Não deixa de ser impressionante como uma sociedade pode cair no obscurantismo político e social e fazer desmoronar os mais básicos dos princípios, tais como a liberdade e a justiça. A história nos ensina que há não tempo certo e nem ocasião própria para que os mantos escuros pousem sobre as sociedades. Ontem, hoje, sempre.
O filme franco-italiano Vincere (2009, dirigido por Marco Bellocchio, com Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Corrado Invernizzi) trata destas questões de fundo ao contar a história de Ida Dalser que foi amante do ditador Benito Mussolini antes de sua ascensão ao poder em 1922. Mussolini teve com Ida um filho, batizado com o mesmo nome do ditador. Depois de abandoná-la, nunca reconheceu o filho e sequer o relacionamento que tivera com ela. Diante da insistência de Ida Dalser em ser reconhecida como "esposa de Mussolini", ela passa o resto da vida perambulando por monicômios como se louca fosse. A adesão das massas ao projeto político do ditador, o qual resultou no conhecido desastre da nação italiana, é o pano de fundo e a essência do filme. A história de Ida nada mais é que a tradução inequívoca de um drama pessoal que pode ser projetado além-muros da própria realidade de um ser. A morte de Ida e de seu filho, ambos enterrados em valas comuns e não-visitadas, é a morte dos próprios princípios da humanidade e da política. É difícil acreditar muitas vezes que isto possa acontecer.
Uma coisa é certa: a popularidade de um líder portador de um projeto como foi o fascista desmoraliza a idéia vulgar de que "a voz do povo é a voz de Deus". O adesismo momentâneo motivado por uma vida melhor diante das eventuais dificuldades pelas quais pode passar uma sociedade em troca do abandono dos mais profundos princípios é daquelas falácias que se tornam óbvias apenas quando se completa a tragédia. O nazismo e o fascismo foram o corolário das insatisfações sociais com as políticas liberais que dominaram o século XIX e início do XX. Hitler e Mussolini souberam extrair das insatisfações do povo a ação necessária para consolidar os seus projetos de horror. Os aplausos, inclusive da enorme parcela das elites, davam a impressão de que a história dava mais um passo à frente. Contrariamente, caía-se na mesma vala de Ida e seu filho. Franco, as ditaduras latino-americanas, Bush e seu 11/09, Stálin, Mao e tantos outros, nada mais são do que a variação tônica da mesma pauta. Todos tiveram substantivo apoio do povo. Ora, o povo! Partícipe ativo de sua própria traição.
Vincere é um belo filme. Bellochio, o diretor, dá lições de cinema: incorporou um padrão modernizado do neorealismo italiano, usou a câmera de variadas formas e plenamente adequadas à cada cena: do close do jovem revolucionário Benito Mussolini (nos anos iniciais do século) até o aproveitamento perfeito de imagens do verdadeiro Mussolini e seus histrônicos discursos. A bela atriz Giovanna Mezzogiorno é uma benção à interpretação: o sofrimento de Ida fica embelezado pelos lindos olhos verdes dela, mas a face não esconde o sopro trágico da alma de Ida Dalser .
Há poucos filmes de cunho político que atingem o objetivo de contar, ensinar, refletir e criticar a história. Bellochio consegue isto sem passar pelas "facilidades" do tema e as "vulgaridades" que facilitam a adesão da platéia. O povo aderiu a Mussolini. O filme é feito sem se importar muito em ser popular. A entrega filmada da história é um alerta para os nossos tempos, inclusive no Brasil. O obscurantismo é um fantasma eterno da liberdade. Ida Dalser vive para nos alertar.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Copa do Mundo é do Polvo! E do Jagger!
Caminhamos para assistir a final da Copa do Mundo da África do Sul entre a Espanha e a Holanda. De fato, não estamos diante de um espetáculo muito estimulante. Temos um concerto de interesses imensos, de empresas patrocinadoras, de empresários de jogadores, da mídia e da crônica esportiva cheia de opiniões, do turismo local, etc e tal. Em meio a tudo isto, um pouquinho de futebol porque ninguém é de ferro. Afinal como seria explicar a FIFA? Não há ironia que possa revelar algo diferente.
Talvez o único alerta que possamos fazer a esta altura da tertúlia futebolística seja o fato de que estamos diante de uma Copa já decidida. Não há razão alguma que justifique que a partida final aconteça. O campeão pode ser conhecido muito mais facilmente. Explico.
