um bálsamo para mim e para tantos outros que o acompanham.