segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A Pele de Almodóvar

Pedro Almodóvar é um criador raro no ambiente cinematográfico. Sua estréia no cinema em 1974 com o curta-metragem Dos Putas o História de Amor que Termina em Boda (Duas Putas ou a História de Amor que Termina em Casamento) já inaugurava um estilo que se perpetuou ao longo de toda a sua carreira. É um estilista criativo que cunhou a primazia de sua própria personalidade sem preocupações em rivalizar seus filmes com os de outros cineastas, muito embora tenha recebido múltiplas e relevantes influências, reconhecidas pelo próprio espanhol, dentre os quais Luis Buñuel, Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
Do meu ponto de vista há dois "fios condutores" que percorrem toda a sua filmografia. O primeiro  é o cuidado estético de fixar uma imagem comum a todos os filmes, no geral, uma ambientalização pop, uma espécie de conjunção entre referências antigas (ou melhor, old fashion) e, paradoxalmente, moderna. Este "pano de fundo" de seus filmes respinga para o espectador uma sensação de atemporalidade, uma dificuldade de se localizar no tempo, se se está no futuro ou no passado. Trata-se de um traço cujo exercício é complexo do ponto de vista artístico e técnico e que coloca em segundo plano a discussão sobre o valor estético daquilo que se vê. Está mais para uma "assinatura". O segundo marco de sua obra é a presença marcante de grandes atrizes, algumas que projetam uma sexualidade exacerbada pela lente do diretor (Penélope Cruz e Victória Abril, por exemplo) e outras que recheiam os diálogos com uma força feminina exagerada (como no caso de Carmem Maura e Marisa Paredes). Excluo o fato de sua pública homossexualidade ser um aspecto definitivo de sua obra, muito embora muitos críticos assim o projetem. Para mim, a homossexualidade de Almodóvar pode até ter contribuído para apimentar certos traços comuns de seus filmes. Todavia, parece-me primário reduzir a construção de uma obra tão talentosa a um aspecto que embora marcante, me parece incapaz de ser determinante ou, como querem alguns, dominante.
O seu último filme, A Pele Que Habito (A Piel Que Habito, 2011, Espanha, com Antonio Banderas, Marisa Paredes e Elena Anaya) não é uma "novidade" em nenhum aspecto quando colocado à luz (e sem comparação) com o seus filmes anteriores. Isso não o torna de modo algum desinteressante ou óbvio. Ao contrário, o enredo sabe estar em sintonia com novos e intrigantes temas. O personagem principal é um cirurgião plástico (Robert, papel de Banderas) que está aparentemente às voltas com um experimento genético que levará a sua paciente Vera (Elena Anaya) a ter "uma pele resistente". A trama passa, ao longo de um bem construído roteiro, de algo marcadamente "científico" para outra perspectiva especialmente pessoal (relativamente a Robert). Não se trata propriamente de um "mistério" no sentido de Hitchcock, mas de uma "surpresa" no sentido do próprio cineasta espanhol. O roteiro é um vai-e-vem de cenas, temporalmente distintas, que vão explicando não apenas o sentido da estória, mas também a natureza dos personagens que de muitas formas se travestem segundo o tempo em que transcorre a estória. Ou seja, todos os possíveis, imaginários e impossíveis transtornos de seus personagens (não apenas deste filme) estão na estória que ganha o mesmo e forte colorido de seus cenários recheados de vermelho, laranja, lilás, etc. As psicoses são contadas com surpresa e calma. Tudo meio enlouquecedor sem que ninguém fique tremendo de medo ou angústia na cadeira do cinema.  
A Pele Que Habito é um filme no qual residem um argumento poderoso (o grau de transformação de cada personagem nos seus aspectos físico e psicológico) e uma projeção estética que domina as cenas. Este ultimo aspecto me parece o "desejado" pelo autor. Parece-me que Almodóvar talhou cada cena de forma a que a própria forma cinematográfica tomasse de assalto os olhos do espectador. O que se vê  é muito mais marcante que aquilo que se interpreta ou se escuta. É ali que está a pele de Pedro Almodóvar - ou será a sua alma? É como se o filme em sua forma final fosse apenas uma variante da estética que ele como esmero desejou projetar. Um produto cheio de aspectos complexos e intrigados que, ao final da sessão, recriam uma experiência particular e individual que permite que se discuta horas a fio sobre o filme e se chegue a apenas um consenso: trata-se de algo específico e especial de um autor de cinema. A forma supera o conteúdo sem o sufocar. O resto cabe a cada um concluir. 

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