segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Leituras Para O Crepúsculo de 2012

Vai-se mais um ano. De fato, foram poucos os comentários neste blog em 2012. Prometo que em 2013 serão mais numerosos e, quiçá, a maior frequência seja companhia agradável para mais inquietação. Afinal, a ideia central deste blog é a de trazer à tona alguns traços daquilo que perseguimos de melhor em nós mesmos a partir do mundo que nos defrontamos. Seja um livro, um filme, uma receita, uma arte ou uma conversa entre amigos que desejamos compartilhar. Padéia.
Neste sentido, recomendo aos amigos algumas leituras que me parecem interessantes e que reflorem a nossa mente num jogo solto de ironia, alegria, amor, juízos de valor, compaixão, reflexão e outras tantas cousas.
Para os que gostam de poesia, recomendo Primeira Poesia da coleção Biblioteca Borges da Companhia das Letras, bem como Outras Inquisições da mesma coleção. Nos poemas podemos encontrar toda a elegância de Jorge Luis Borges sem as modernas travessuras dos poetas ditos vanguardistas. O traço de Borges, em estilo inconfundível, conta-nos poeticamente a tão amada Buenos Aires, seja a do passado, seja aquela que permanece intocada pelo tempo. Em sua linguagem, Borges sabe passar da idealização mais mítica até uma pletora de fatos, dados e coleções bem factuais. Nesse alinhavado de poemas podemos nos deliciar ao sabor das letras como se estivéssemos a sorver um delicioso vinho em algum lugar de Palermo Viejo. Uma delícia.
Nos textos de Outras Inquisições encontramos, ao mesmo tempo, um rigor de ideias  a cada pequeno ensaio e, de outro lado, um vagar de reflexões despojadas de pretensões acadêmicas. Assim, podemos conhecer o que seria o "pensamento" de Borges sobre diversos temas. De Nathaniel Hawtthorne até Kafka, de Goethe a Schopenhauer. Logicamente, o livro não se caracteriza pela fluidez singela de um texto de Lya Luft, mas não é um texto denso de Petrarca. O livro no fundo nos rivaliza conosco: deveríamos saber mais para sermos mais felizes. Borges é um dos caminhos rumo a esta sabedoria e felicidade.
Outro livro sensacional que merece leitura é Paris: A Festa Continuou de Alan Riding (Companhia das Letras). Trata-se de uma inquietante investigação sobre o papel desempenhado pelos intelectuais, artistas e "formadores de opinião" franceses (ou que lá moravam) durante o período da ocupação da Alemanha nazista. É incrível descobrirmos como o vazio político pode levar os "legisladores" do pensamento a um caminho tão equivocado quanto o suporte ao regime nazista e ao governo colaboracionista do Marechal Philippe Petáin em Vichy. Esta é uma história que sempre ficou acobertada pelo orgulho (e vergonha?) dos franceses. Ademais, é possível transpor muitas daquelas realidades para os limites atuais da Europa em crise. O desemprego, a desesperança, a ausência de perspectivas podem levar sociedades inteiras na direção de soluções que aumentem as imperfeições das estruturas e conjunturas e, até mesmo, nos levem para abismos como foi o regime de Hitler. Riding (que viveu no Brasil) fez uma pesquisa volumosa que foi destrinchada alocando informações e análise de forma lógica e com uma linguagem elegante e simples. Bela leitura.
Ler é um ato egoísta e saboroso. Um prazer que podemos nos dar e que nos leva a melhor das solidões. Aquela que nos liga ao mundo sem que necessitemos dele participar. Boa leitura. 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Elles: Os Fantasmas Também Se Enganam

