De volta à cozinha. Não é a mesma cozinha como os mais próximos sabem. Aquela já se foi, tal o tempo. Resta-nos o espaço, porquanto o tempo se esvai. É no espaço que reencontro a cozinha na qual posso retornar à confecção de meus queridos pratos para os meus muitos queridos. Já é outro lugar, não mais aquele. Poeticamente, posso retornar às panelas e assadeiras, colheres e garfões. Volto à luta. De novo. De volta à cozinha.
Como nos ensina Michel Foucault em um magnífico texto de 1967 (De Outros Espaços): " (...) acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver fundamentalmente com o espaço, muito mais do que com o tempo. O tempo aparece-nos como apenas uma das várias operações distributivas que são possíveis entre os elementos que estão espalhados pelo espaço." Eis uma bela reflexão que me ocorre quando depois de certo tempo, volto à cozinha. Eis um novo espaço.
La Cité de la Lumière já desposou de novo a minha alma. Belo encanto este de uma cidade que me faz falta. Sempre. Bem, mas a hora é de retomada. Para tanto a escolha vai para outra terra: "a terra no sopé das montanhas", o Piemonte.
Tenho uma relação pessoal com o Piemonte. Nos caminhos daquela terra deixei um pouco de mim, especialmente em Torino, cidade fria, mas que esquentou as minhas esperanças em tempos difíceis e incertos. Diante da lareira, gastei muita conversa com velhos e novos amigos. Uma elegia à vida que sobrevive dentro de mim até os dias de hoje.
A cozinha piemontesa é por vezes "acusada" de ser uma cópia da francesa. Muito embora existam inequívocas influências francófilas, seria falso reduzir os prazeres da culinária daquela terra fria à esta preconceituosa referência em função da Dinastia de Savóia que governou o Piemonte por 800 anos aproximadamente . (Há preconceituosos fingidos de liberais por todos os lados nos dias de hoje).
Dito isto, vamos à receita que reservo para os amigos. Trata-se do Vitello Tonnato.
Frite bem um lombo de vitela (700-800 gramas) numa panela grande. Não exagere no óleo (pode usar um belo azeite). Deite 500 ml de vinho branco seco juntamente com a pimenta e o sal (ambos ao seu gosto, sem exageros, basta bom senso). Depois de alguns poucos minutos (dois ou três) de finalizada a fritura, junte dois talos de aipo e duas folhas de louro, além de um dente de alho (inteiro). Tudo isto deve ficar por 50 minutos submetido ao fogo médio. Depois deixe esfriar com paciência e sem ansiedade.
Prepare um maionese com duas gemas de ovo, azeite extra virgem (de preferência um Kalamata grego) e o suco de um solitário limão. Bata a maionese e passe ela num passador com 200 gramas de atum em conserva, dois filetes de anchova finamente recortadas e as alcaparras (que podem ser acrescidas após tudo correr pelo passador).
Corte a carne já fria em fatias bem fininhas e as coloque num prato grande e raso. Cubra a carne com a maionese e coloque num lugar fresco por duas ou três horas. Doce, muito doce descanso.
Na hora de servir abra um belo tinto. (Se a ocasião e o bolso permitirem pode escolher um vinho piemontês, um barolo, ou um barbaresco ou, ainda, um barbera. Caso contrário, tente um Carmenère, por exemplo).
Você estará diante de uma das entradas mais tradicionais do Piemonte. Como no início do século XIX. Rodeado de amigos, da família, de seu amor e assim vai. A vida, sem mistificações, mas cheia de esperança e elegância...
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
Chet Baker e Suas Memórias Perdidas
Chet Baker (1929-1988), nascido Chesney Henry Baker Jr, abusou da sua própria capacidade musical. Ele foi um dos maiores jazzists das décadas de 1950 e 1960. Um gênio musical que somou uma incrível simplicidade musical com um extraordinário repertório de interpretações magistrais. Suas notas saíam do trompete e do flugelhorn como uma garrafa de champagne desce doce e suave pela garganta dos apreciadores da bebida francesa.