Desde sempre o homem é fascinado pela aferição do futuro. Os magos, profetas, gurus e assim vai, sempre estiveram a vigiar o futuro para os reis e poderosos. O povo ficava na espreita para ver se sobrava algum. No Templo de Delfos, na Grécia, as pitonisas entravam em transe e transformavam as suas palavras em previsões, ou melhor, em verdades incontestáveis. Aí residia o futuro e quem fosse sábio que apenas cumprisse o script.
Pois bem: temos de reconhecer que o polvo do aquário da África do Sul é a pitonisa moderna. Com os seus lustrosos tentáculos ele não erra: levanta a tampa do recipiente com comida e serve-se. Há dois recipientes, cada qual com a bandeira do país que vai disputar a partida. O recipiente escolhido representa o país vencedor da partida vindoura. O futuro está revelado.
Ora, pergunto eu: por que devemos perder tempo vendo TV se um polvo resolve a coisa toda?
Trata-se de um profeta de estirpe. Natan, Amós, Elias. Sei lá.
A única questão que me intriga é saber por que tantos "especialistas" em futebol não tem a mesma acuracidade. Por que aqueles comentaristas faceiros falam uma coisa e o que acontece em campo é outra?
Já especulei muito a respeito. Listei algumas razões (incertas):
1) O polvo tem muitos tentáculos e os "especialistas" tem apenas um cérebro. Nos dias de hoje melhor ter corpo que cabeça. Corpo bonito, é claro;
2) O polvo quer mesmo é comer o marisco dentro do recipiente. Vai lá e resolve. Os "especialistas" fingem que não comem, mas para comer tem de não resolver o problema;
3) O polvo é flexível. Os "especialistas" são cheios de convicções;
4) O polvo não precisa falar. Diz, assim mesmo. Os "especialistas" falam muito e não tem nada a dizer;
5) O polvo é remunerado por um marisco. Os "especialistas" tem de vender um monte de patrocínios;
6) O polvo sabe o que a coisa toda é simples. Os "especialistas" precisam explicar a tática, a técnica, o "momento da partida", o "craque da copa", etc.
7) O polvo não se importa com críticas, sequer tem ouvidos. Os "especialistas" precisam ser escutados, criticam, mas odeiam críticas e, antes de falar, verificam a quais interesses eles atendem.
Paro por aqui, pois chega de pensar, temos sete cogitações. Além disso, "sete" é número de mentiroso.
Há, porém, outra forma de decidir as partidas. Basta convidar o Mick Jagger e perguntar para que time ele vai torcer: como se sabe o ex-moço do rock´n roll é um pé frio danado. Mas, que ele decide, isso ele faz!!! Se disse que vai dar Inglaterra, escolha a Alemanha. Se torceu pelo Brasil, escolha a Holanda. Um craque magrela e com a boca beiçuda.
Esta Copa do Mundo para mim não tem time bom. Tem apenas uma dupla que sabe de tudo: o polvo e o Jagger. Não assistirei a partida de domingo. Quero saber das coisas. Antecipadamente.
Talvez o único alerta que possamos fazer a esta altura da tertúlia futebolística seja o fato de que estamos diante de uma Copa já decidida. Não há razão alguma que justifique que a partida final aconteça. O campeão pode ser conhecido muito mais facilmente. Explico.
Desde sempre o homem é fascinado pela aferição do futuro. Os magos, profetas, gurus e assim vai, sempre estiveram a vigiar o futuro para os reis e poderosos. O povo ficava na espreita para ver se sobrava algum. No Templo de Delfos, na Grécia, as pitonisas entravam em transe e transformavam as suas palavras em previsões, ou melhor, em verdades incontestáveis. Aí residia o futuro e quem fosse sábio que apenas cumprisse o script.
Pois bem: temos de reconhecer que o polvo do aquário da África do Sul é a pitonisa moderna. Com os seus lustrosos tentáculos ele não erra: levanta a tampa do recipiente com comida e serve-se. Há dois recipientes, cada qual com a bandeira do país que vai disputar a partida. O recipiente escolhido representa o país vencedor da partida vindoura. O futuro está revelado.
Ora, pergunto eu: por que devemos perder tempo vendo TV se um polvo resolve a coisa toda?
Trata-se de um profeta de estirpe. Natan, Amós, Elias. Sei lá.
A única questão que me intriga é saber por que tantos "especialistas" em futebol não tem a mesma acuracidade. Por que aqueles comentaristas faceiros falam uma coisa e o que acontece em campo é outra?