Na sua magnífica obra O Fantasma de Canterville de Oscar Wilde há uma passagem em que o fantasma se vê surpreendido com um cartaz nas mãos que narrava estas "horríveis palavras": " O Fantasma Otis, o único verdadeiro e original espantalho. Cuidado com as imitações, todos os outros são falsificados." Trata o evento de uma enganação, derrota, um acontecimento que leva a ludibriação . Até mesmo os fantasmas não escapam a este tipo de acontecimento.
O filme Elles (Alemanha/França/Polônia, dirigido por Malgorzata Szumowska, com Juliette Binoche, Anaïs Demoustier, Joanna Kulig, Louis-Do de Lencquesaing, Krystyna Janda,
Andrzej Chyra, Ali Marhyar) narra, no melhor estilo do cinema francês, a estória de uma jornalista de uma revista feminina empenhada em escrever um artigo sobre jovens universitárias que ganham a vida se prostituindo. Desta forma, a jornalista de meia idade acaba por interagir com as prostitutas, contando a suas experiências e, por detrás destas, acaba por descobrir os seus próprios e mais profundos sentimentos.
A tarefa da jornalista não lhe é neutra. Toda aquela realidade acaba por recair sobre a vida comum, ordinária e pouco transversal da jornalista. Não se pode ser imune à própria vida e, tal qual o Fantasma de Wilde, as falsificações não podem ser escondidas sob o tapete e as imitações podem ser evidentes, mas não obscurecem de todo a própria realidade.
A jornalista vê-se desnudada por completo. O que as universitárias fazem entre as quatro paredes nada mais é que a ilustração (ou imitação) da própria vida dela em distintos e assombrosos sentidos. Pouco importa que a narrativa trate das fantasias sexuais dos clientes, satisfeitas com perfeição pelas prostitutas. O roteiro é competentemente utilizado pela diretora do filme para se tornar uma especie de imitação da própria vida rotineira (e caseira) da jornalista. Não à toa, a fascinação com a história de cada uma, vai se tornando uma tortura crescente quando a jornalista reconhece a farsa de seu casamento, das relações familiares, das exigências da vida doméstica, das preocupações com os estudos do filho mais velho que insiste em transgredir e da absorção total do filho pequeno por um vídeo-jogo.
Notável no filme, o contínuo e crescente vazio que se vai despejando pela personagem de Binoche. Ao fim, a percepção, metafórica e real de que os clientes daquelas jovens estudantes, não passam dos homens comuns que rodeiam a vida dela e de sua família.
Tudo no filme parece ajustado para produzir a angústia da jornalista e, por conseguinte, daqueles que assistem as cenas. Tem-se de ter cuidado para não se verificar que muita coisa de nosso mundo é falsificado, assim como na cena do fantasma de Wilde.
Juliette Binoche dá outro show de interpretação. Sua beleza não é essencialmente plástica. É um conjunto que soma a própria artista e a sua obra que exercita com o corpo e com a alma. Um prêmio para os amantes do cinema. Da mesma forma, as jovens atrizes que cumprem o papel de prostituta conseguem engendrar cenas de sexo cheias de erotismo (pago e ambicionado pelos clientes) com a dureza e a doçura que brota de suas palavras.
A direção da jovem diretora Malgorzata Szumowska (39 anos) é impressionantemente segura. Ela faz jus a tradição do (excelente) cinema polonês, bem como consegue construir um ambiente tipicamente teatral dentro de uma perspectiva cinematográfica. Não é tarefa fácil transitar entre estes dois mundos da arte. Para Szumowska parece simples.
Eis um filme recomendado para quem deseja sair da zona de conforto. Curtir um filme e sair um pouco inquieto com os nossos fantasmas. Logo eles que também podem ser ludibriados como nos ensina Oscar Wilde.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Na Estrada Se Perdeu Um Filme