A vida de Baker foi o oposto de sua suavidade musical. Percorreu prisões por conta das muitas (e múltiplas) drogas que experimentou por quase todas as vias possíveis. Perdeu os dentes depois de um espancamento por não ter saldado suas dívidas com os fornecedores de drogas. Mesmo assim, o vento doce (e cheio de talento) de sua garganta nunca deixou de percorrer o fluxo por dentro do trompete e o flugelhorn. Na literatura jazzística, Chet Baker ocupa lugar maior, marcante e sedutor. Sua voz, experimentada em memoráveis músicas, tais como, But Not For Me ou I Fall in Love Too Easily, arregimentava amantes da música e da vida na curtição de beijos e mais beijos. Simplesmente lindo e para quem sabe das coisas. Ezra Pound (1885-1972), o genial crítico literário norte-americano, escreveu em ABC of Reading, uma espécie de "manual sobre literatura", que "(...) o canto clarifica a literatura quando ambos se conservam unidos. Força o ouvinte a atentar para as palavras, quando mais não seja pela repetição, e isso até a extrema deliqüescência, em que o músico, desesperado possivelmente de encontrar um autor inteligente, abandona as palavras de todo e usa sons inarticulados." Nada mais apropriado para falar de Chet Baker, seja o cantor, seja o músico dos sopros suaves. Com uma ressalva: a sua "inarticulação" sonora é a própria coerência amorosa das notas da partitura. Um gênio, enfim.
Por estes dias, em viagens intermináveis de avião, pude ler Chet Baker - Memórias Perdidas (Jorge Zahar Editor, 2002) . Trata-se de um compêndio, meio desarticulado no que se refere ao tempo, coletados pela esposa de Baker, Carol, que teve a grandeza de projetar um pouco da alma do músico por meio de seu "diário sem compromissos com dias, datas ou ordem." As memórias foram publicadas em 1997 e jogam um pouco de luz sobre aquele homem cheio de angústias, sofrimentos e comportamentos enlouquecidos. Interessante nestes extratos é notar que a percepção de Baker para a importância destes não é nada banal. Ao contrário: de fatos comuns ele revela a importância destes para a sua própria existência (ou desejo de existência). Não é um livro fascinante. Nada disso. É um livro revelador que se lido aos sons de Baker nos colocam diante de uma dialética que combina o tufão de uma vida com a maestria doce de suas músicas. Nada mais misterioso. Nem sempre a arte imita a vida, não é mesmo?
Se fosse possível, de minha parte, eu pediria que Chet Baker jorrasse de sua eternidade um pouco de luz sobre a sua morte a 13 de maio de 1988. Seu corpo despencou da janela do hotel em que estava hospedado em Amsterdã e chocou-se contra a calçada. Foi suicídio, acidente ou crime? Bem, a polícia deixou-nos algumas conclusões, mas o mistério sobre Chet, sua vida e morte estão à solta para os amantes do jazz. Por estes dias da vida de viajante passei pela Rue de la Huchette em Paris onde Chet Baker tocou no Le Chat Qui Pêche. As coisas por ali não estão muito mudadas. Em meio aos bares e pontos de encontros não há nem o silêncio para verificarmos se sobrou alguma nota de Chet no entorno da rua e nem o ruído estrondoso de sua existência. Há apenas a elegância rara de Paris que soma movimento e o destino literário de suas ruas e vielas. Uma espécie de lembrança que define bem quem foi Chet Baker...
A vida de Baker foi o oposto de sua suavidade musical. Percorreu prisões por conta das muitas (e múltiplas) drogas que experimentou por quase todas as vias possíveis. Perdeu os dentes depois de um espancamento por não ter saldado suas dívidas com os fornecedores de drogas. Mesmo assim, o vento doce (e cheio de talento) de sua garganta nunca deixou de percorrer o fluxo por dentro do trompete e o flugelhorn. Na literatura jazzística, Chet Baker ocupa lugar maior, marcante e sedutor. Sua voz, experimentada em memoráveis músicas, tais como, But Not For Me ou I Fall in Love Too Easily, arregimentava amantes da música e da vida na curtição de beijos e mais beijos. Simplesmente lindo e para quem sabe das coisas. Ezra Pound (1885-1972), o genial crítico literário norte-americano, escreveu em ABC of Reading, uma espécie de "manual sobre literatura", que "(...) o canto clarifica a literatura quando ambos se conservam unidos. Força o ouvinte a atentar para as palavras, quando mais não seja pela repetição, e isso até a extrema deliqüescência, em que o músico, desesperado possivelmente de encontrar um autor inteligente, abandona as palavras de todo e usa sons inarticulados." Nada mais apropriado para falar de Chet Baker, seja o cantor, seja o músico dos sopros suaves. Com uma ressalva: a sua "inarticulação" sonora é a própria coerência amorosa das notas da partitura. Um gênio, enfim.
