Dentre
os gêneros literários - a comédia, o drama, a tragédia, o romance, a novela, o
conto - é a poesia aquela que encerra as maiores dificuldades para o autor e
para o leitor. O poeta é essencialmente um criador em todos os aspectos deste
gênero literário, restringindo-se não somente à forma do verso, mas ao caráter
essencialmente subjetivo do texto e à sua elevação ficcional. Há um elenco de
possibilidades que carrega o poeta cujas escolhas em verso traduzem um lirismo
necessariamente irracionalista, mesmo que penetre à mente do leitor com poderes
de produzir sensações mais diversas. Para o leitor, exige-se um grau de
abstração resultante da ausência de um “estatuto próprio” deste gênero que
possa situá-lo em termos de narrativa e forma. Tal qual a música, a poesia é
recebida como uma espécie de sussurro ao pé de ouvido, uma confissão que não
pode ser proferida em voz alta. Apenas mergulha na alma.
Nestes
tempos em que a matéria domou o gênero humano, a poesia se acanhou enquanto
preferência dentre os livros escolhidos nas prateleiras pelos leitores e com
poucos editores capazes de redescobri-las em autores de qualidade no exercício
da construção da qual nos falou Aristóteles na sua Poética. A poesia de qualidade brota com a flor de lótus por entre
o imenso lamaçal de grande parte da literatura mundial e nacional. Parece um
diagnóstico excessivamente duro, mas basta percorrer os corredores das
livrarias para perceber esta realidade.
Há
bênçãos, contudo. Fernando Dusi Rocha é destes poetas, escondidos em meio à
vastidão do mundo e que é repouso para a alma do leitor e amante da poesia.
Seu livro Crisol Com Açúcar (2011,
Editora 7Letras) é simplesmente dotado de todas as virtudes para frequentar as
boas prateleiras mentais e físicas, dos leitores e das livrarias. O poeta
nasceu em 1961 em Ubá, a cidade carinho, terra de Ary Barroso, Antonio Olinto e
Ascânio Lopes. Portanto, já tem raízes que deitam sobre a melhor terra da
música e da literatura. É doutorando em literatura pela Universidade de
Brasília, onde desenvolve pesquisa sobre o veio prosaístico das Cartas Régias do Padre Antônio Vieira. Seu primeiro
livro, O exílio de Polifemo (2006),
foi o 10º colocado na categoria Poesia do
Prêmio Jabuti de 2007. É acadêmico voltado às letras, membro da Societè dês auteurs et poetes de la
Francophonie, ensaísta e publicou artigos em diversos jornais e revistas
nacionais e estrangeiros. Como se vê uma bagagem e tanto.
Todavia,
seria apenas um acadêmico com estufada reputação, não fosse poeta do qual
“escorre o poema” e se excede. Crisol com
Açúcar é um livro bem cuidado, caprichado, ressonante. O termo Crisol,
conforme explicado logo na abertura do livro, era o nome atribuído aos
anarquistas catalães que se notabilizaram em 1922/23 no combate contra a
“guerra suja” patronal contra os trabalhadores de Barcelona. Note-se, portanto,
que o poeta, talvez revestido pela mansidão e delicadeza mineira, logo tratou
de adoçar os combatentes revolucionários: eis o açúcar.
O
livro é um compêndio poeticamente organizado de 36 poemas “afetados” e 32
“glosados”. São impressionantemente representativos da melhor poesia: o leitor
vai passeando, nas palavras de Tvzetan Todorov, “na literalidade como uma pura configuração fônica, gráfica e semântica
e, por outro lado, um discurso representativo (´mimético´) que evoca um
universo de experiência.” Tudo isso, marcado por um lirismo transeunte
entre o humor (contido) e certo ar fatídico. Vejamos uns poucos versos
selecionados do poema Ora et Labora, estúpido!:
tremi ao saber que
jamais seria um anjo: apenas percebo
a angeolologia em
papéis de cabeceira. Esse devão nunca
me degradaria nem me
arrastaria a terras sem nódoas.
Ou
no poema que dá nome ao livro:
que a humanidade oferecia:um
verniz da verdade.
Nada mais faiscava no
meu lado: só o gozo
daquele nosso crisol
derretido em rapadura.
É
rara a presença de um poeta entre nós com tanta versatilidade, sem que o uso
desta palavra ressoe algo ligado ao utilitarismo do mundo hodierno. Como “poeta
moderno” e mineiro, as formas do autor não estão circunscritas aos rondós ou
aos modelos clássicos, mas bem que poderiam estar, uma questão de mera
preferência formal. A temática poética que é proposta por Dusi Rocha para se
expandir na mente do leitor pode perfeitamente ser reimaginada e novamente os
versos são passíveis de serem reconstruídos para que a ideia possa ser
completamente abarcada. É difícil, como já disse acima, esta tarefa poética.
Não à toa, a sua escolha por formas mais fixas recai sobre os sonetos, a mais
fecunda criação poética de vez que “vale mais que um longo poema” (Boileau)
quando bem construído. A heterogeneidade da linguagem, as suas fábulas
narrativas e as coletâneas de ideias são realmente merecedoras de leitura
cuidadosa daqueles que tem a capacidade especial da abstração e do
“entendimento” poético da apresentação/representação proposta pelo autor.
Crisol com Açúcar é
um presente à poesia brasileira. Fernando Dusi Rocha, poeta mineiro de Ubá,
precisa ser conhecido do público brasileiro e dos editores. È justo que os
encontros literários voltem ao passado para comemorar os anos de nossos maiores
escritores e poetas. Todavia, por tantas vezes, temos a chance de inaugurar o
futuro e continuamos a cultivar apenas o passado. E apenas isso. Dusi Rocha
está aí para, quem sabe com tantos outros poetas, inaugurar uma nova jornada com açúcar da poesia brasileira.
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