Jack Kerouac, John Clellon Holmes, Allen Ginsberg e alguns outros lançaram à prova e aos "consumidores de arte" o termo beat ou beatnik como forma de identificação e referência a uma geração pós-II Guerra Mundial que, inserida nas cidades, era excluída, marginalizada, tresloucada e viciada. Uma espécie de submundo do qual estes escritores extraíram inspiração para a produção de suas obras igualmente batizadas de beats. Creio que a principal virtude desta geração literária tenha sido a sintonia instintiva com o seu tempo e com os seus pares. Beberam direto na fonte. De outro lado, os seus leitores (e muitos que sequer pegaram em seus livros), criaram esterótipos muito além da própria qualidade ou virtude de cada escritor. Em função destes últimos , a geração beat pareceu-me exageradamente valorizada ao longo dos anos. Já nos anos 50 e 60, iniciava-se a "pasteurização" do pensamento e dos intelectuais: a força essencial das ideias era sublimada pela sua forma aparente. Uma camiseta beatnik era "bacana", mesmo que não se soubesse minimamente o que "significava" ou "expressava".
O filme Na Estrada (On The Road, EUA, 2012, dirigido por Walter Salles Jr., com Sam Riley, Garrett Hedlund, Kristen Stewart, Kirsten Dunst, Tom Sturridge, Viggo Mortensen, Amy Adams, Alice Braga, Steve Buscemi, Danny Morgan, roteiro de Diego Rivera) é a tentativa de resgatar para o cinema a principal obra homônima do beatnik Jack Kerouac. Os direitos do livro eram detidos há mais de vinte anos por Francis Ford Coppola, o notável produtor do filme e Salles Jr. resolveu filmá-lo há alguns anos e executou este projeto em outros tantos. Para isso montou um elenco que pudesse assumir o compromisso de longo prazo com as filmagens. Houve, portanto, um considerável esforço de produção para a consecução da tarefa. Neste ano, o filme foi badalado no Festival Internacional de Cinema de Cannes e recebeu algumas menções secundárias do júri.
O fato é que o filme não consegue minimamente converter a obra de Kerouac em ficção cinematográfica capaz de expressar a qualidade do livro. Nem mesmo, os esterótipos relacionados ao uso de drogas, aos excessos sexuais ou comportamentais, à música ou às personagens da "longa jornada na estrada" consegue se fixar nos olhos de quem assiste ao filme de Salles Jr. Ademais, um a um, os atores tem um desempenho muito ruim, sem dramaticidade, sem capacidade de tornar certas cenas comuns em algo "estranhamente artístico" o que sempre foi o objetivo de Kerouac. Sam Riley é visivelmente imaturo para um papel principal desta magnitude e não consegue desempenhar a personalidade complexa que Kerouac teceu ao (seu próprio) personagem. Kristen Stewart é apenas uma atriz bonita e sexy e não consegue ultrapassar esta fronteira, Kirsten Dunst parece conformada em seguir instruções do diretor e assim vai. O filme vai, logo nos primeiros minutos, se tornando enfadonho, sem maiores expectativas e do meio para frente, a torcida é grande para que tudo acabe logo. Nada de anti-materialista, espiritual, questionador, crítico ou reflexivo consegue ser extraído do filme. Apenas o que se vê é um amontoado de cenas que angustiam pela incapacidade de expressar e não por aquilo que expressam.
A direção é muito óbvia, com o jogo de câmeras sempre igual, especialmente ao longo da estrada. Uma eterna repetição. Aliás, lembra muito em alguns momentos "Os Diários da Motocicleta" do mesmo diretor sobre a trajetória de Ernesto Che Guevara na sua viagem pela América do Sul nos anos 50. 
Uma pena que este filme não tivesse atingido o seu objetivo de realimentar a memória de tão relevante obra da literatura moderna norte-ameircana. Perdeu-se uma excelente oportunidade de fazê-lo depois de tantos anos de o roteiro permanecer na gaveta. Perdeu-se e não foi na estrada. Foi na tela mesmo. 