Por estes dias, em viagens intermináveis de avião, pude ler Chet Baker - Memórias Perdidas (Jorge Zahar Editor, 2002) . Trata-se de um compêndio, meio desarticulado no que se refere ao tempo, coletados pela esposa de Baker, Carol, que teve a grandeza de projetar um pouco da alma do músico por meio de seu "diário sem compromissos com dias, datas ou ordem." As memórias foram publicadas em 1997 e jogam um pouco de luz sobre aquele homem cheio de angústias, sofrimentos e comportamentos enlouquecidos. Interessante nestes extratos é notar que a percepção de Baker para a importância destes não é nada banal. Ao contrário: de fatos comuns ele revela a importância destes para a sua própria existência (ou desejo de existência). Não é um livro fascinante. Nada disso. É um livro revelador que se lido aos sons de Baker nos colocam diante de uma dialética que combina o tufão de uma vida com a maestria doce de suas músicas. Nada mais misterioso. Nem sempre a arte imita a vida, não é mesmo?
Se fosse possível, de minha parte, eu pediria que Chet Baker jorrasse de sua eternidade um pouco de luz sobre a sua morte a 13 de maio de 1988. Seu corpo despencou da janela do hotel em que estava hospedado em Amsterdã e chocou-se contra a calçada. Foi suicídio, acidente ou crime? Bem, a polícia deixou-nos algumas conclusões, mas o mistério sobre Chet, sua vida e morte estão à solta para os amantes do jazz. Por estes dias da vida de viajante passei pela Rue de la Huchette em Paris onde Chet Baker tocou no Le Chat Qui Pêche. As coisas por ali não estão muito mudadas. Em meio aos bares e pontos de encontros não há nem o silêncio para verificarmos se sobrou alguma nota de Chet no entorno da rua e nem o ruído estrondoso de sua existência. Há apenas a elegância rara de Paris que soma movimento e o destino literário de suas ruas e vielas. Uma espécie de lembrança que define bem quem foi Chet Baker...
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
"Além da Vida" de Clint Eastwood Trata da Vida
Clint Eastwood é daqueles atores e diretores de cinema que melhoram como os vinhos: o tempo lhes é um benefício e elevam os seus elementos a uma órbita superior. No caso de Eastwood este processo de superação enquanto diretor iniciou-se, do meu ponto de vista, a partir de Unforgiven (1992), com o qual ganhou o Oscar de melhor direção. Há mais: Clint Eastwood conseguiu evoluir preocupando-se com os detalhes e retalhos de cada cena de seus filmes. Não confecciona, mas se comporta como um alfaiate. Seguiu o padrão do grande diretor que se comporta verdadeiramente como um autor de talento de livros e romances. A cada palavra (cena) ele consegue apurar à perfeição a melhor tradução em forma. Sobra-lhe elegância num mundo do cinema onde impera a agilidade fácil com a cena e, desta forma, propaga-se a vulgarização da idéia por meio da forma. (Não nos demoramos a descobrir isto, não é mesmo?).
Em Além da Vida (Hereafter, 2010, EUA, com Matt Damon, Cécile de France e Lyndsey Marshal) encontramos não apenas a direção elegante de Clint Eastwood. Neste filme propaga-se a beleza com que é tratada uma estória que tinha tudo para resvalar para o lugar comum. O roteiro conta a relação das pessoas com a morte. Há em cada um dos personagens uma procura específica pelo que acontece do outro lado da vida. As transformações pelas quais os personagens passam são, pouco a pouco, entronizadas em seus cotidianos os quais se tornam diferentes frente às possibilidades que aparentavam existir antes de perderem os seus entes queridos ou contemplarem a morte de perto. Um tema delicado tratado com mais delicadeza ainda.
De fato, o filme não trata daquilo que está Além da Vida. (Neste sentido o título em inglês Hereafter é muito mais feliz a meu ver). O roteiro é simplesmente fantástico. Consegue "projetar para trás" o evento da morte. Há um enorme encontro entre as pessoas e a sua própria humanidade. A impossibilidade de compreender a perda de alguém é um fator que é apurado a favor do ser humano e não contra ele. Os personagens são acomodados em seus próprios sentimentos e, por conseguinte, o roteiro explora cada um a partir de sua própria intimidade. Tudo muito lindo e, quando transformado pelas belas imagens de Eastwood, o filme ganha um traçado ainda mais encantador. Sobra emoção. A compreensão consiste em entender a si mesmo, a perceber que não existe nada que justifique a nossa opressão interior Na Vida e não Além da Vida. Uma inversão de concepção dificílima de ser feita, mas que Peter Morgan, o roteirista, consegue fazer com arte e destreza, seja pelo conteúdo, seja pelo ritmo impecável dos diálogos. Não há exibicionismo ou ostentação em relação ao tema. Apenas a armadilha de nos jogar com sutileza em frente da vida e não da morte. Cada um é cada um diante da vida que é de todos (e a morte também).
