Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores ...
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um
bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra
coisa.
A força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.
(Fernando
Pessoa, Ficções do Interlúdio/Poesia de Álvaro de Campos 11-5-1934)
Lisboa é um eterno recomeço para os portugueses e
uma pedra angular para nós brasileiros. Um lugar no qual a saudade parece
começar antes da despedida. Fernando Pessoa, este “indisciplinador de almas” é
uma espécie de retrato humano desta capital que se reveste de extratos
melancólicos, bucólicos e suaves. Olhar o Tejo para nós brasileiros é como nos
puséssemos a retornar do exílio na direção da ensolarada costa de nosso
Nordeste. Enquanto isso, para os portugueses, o Tejo, nas suas profundezas, é
para os lusitanos um mergulho no passado, na busca do Sebastianismo enfim restaurado, de um Portugal, pequeno no tamanho,
mas grandioso nas ambições.
Antes de ir as beiradas do Tejo, recomenda-se um
passeio descompromissado e lento pelo Chiado e pelas cercanias da Rua dos
Douradores, pelo bar Martinho das Arcadas e pelo Café “A Brasileira”. Nada
melhor que nesta andança cercar os olhos em uma livraria próxima e, quando dela
se aproximar, despreocupar-se com os temas certeiros dos livros de autoajuda,
dos romances medíocres (tal qual, “Comer, Rezar, Amar”, de Liz Gilbert). O
momento é para o lirismo de Pessoa, para a ironia refinada e ilustrada de Eça
de Queiroz e para o romance tortuoso de José Saramago. Ou ainda, para revisitar
“Os Lusíadas”, estes sim!, versos para se ler silenciosamente ao longo das
margens do Tejo. Depois, solte um grito de glória como se independente fosse.
Lisboa é como um vinho estruturado, mas, ao mesmo
tempo, simples, doce e com bouquet cheio
de nuances e referências imemoriais. Não cabe perder tempo se preocupando com o
último post do Twitter ou do
Facebook. Senão, Lisboa se torna um vinho varietal sem o frescor necessário à
curtição da cidade, nas suas fotos vívidas e sem as encostas dos “amigos” da
rede que nunca passam na sua casa.
Os bondes em Lisboa são lentos até nas ladeiras do
Forte de São Jorge. Na parada do Largo de São Carlos desça e veja o que se
passa nos vitrais que anunciam o espetáculo do momento no teatro de mesmo nome.
Tudo é elegante, gentil e culto, sem que seja argentário ou cercado dos
flanelinhas de Copacabana. Não há a pressa do tempo moderno, por certo.
Se misture ao povo e sinta-se um “emissário de um
rei desconhecido”. Verá que aquele sotaque que despenca dos lábios carnudos das
belas raparigas que passam nas largas avenidas é cheio de sensualidade e
beleza. Se estiver ao lado de alguém amado (amado mesmo!), espete um beijo nos
seus lábios para conter o ímpeto que nasce nas entranhas. Se estiver só como um
berbere no Marrocos, sinta-se alado para o amor. Anime-se, mas com lucidez.
As horas em Lisboa sempre hão de interrogar sobre
onde e quando parar e sorver um café, um doce de ovos ou um pescado à moda
portuguesa. Não hesite em responder: pare no “Martinho das Arcadas” para o café
e sinta-se recebendo os amigos como Fernando Pessoa recebia. Coma um “pastel de
Belém” na rua de mesmo nome e pergunte, depois da primeira mordida, se foi por
ali que os anjos que cercaram a manjedoura passaram antes de irem para a Judéia
no tempo daquela criança que mudou o mundo. Quanto ao pescado, bem isso é um
mar (ou oceano?) de possibilidades. Se quiser fugir do mais ordinário, vá ao “O
Polícia”, ali na Rua Marquês Sá da Bandeira, 112ª. Recomendo o vinho Quinta Pacheca para acompanhar os
pescados, sejam quais forem estes. Este branco é um corte do Douro, das castas Cerceal,
Malvasia Fina, Gouveio e Moscatel. Diferente, muito diferente.
Em Portugal se comemora neste ano os quarenta anos
da Revolução dos Cravos que encerrou (para sempre) a ditadura do período de
Salazar. Vá a Alfama e comemore a liberdade (que também é sua). Não deixe nunca
de passear por entre os parques da cidade. Não é apenas um lugar de repouso
para a elevada luminosidade que penetra nos olhos. Dá para se encantar com as
variedades de árvores, algumas trazidas do Ultramar, dos recantos quase
infinitamente distantes que Vasco da Gama ousou singrar.
Lisboa deveria ser sempre a primeira cidade a
visitarmos na Europa. De lá podemos partir mais humanos e simples, mesmo que
revestidos pela Graça de sentir Pessoa nos seus versos que abrem este singelo
texto. A Europa tem fronteiras que se expandem para dentro das pequenas
comunidades, suas relvas próprias, sua comida típica, seus vinhos sedutores,
seu povo provinciano. Lisboa, por sua vez, nos avisa que “a poesia é a maneira
figurada de se viver”. As suas bordas, portanto, nunca se firmam em definições,
mas numa leveza cândida que nos leva a viajar: o rio e o mar, os conventos e os
puteiros, as avenidas e vielas, o universo e o canto de um bairro, as casas
grandes e os pequenos palácios. Não há amarguras quando sabemos que ficamos
sozinhos em Lisboa, cercados de nódoas de amor juvenil por todos os lados...