Já especulei muito a respeito. Listei algumas razões (incertas):
1) O polvo tem muitos tentáculos e os "especialistas" tem apenas um cérebro. Nos dias de hoje melhor ter corpo que cabeça. Corpo bonito, é claro;
2) O polvo quer mesmo é comer o marisco dentro do recipiente. Vai lá e resolve. Os "especialistas" fingem que não comem, mas para comer tem de não resolver o problema;
3) O polvo é flexível. Os "especialistas" são cheios de convicções;
4) O polvo não precisa falar. Diz, assim mesmo. Os "especialistas" falam muito e não tem nada a dizer;
5) O polvo é remunerado por um marisco. Os "especialistas" tem de vender um monte de patrocínios;
6) O polvo sabe o que a coisa toda é simples. Os "especialistas" precisam explicar a tática, a técnica, o "momento da partida", o "craque da copa", etc.
7) O polvo não se importa com críticas, sequer tem ouvidos. Os "especialistas" precisam ser escutados, criticam, mas odeiam críticas e, antes de falar, verificam a quais interesses eles atendem.
Paro por aqui, pois chega de pensar, temos sete cogitações. Além disso, "sete" é número de mentiroso.
Há, porém, outra forma de decidir as partidas. Basta convidar o Mick Jagger e perguntar para que time ele vai torcer: como se sabe o ex-moço do rock´n roll é um pé frio danado. Mas, que ele decide, isso ele faz!!! Se disse que vai dar Inglaterra, escolha a Alemanha. Se torceu pelo Brasil, escolha a Holanda. Um craque magrela e com a boca beiçuda.
Esta Copa do Mundo para mim não tem time bom. Tem apenas uma dupla que sabe de tudo: o polvo e o Jagger. Não assistirei a partida de domingo. Quero saber das coisas. Antecipadamente.
João Baptista, Entre a Saudade e a Compreensão
Para J.A.C, com o carinho que ainda é pouco...
“Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.” (Charles Baudelaire, As Flores do Mal)
João Baptista. Este era o seu nome. Nada mais, nada menos. Temos de reconhecer que o “p” de seu nome compõe um ar de nobreza, a absoluta ausência de obviedade. Podemos lembrar, ademais, o precursor do Salvador. Sua cabeça na bandeja, seu corpo, sei lá onde.
Todas as noites são frias. Afinal, as noites nunca são mais quentes que o próprio dia que as precedem. O sol ilumina, mas queima. A noite se vinga sem queima ou iluminação. Apenas esfria...
Em um certa noite, sem arrepios ou mitificação, João Baptista morria. Segurava a mão de uma moça que não era mais donzela, mas que naquele ato se travestia de dama. João Baptista. Quem há de lembrar este nome?
João Baptista era homem do romance. Não tinha par, nem sequer tinha história. Era dono de bar, boteco, ou coisa assim. Vivia uma íntima opressão, torneada de palavras duras, conselhos óbvios: assim houve de ser, assim teve de ser. Tudo lhe parecia regado em saliva opressiva que o tornava ofegante, mesmo que não fosse fruto de uma caminhada mais acesa. Era dono de bar, boteco ou coisa assim. Todavia, o mundo era uma possibilidade e ele, sabedor de poucas coisas do mundo, sabia que este podia ser algo além da dimensão daquela pequenina cidade do interior de uma terra que não sei o nome.
João Baptista era um oprimido. Não que aquilo que o rodeasse fosse uma corrente ou amarra, mas porque o que o mundo podia ser algo mais universal, livre, belo e, assim mesmo, injusto.
Largou tudo porque o fizeram largar. Passivamente aceitava o seu destino. Amava as mulheres e se deleitava nos cântaros das bebidas e da boemia. Podia ser um negro liberto do século passado. Era um imigrante escravo dos tempos modernos.
Um belo dia apossou-se de feroz dádiva e disse: “existe algo além deste balcão de bar, boteco, ou o que quer que seja.”.
Comprou um caminhão e viveu a liberdade. Em cada porto, uma mulher. Em cada quilômetro um canto novo. Enfim, a liberdade. Lembrava as jogadas arrojadas de um certo artilheiro: Romeu, este era o nome do goleador do jogo de futebol. “Onde estará Julieta?” Nem sabia do velho Shakespeare, mas sabia de Julieta. O amor é óbvio, mas Julieta não é.
Andou sobre o motor quente daquele caminhão. Aonde foi? Onde pousou? Ninguém sabe. João Baptista era como os versos trôpegos de Pessoa:
“Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.”
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.”
A felicidade é como a sorte. Dura pouco, mas pode ser eterna. Como foi para João Baptista? Seu sotaque italiano não pode expressar por muito tempo a felicidade da solidão daquele caminhão a percorrer estradas infinitas. Sua sorte durou pouco. A eternidade veio-lhe como que sorrateira e lhe capturou os movimentos. Esteve doente e ninguém lhe socorreu. Estava sóbrio e ninguém o escutou. Estava preso e ninguém lhe visitou. Estava só e apenas ele compreendeu...
