Ernest Hemingway em The Sun Also Rises (O Sol Também se Levanta), publicado em 1927 (em Portugal, sob o nome de Fiesta) conta, com forma e conteúdo magníficos, a boemia e o estado de espírito dos norte-americanos que se encontravam em Paris durante os anos 20 do século passado. Este período foi do ponto de vista artístico, sobretudo para as artes plásticas e a literatura, um tempo de criação marcado pela excepcional qualidade da técnica literária, bem como pela marcada reflexão sobre o niilismo que imperava nos anos entre as duas grandes guerras mundiais. Eu me arriscaria a dizer que foi neste tempo e ali, em Paris, que se formulou toda a percepção temática e linguística do restante do século para a grande literatura universal.
Em The Sun Also Rises, o principal personagem Jacob Barnes, ilustra a frivolidade e os conflitos existenciais (ou ausência destes) daquela geração. Brett Ashley, a paixão de Barnes, é o meio pelo qual Hemingway faz a sua excepcional reflexão romanciada.
Para se ter uma noção da importância literária dos anos 20 em Paris, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ezra Pound e T.S. Eliot foram diretamente os protagonistas desta reviravolta. Além da influência indireta destes sobre Robert Frost, William Faulkner e Eugene O´Neill. A criação anarquista, já marcada pelo freudismo e pelo vazio existencial também se propaga a partir de Paris dos "anos loucos" e alcança toda a geração beatnik (Jack Kerouac, Allen Ginsberg, John Clellon Holmes). Como se vê, tempos férteis na literatura e, a partir dela, em toda a arte do século XX.
Escrevi tudo isso para dizer que o roteiro de Woody Allen para Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, EUA, 2011, dirigido pelo próprio Woody Allen com Owen Wilson, Rachel McAdams, Kurt Fuller, Kathy Bates e Mimi Kennedy) já estava escrito quando ele pôs-se a escrever os diálogos deste delicioso filme. A idéia do roteiro, portanto, não alcança a gramatura de um plágio porquanto Allen emborca o seu barco criativo por meio de uma estória bem construída com o claro objetivo cinematográfico. Ora, isso tem méritos, ainda mais quando ele acrescenta velada e, ao mesmo tempo, sutil crítica ao modus operandi do pensar moderno, especialmente o norte-americano. Em certo momento do filme a inserção dos comentários sobre o Tea Party e o besteirol dos republicanos alinhados com George Bush chega ao limite da tragicomédia.
Se o roteiro é uma feliz garimpagem e mineração do que há de melhor naqueles anos 20, o comportamento da câmera de Allen é condizente com a sua proposta. Ele abandona aqueles traçados e movimentos bestas que costuma fazer em seus piores filmes e se rende a fixação pura e simples das imagens e dos atores. Fica fácil quando ao fundo temos Paris e a beleza mágica de Rachel McAdams e, de relance, a primeira-dama francesa Carla Bruni. Allen explora os melhores detalhes e, assim, chega a essência daquilo que chamaríamos de um belo filme. Esperto este Woody, não é mesmo?
O desfile de diálogos inteligentes e de personagens como Fitzgerald, Stein, Picasso, Buñel, Duchamps, Dali, Hemingway, Eliot e tantos outros (incluídos os da Belle Époque e Art Nouveau, Toulouse-Lautrec e Renoir) é um festival de beleza e aprendizado. É fato que muitos expectadores, mundo afora (incluídos os do "primeiro mundo") se angustiam quando não conhecem todos os personagens, mas arte que vale a pena é aquela que nivela pelo alto, sem a grosseria e falta de consistência e beleza que impera pelas galerias, livrarias e outros recantos pretensamente "artisticos" ao redor deste sofrido globo.
Certa parte da crítica de cinema costuma atribuir a Woody Allen uma genialidade que, a meu ver, ele não possui. Meia Noite em Paris tem o mérito de apagar um pouco as chatices que ele espalhou na sua vasta obra, tais quais, Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos, O Sonho de Cassandra e Igual a Tudo na Vida, e fazer com que Woody Allen voltasse aos seus bons filmes.
A trilha musical é sempre o bocado precioso, charmoso, delirante dos filmes do diretor. A sua seleção é especial. No caso de Meia Noite em Paris a combinação da estética parisiense -sobretudo, nos arredores de Montmartre - com a trilha é perfeita. Além disso, Paris, chuvosa ou ensolarada, agora e nos anos 20, sempre é um refúgio que permite que a face etílica dos seres possa se somar a musicalidade interior ao mistério clássico da Cidade das Luzes. Nos anos 20, em meio à lei seca do outro lado do Atlântico, muitos artistas americanos puderam mergulhar em bebedeiras homéricas que lhes permitia o refúgio do ambiente vitoriano e puritano da América. Para os músicos, as bebedeiras soavam como música. É o caso de Cole Porter, Louis Armstrong, Duke Ellington, Josephine Baker, dentre tantos geniais intérpretes. A trilha musical de Woody Allen também se reveste desta ambientação. Escutar as composições dispostas ao longo do filme é uma delícia, muita estrada além das doceiras e cafés da Rive Gauche daqueles anos 20, com as mulheres sensuais, com seus seios pequenos, os olhos escondidos pelos cloches, - aqueles pequenos chapéus que caiam à altura dos olhos - as pernas parcialmente jogadas ao vento em meio aos vestidos cada vez mais curtos e os seus cabelos a la garçonne escasseados pelas tesouras dos salões de beleza cheios de fumaça de cigarros. Tudo além do lindo, sem o câncer destes dias atuais e sem a tuberculose, o mal du siècle dos séculos anteriores.
Feliz de quem pode ver este filme do qual saímos cheios de felicidade, além das suas fronteiras aparentes e seus recheios cinéfilos. Como na abertura do belíssimo poema de T.S. Eliot, “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock" de 1915:
"Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa..."
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Mesmo nao tendo visto o filme, recebo tal crítica como incentivo e aperetivo para futuramente assistir esta obra.
belíssimo texto querido Xico.
abraços
Pellizzola
Apaixonada por Hemingway (já li todos os trabalhos e leio tudo que encontro sobre ele que tbém foi tema do meu TCC no curso de Letras-PUC/PR), assisti o filme no dia da estreia aqui na minha cidade, na primeira sessão, na hora do almoço... Fiquei em extase. Pra quem conhece literatura e a obra desses monstros sagrados retratados no filme é um delírio. Conheci Paris em 2008, mas me senti lá nos anos 20. Woody Allen soube (como sempre) explorar a beleza da cidade e derramou arte e lirismo sobre a platéia... Difícil, mesmo para quem não conhece os personagens, não sair flutuando da sala do cinema...
Nilce Silva
Curitiba/Pr
Postar um comentário