Cécile de France é o destaque entre o elenco, muito embora a atuação de Matt Damon seja excelente. Todavia, a atriz francesa está segura e consegue segurar os suspiros perante sua beleza provocante por meio da fortaleza dos sentimentos de esperança, abnegação e coragem que projeta. Um presente dos deuses. No começo do filme ela é ressuscitada. Ao seu final ela nos ressuscita. Dá uma vontade louca de abraçá-la. (Quem assistir ao filme entenderá o que estou a dizer).
Honoré de Balzac, faz reaparecer em cada uma das obras que compõe A Comédia Humana os personagens que fazem parte de outras criações. Esta "ressurreição" foi uma das maiores revoluções literárias de todos os tempos e o nascimento de um estilo de romance copiado por outros grandes escritores. No filme de Clint Eastwood, mal comparando com Balzac, as personagens ressuscitam: elas saem de dentro de si e ganham a tela. Quem viver, há de emocionar. Alguns até as lágrimas.
Em Além da Vida (Hereafter, 2010, EUA, com Matt Damon, Cécile de France e Lyndsey Marshal) encontramos não apenas a direção elegante de Clint Eastwood. Neste filme propaga-se a beleza com que é tratada uma estória que tinha tudo para resvalar para o lugar comum. O roteiro conta a relação das pessoas com a morte. Há em cada um dos personagens uma procura específica pelo que acontece do outro lado da vida. As transformações pelas quais os personagens passam são, pouco a pouco, entronizadas em seus cotidianos os quais se tornam diferentes frente às possibilidades que aparentavam existir antes de perderem os seus entes queridos ou contemplarem a morte de perto. Um tema delicado tratado com mais delicadeza ainda.
De fato, o filme não trata daquilo que está Além da Vida. (Neste sentido o título em inglês Hereafter é muito mais feliz a meu ver). O roteiro é simplesmente fantástico. Consegue "projetar para trás" o evento da morte. Há um enorme encontro entre as pessoas e a sua própria humanidade. A impossibilidade de compreender a perda de alguém é um fator que é apurado a favor do ser humano e não contra ele. Os personagens são acomodados em seus próprios sentimentos e, por conseguinte, o roteiro explora cada um a partir de sua própria intimidade. Tudo muito lindo e, quando transformado pelas belas imagens de Eastwood, o filme ganha um traçado ainda mais encantador. Sobra emoção. A compreensão consiste em entender a si mesmo, a perceber que não existe nada que justifique a nossa opressão interior Na Vida e não Além da Vida. Uma inversão de concepção dificílima de ser feita, mas que Peter Morgan, o roteirista, consegue fazer com arte e destreza, seja pelo conteúdo, seja pelo ritmo impecável dos diálogos. Não há exibicionismo ou ostentação em relação ao tema. Apenas a armadilha de nos jogar com sutileza em frente da vida e não da morte. Cada um é cada um diante da vida que é de todos (e a morte também).
Cécile de France é o destaque entre o elenco, muito embora a atuação de Matt Damon seja excelente. Todavia, a atriz francesa está segura e consegue segurar os suspiros perante sua beleza provocante por meio da fortaleza dos sentimentos de esperança, abnegação e coragem que projeta. Um presente dos deuses. No começo do filme ela é ressuscitada. Ao seu final ela nos ressuscita. Dá uma vontade louca de abraçá-la. (Quem assistir ao filme entenderá o que estou a dizer).
Honoré de Balzac, faz reaparecer em cada uma das obras que compõe A Comédia Humana os personagens que fazem parte de outras criações. Esta "ressurreição" foi uma das maiores revoluções literárias de todos os tempos e o nascimento de um estilo de romance copiado por outros grandes escritores. No filme de Clint Eastwood, mal comparando com Balzac, as personagens ressuscitam: elas saem de dentro de si e ganham a tela. Quem viver, há de emocionar. Alguns até as lágrimas.
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