Doente e preso a uns poucos móveis João permaneceu. Sabia já na mente o significado da liberdade, mas sabia que esta era apenas um aforismo de suas tentativas vãs em vagar pelas estradas, sem ter aonde ir.
Sim, havia uma mulata ao seu redor. Antigo amor era agora uma trânsfuga de Deus: segurava a sua mão e acariciava o seu pé. Era tudo o que lhe bastava. Não era pouco. Era quase tudo.
João Baptista doente não era uma caricatura. A liberdade da vida é uma deformação, nunca ela existe límpida e fulgurante. Naquela cama a velocidade prometida já não era de caminhão caixeiro-viajante: a cadeira de rodas era a sua melhor promessa. Não havia reza que pudesse unir as suas mãos rígidas. O corpo ficara torto e amorfo tal qual os dogmatismos que nos empurram para os maiores julgamentos da história.
Não havia saudade porquanto tudo era presente. Não havia futuro, pois tudo era incerto. Meu Deus: João Baptista conheceu o tempo e o aboliu com sua própria enfermidade.
Há o tempo de se plantar, há o tempo de se colher. Há o tempo que não é tempo e este João Baptista conheceu.
Os sonhos nos projetam longe, mas o olhar dos homens nos aterra. João Baptista apenas sonhou, mas ele não sabia que eram sonhos. Nas mãos daquela mulata se sustentava o seu ser. A cama, a cadeira e a mesa num quarto frio (todas as noites são frias). Nada mais. Sem poesia e sem mistificação.
João Baptista morreu. Não houve obituário, nem versos solenes nem discursos. Houve apenas o seu próprio sorriso. Aquele homem sabia o que era a liberdade mesmo que nunca a tenha gozado. A liberdade não era tardia como em Tiradentes. Era apenas uma criação intestina da mente. Naquele caminhão, depois do balcão do bar. Numa direção que não tinha destino.
João Baptista não tem juízes e nem sentença. Tem apenas o seu próprio litígio com a vida. Deixa um legado infinito que apenas a ele próprio serviu. Não tem herdeiros, pois não tem herança. Passou na vida como um vento quente em meio à noite fria que lhe lavrou a própria alma.
Saudade de João Baptista. Ele não se importou com nada, mas eu me importei com tudo. Fosse preso no balcão do bar ou na ilusão de liberdade que carregou até a noite que o levou.
Saudade de João Baptista. Eu o enfrento de dia e o sinto à noite que já não é tão fria.
segunda-feira, 5 de julho de 2010
De Sica: Genial, Humano e Elegante
O encontro da arte com a política sempre foi um tema complexo, mesmo que se reconheça de forma relativamente generalizada que não há possibilidade de separá-los. No caso específico do cinema, a projeção na tela é talvez uma das manifestações mais efetivas da realidade/arte humana. Não há como um diretor fugir do zeitgeist (espírito do tempo) em que vive.
O neorealismo italiano foi um dos movimentos de pensamento sobre o cinema que mais revolucionou a forma de pensar da "sétima arte". Seus principais expoentes, Luchino Visconti, Roberto Rosselini e De Sica deitaram raízes da realidade social e política na película de projeção. Um movimento marcado pelo excesso de criatividade e de coragem temática em meio ao desenvolvimento da moderna Itália. Daí para o mundo. Seus filmes influenciaram grandes diretores comtemporâneos, dentre os quais, Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, Um Bonde Chamado Desejo), Paul Mazursky (Mulher Descasada, Tempestade), Woody Allen (Bananas), Steven Spielberg (Lista de Schindler) e tantos outros. Juntamente com a Nouvelle Vague, o neorealismo raiou como um sol de meio-dia e esquentou o debate sobre cinema com a sua estética arrojada e visão política e social.
O italiano Vittorio De Sicca (1901-1974) foi certamente o príncipe deste movimento: a beleza de seus filmes somada a uma personalidade instigante, sedutora e inteligente são marcos essenciais do movimento neorealista. É isto que está retratado com grande elegância, talento e vasto conteúdo no documentário Vittorio de Sica - Minha Vida, Meus Amores (Itália, 2010, dirigido por Mario Canale e Anna Rosa Mori). Esta dupla de diretores já assinou outro documentário que possuiu a mesma estética sobre Marcello Mastroianni (Marcello - Uma Vida Doce).
