Karl Marx afirmou que a religião era o ópio do povo. Parafraseava Hegel e Feuerbach. A religião era vista como uma anima que acalenta o espírito crítico e joga o homem na alienação. Em 1955, o filósofo francês Raymond Aron (1905-1983) escreve O Ópio dos Intelectuais no qual coloca a pecha alienante no marxismo e sentencia que "o marxismo é o ópio dos intelectuais". Ainda hoje a análise marxista seduz substancial parte da intelectualidade e pode-se afirmar que o marxismo é uma espécie de religião, cujo principal dogma é a convicção de que é possível construir um novo homem, não a partir de Deus, mas a partir de uma construção intelectual feita da ideologia.Ler a história é algo difícil. Percebê-la é tarefa árdua e algumas vezes impossível. Fazê-la pode parecer muito mais fácil.
O documentário Utopia e Tragédia, dirigido e produzido por Silvio Tendler é um caudaloso relato da história mundial e brasileira desde a última guerra mundial. Nele os conflitos humanos, políticos e militares são como digressões de uma narrativa, ao mesmo tempo cheia de esperança (e não propriamente utopia) e ideologia. Uma coisa é nítida: a tragédia humana está lá e, mesmo que a conheçamos muito, ainda é doloroso vê-la através da lente de um cineasta? os corpos dilacerados, decapitados e torturados.
Sílvio Tendler (1950- ) é o autor de alguns dos mais importantes documentários brasileiros, notadamente Os Anos JK e Jango. Em Utopia e Tragédia ele ilustra de forma mais evidente a sua própria personalidade de cineasta na medida em que faz o tempo correr em parâmetros bem pessoais: na velocidade que estabelece, na seleção particular dos fatos e, sobretudo, utilizando-se de uma interpretação de tais fatos com fortes temperos utópicos. Demorou 19 anos para concluir este documentário. Todavia, este ainda parece estar na sua fase primeva.
Para Tendler a utopia é o pano de fundo, conforme já escrevemos. Para quem assiste ao documentário a sensação é que toda aquela utopia não passa de uma esperança, de um devaneio ou, até mesmo, de um delírio. Se houve o holocausto dos judeus não é porque houve uma utopia nazista, mas um louco e assassino delírio que atendia aos anseios libertadores do povo germânico. Se duas bombas atômicas caíram sobre o Japão, não foi em função da utopia salvacionista de "milhares de vidas dos jovens americanos" (Truman), mas porque os EUA se firmavam como potência dominante, inclusive do ponto de vista militar. Bom, é possível que a primavera de Praga tenha engendrado utopias, mas é pouco provável que o famoso maio de 68 em Paris tenha ido além de um mal desenhado anarquismo estudantil.
Aqui, pelos lados da América Latina, a utopia da esquerda não era apenas limitada, mas assumida pela esquerda como uma fatalidade da história e não como processo de construção. A leitura de Marx ou do Livro Vermelho de Mao Tse Tung não engendrava utopias, mas maquinava idéias de como alçar vôo rumo ao poder que, uma vez assumido, legitimaria massacres como os de Stálin e Mao. Não tenhamos ilusões. Hoje, ainda podemos ver cá no Brasil que a esquerda é apenas uma caricatura ideológica que nada tem de utópica.
Obviamente, sabemos que os anti-utópicos acabaram vencendo a peleja, mas isto não se deu em detrimento de uma utopia que existia do lado de lá. Ao contrário, a ideologia socialista e comunista era de um realismo sanguinário. Sejamos sinceros, ora pois. Nixon, Pinochet, Medici, Vedela, etc. e outros comparsas foram ditadores competentes na tarefa de prender, torturar, matar e exilar. Nunca apregoaram uma utopia, em que pese a propaganda tão apreciada pelas elites. Prá Frente Brasil é slogan de qualidade criativa em meio a fatos históricos deploráveis. Nada mais, nada menos.
Assim sendo, falta a Tendler um espírito crítico mais refinado e disposto a rever os fatos e separar farsas e acontecimentos e, cuidadosamente, dissecá-los sem as vendas ideológicas que brilharam em seu documentário. Sobra elegância narrativa, falta visão crítica. Tudo soa como os sons da juventude: cheios de vigor e inconsciência. O espectador merecia mais depois de tanto tempo e tanta história. Tendler se comporta como um jovem: seduz, mas não explica. Este filme vale a pena ser assistido, mas se faz necessário que o espírito desperte depois de assisti-lo para não se cair na tentação de ficar no devaneio da história. Há algo de ópio no ar.
Por fim, utopia e tragédia não parecem lados de uma mesmo moeda da história. Vendo o filme, tudo se parece mais como um trem descarrilado, onde a locomotiva da história segue freneticamente em frente, enquanto os vagões da direita e da esquerda são arrastados. Certamente chegamos ao destino do futuro, mas não conseguimos entender o passado. A melhor representação desta imagem são os depoimentos de Apolônio de Carvalho e Dilma Rousseff: estão encantados com o seu próprio tempo, mas não conseguiram entendê-lo.
Marx e Aron ainda estão a debater sobre os efeitos do ópio, sobre a alienação do povo e dos intelectuais e o filme de Sílvio Tendler é uma evidência disto.
sábado, 22 de maio de 2010
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