quinta-feira, 8 de julho de 2010

João Baptista, Entre a Saudade e a Compreensão

Para J.A.C, com o carinho que ainda é pouco...

“Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.”    (Charles Baudelaire, As Flores do Mal)


João Baptista. Este era o seu nome. Nada mais, nada menos. Temos de reconhecer que o “p” de seu nome compõe um ar de nobreza, a absoluta ausência de obviedade. Podemos lembrar, ademais, o precursor do Salvador. Sua cabeça na bandeja, seu corpo, sei lá onde.
Todas as noites são frias. Afinal, as noites nunca são mais quentes que o próprio dia que as precedem. O sol ilumina, mas queima. A noite se vinga sem queima ou iluminação. Apenas esfria...
Em um certa noite, sem arrepios ou mitificação, João Baptista morria. Segurava a mão de uma moça que não era mais donzela, mas que naquele ato se travestia de dama. João Baptista. Quem há de lembrar este nome?
João Baptista era homem do romance.  Não tinha par, nem sequer tinha história. Era dono de bar, boteco, ou coisa assim. Vivia uma íntima opressão, torneada de palavras duras, conselhos óbvios: assim houve de ser, assim teve de ser. Tudo lhe parecia regado em saliva opressiva que o tornava ofegante, mesmo que não fosse fruto de uma caminhada mais acesa. Era dono de bar, boteco ou coisa assim. Todavia, o mundo era uma possibilidade e ele, sabedor de poucas coisas do mundo, sabia que este podia ser algo além da dimensão daquela pequenina cidade do interior de uma terra que não sei o nome.
João Baptista era um oprimido. Não que aquilo que o rodeasse fosse uma corrente ou amarra, mas porque o que o mundo podia ser algo mais universal, livre, belo e, assim mesmo, injusto.
Largou tudo porque o fizeram largar. Passivamente aceitava o seu destino. Amava as mulheres e se deleitava nos cântaros das bebidas e da boemia. Podia ser um negro liberto do século passado. Era um imigrante escravo dos tempos modernos.
Um belo dia apossou-se de feroz dádiva e disse: “existe algo além deste balcão de bar, boteco, ou o que quer que seja.”.
Comprou um caminhão e viveu a liberdade. Em cada porto, uma mulher. Em cada quilômetro um canto novo. Enfim, a liberdade. Lembrava as jogadas arrojadas de um certo artilheiro: Romeu, este era o nome do goleador do jogo de futebol. “Onde estará Julieta?” Nem sabia do velho Shakespeare, mas sabia de Julieta. O amor é óbvio, mas Julieta não é.
Andou sobre o motor quente daquele caminhão. Aonde foi? Onde pousou? Ninguém sabe. João Baptista era como os versos trôpegos de Pessoa:

“Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono
.”


A felicidade é como a sorte. Dura pouco, mas pode ser eterna. Como foi para João Baptista? Seu sotaque italiano não pode expressar por muito tempo a felicidade da solidão daquele caminhão a percorrer estradas infinitas. Sua sorte durou pouco. A eternidade veio-lhe como que sorrateira e lhe capturou os movimentos. Esteve doente e ninguém lhe socorreu. Estava sóbrio e ninguém o escutou. Estava preso e ninguém lhe visitou. Estava só e apenas ele compreendeu...
Doente e preso a uns poucos móveis João permaneceu. Sabia já na mente o significado da liberdade, mas sabia que esta era apenas um aforismo de suas tentativas vãs em vagar pelas estradas, sem ter aonde ir.
Sim, havia uma mulata ao seu redor. Antigo amor era agora uma trânsfuga de Deus: segurava a sua mão e acariciava o seu pé. Era tudo o que lhe bastava. Não era pouco. Era quase tudo.
João Baptista doente não era uma caricatura. A liberdade da vida é uma deformação, nunca ela existe límpida e fulgurante. Naquela cama a velocidade prometida já não era de caminhão caixeiro-viajante: a cadeira de rodas era a sua melhor promessa. Não havia reza que pudesse unir as suas mãos rígidas. O corpo ficara torto e amorfo tal qual os dogmatismos que nos empurram para os maiores julgamentos da história.
Não havia saudade porquanto tudo era presente. Não havia futuro, pois tudo era incerto. Meu Deus: João Baptista conheceu o tempo e o aboliu com sua própria enfermidade.
Há o tempo de se plantar, há o tempo de se colher. Há o tempo que não é tempo e este João Baptista conheceu.
Os sonhos nos projetam longe, mas o olhar dos homens nos aterra. João Baptista apenas sonhou, mas ele não sabia que eram sonhos. Nas mãos daquela mulata se sustentava o seu ser. A cama, a cadeira e a mesa num quarto frio (todas as noites são frias). Nada mais. Sem poesia e sem mistificação.
João Baptista morreu. Não houve obituário, nem versos solenes nem discursos. Houve apenas o seu próprio sorriso. Aquele homem sabia o que era a liberdade mesmo que nunca a tenha gozado. A liberdade não era tardia como em Tiradentes. Era apenas uma criação intestina da mente. Naquele caminhão, depois do balcão do bar. Numa direção que não tinha destino.
João Baptista não tem juízes e nem sentença. Tem apenas o seu próprio litígio com a vida. Deixa um legado infinito que apenas a ele próprio serviu. Não tem herdeiros, pois não tem herança. Passou na vida como um vento quente em meio à noite fria que lhe lavrou a própria alma.
Saudade de João Baptista. Ele não se importou com nada, mas eu me importei com tudo. Fosse preso no balcão do bar ou na ilusão de liberdade que carregou até a noite que o levou.
Saudade de João Baptista. Eu o enfrento de dia e o sinto à noite que já não é tão fria.

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