O documentário é fascinante como o diretor italiano. Pode-se perceber toda a humanidade de De Sica. O documentário mostra o diretor traçando cuidadosamente a cenas de seus filmes com o carinho que se dispensa a um bebê. Sabia colocar a câmera no olho da idéia e, a partir daí, variava a forma conforme o imperativo daquilo que desejava transmitir. Era jogador compulsivo e perdeu nas mesas dos cassinos grandes fortunas a ponto de fazer filmes bem comerciais para pagar as suas dívidas. Teve e amou duas mulheres ao mesmo tempo e de ambas teve filhos. Era capaz de dar o seu sobretudo para um morador de rua, um ato de abnegação sem a costumeira promoção que se extrai deste tipo de atitude no ambiente pop dos dias de hoje. Era um aristocrata no vestir e agir, mas amava os atores desconhecidos que protagonizavam os seus filmes, muitas vezes em detrimento de estrelas consagradas.
Do meu ponto de vista seus melhores filmes são Ladrões de Bicicleta, Umberto D. (sobre seu pai) e Milagre em Milão. Entretanto, Matrimônio à Italiana e Ontem, Hoje e Amanhã são igualmente brilhantes.
Acredito que é uma espécie de dever republicano o cinema refletir sobre a realidade política e social, preservando, ao mesmo tempo, a elegância e o "estranhamento" na forma. Quando assistimos a um filme que nos ilustra o que vivemos em seus detalhes ganhamos um sentido de totalidade que perdemos nesta era em que a fragmentação dos meios e a avareza dos fins está por destruir o próprio ser humano. Por dentro e por fora. De Sica sabia disto e mostrou sem medo de errar.
O neorealismo italiano foi um dos movimentos de pensamento sobre o cinema que mais revolucionou a forma de pensar da "sétima arte". Seus principais expoentes, Luchino Visconti, Roberto Rosselini e De Sica deitaram raízes da realidade social e política na película de projeção. Um movimento marcado pelo excesso de criatividade e de coragem temática em meio ao desenvolvimento da moderna Itália. Daí para o mundo. Seus filmes influenciaram grandes diretores comtemporâneos, dentre os quais, Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, Um Bonde Chamado Desejo), Paul Mazursky (Mulher Descasada, Tempestade), Woody Allen (Bananas), Steven Spielberg (Lista de Schindler) e tantos outros. Juntamente com a Nouvelle Vague, o neorealismo raiou como um sol de meio-dia e esquentou o debate sobre cinema com a sua estética arrojada e visão política e social.
O italiano Vittorio De Sicca (1901-1974) foi certamente o príncipe deste movimento: a beleza de seus filmes somada a uma personalidade instigante, sedutora e inteligente são marcos essenciais do movimento neorealista. É isto que está retratado com grande elegância, talento e vasto conteúdo no documentário Vittorio de Sica - Minha Vida, Meus Amores (Itália, 2010, dirigido por Mario Canale e Anna Rosa Mori). Esta dupla de diretores já assinou outro documentário que possuiu a mesma estética sobre Marcello Mastroianni (Marcello - Uma Vida Doce).
O documentário é fascinante como o diretor italiano. Pode-se perceber toda a humanidade de De Sica. O documentário mostra o diretor traçando cuidadosamente a cenas de seus filmes com o carinho que se dispensa a um bebê. Sabia colocar a câmera no olho da idéia e, a partir daí, variava a forma conforme o imperativo daquilo que desejava transmitir. Era jogador compulsivo e perdeu nas mesas dos cassinos grandes fortunas a ponto de fazer filmes bem comerciais para pagar as suas dívidas. Teve e amou duas mulheres ao mesmo tempo e de ambas teve filhos. Era capaz de dar o seu sobretudo para um morador de rua, um ato de abnegação sem a costumeira promoção que se extrai deste tipo de atitude no ambiente pop dos dias de hoje. Era um aristocrata no vestir e agir, mas amava os atores desconhecidos que protagonizavam os seus filmes, muitas vezes em detrimento de estrelas consagradas.
Do meu ponto de vista seus melhores filmes são Ladrões de Bicicleta, Umberto D. (sobre seu pai) e Milagre em Milão. Entretanto, Matrimônio à Italiana e Ontem, Hoje e Amanhã são igualmente brilhantes.
Acredito que é uma espécie de dever republicano o cinema refletir sobre a realidade política e social, preservando, ao mesmo tempo, a elegância e o "estranhamento" na forma. Quando assistimos a um filme que nos ilustra o que vivemos em seus detalhes ganhamos um sentido de totalidade que perdemos nesta era em que a fragmentação dos meios e a avareza dos fins está por destruir o próprio ser humano. Por dentro e por fora. De Sica sabia disto e mostrou sem medo de errar.
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