terça-feira, 17 de julho de 2012

Um Novo e Grande Poeta: Fernando Dusi Rocha


Dentre os gêneros literários - a comédia, o drama, a tragédia, o romance, a novela, o conto - é a poesia aquela que encerra as maiores dificuldades para o autor e para o leitor. O poeta é essencialmente um criador em todos os aspectos deste gênero literário, restringindo-se não somente à forma do verso, mas ao caráter essencialmente subjetivo do texto e à sua elevação ficcional. Há um elenco de possibilidades que carrega o poeta cujas escolhas em verso traduzem um lirismo necessariamente irracionalista, mesmo que penetre à mente do leitor com poderes de produzir sensações mais diversas. Para o leitor, exige-se um grau de abstração resultante da ausência de um “estatuto próprio” deste gênero que possa situá-lo em termos de narrativa e forma. Tal qual a música, a poesia é recebida como uma espécie de sussurro ao pé de ouvido, uma confissão que não pode ser proferida em voz alta. Apenas mergulha na alma.
Nestes tempos em que a matéria domou o gênero humano, a poesia se acanhou enquanto preferência dentre os livros escolhidos nas prateleiras pelos leitores e com poucos editores capazes de redescobri-las em autores de qualidade no exercício da construção da qual nos falou Aristóteles na sua Poética. A poesia de qualidade brota com a flor de lótus por entre o imenso lamaçal de grande parte da literatura mundial e nacional. Parece um diagnóstico excessivamente duro, mas basta percorrer os corredores das livrarias para perceber esta realidade.
Há bênçãos, contudo. Fernando Dusi Rocha é destes poetas, escondidos em meio à vastidão do mundo e que é repouso para a alma do leitor e amante da poesia. Seu livro Crisol Com Açúcar (2011, Editora 7Letras) é simplesmente dotado de todas as virtudes para frequentar as boas prateleiras mentais e físicas, dos leitores e das livrarias. O poeta nasceu em 1961 em Ubá, a cidade carinho, terra de Ary Barroso, Antonio Olinto e Ascânio Lopes. Portanto, já tem raízes que deitam sobre a melhor terra da música e da literatura. É doutorando em literatura pela Universidade de Brasília, onde desenvolve pesquisa sobre o veio prosaístico das Cartas Régias do Padre Antônio Vieira. Seu primeiro livro, O exílio de Polifemo (2006), foi o 10º colocado na categoria Poesia do Prêmio Jabuti de 2007. É acadêmico voltado às letras, membro da Societè dês auteurs et poetes de la Francophonie, ensaísta e publicou artigos em diversos jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Como se vê uma bagagem e tanto.
Todavia, seria apenas um acadêmico com estufada reputação, não fosse poeta do qual “escorre o poema” e se excede. Crisol com Açúcar é um livro bem cuidado, caprichado, ressonante. O termo Crisol, conforme explicado logo na abertura do livro, era o nome atribuído aos anarquistas catalães que se notabilizaram em 1922/23 no combate contra a “guerra suja” patronal contra os trabalhadores de Barcelona. Note-se, portanto, que o poeta, talvez revestido pela mansidão e delicadeza mineira, logo tratou de adoçar os combatentes revolucionários: eis o açúcar.
O livro é um compêndio poeticamente organizado de 36 poemas “afetados” e 32 “glosados”. São impressionantemente representativos da melhor poesia: o leitor vai passeando, nas palavras de Tvzetan Todorov, “na literalidade como uma pura configuração fônica, gráfica e semântica e, por outro lado, um discurso representativo (´mimético´) que evoca um universo de experiência.” Tudo isso, marcado por um lirismo transeunte entre o humor (contido) e certo ar fatídico. Vejamos uns poucos versos selecionados do poema  Ora et Labora, estúpido!:

tremi ao saber que jamais seria um anjo: apenas percebo
a angeolologia em papéis de cabeceira. Esse devão nunca
me degradaria nem me arrastaria a terras sem nódoas.

Ou no poema que dá nome ao livro:

que a humanidade oferecia:um verniz da verdade.
Nada mais faiscava no meu lado: só o gozo
daquele nosso crisol derretido em rapadura.

É rara a presença de um poeta entre nós com tanta versatilidade, sem que o uso desta palavra ressoe algo ligado ao utilitarismo do mundo hodierno. Como “poeta moderno” e mineiro, as formas do autor não estão circunscritas aos rondós ou aos modelos clássicos, mas bem que poderiam estar, uma questão de mera preferência formal. A temática poética que é proposta por Dusi Rocha para se expandir na mente do leitor pode perfeitamente ser reimaginada e novamente os versos são passíveis de serem reconstruídos para que a ideia possa ser completamente abarcada. É difícil, como já disse acima, esta tarefa poética. Não à toa, a sua escolha por formas mais fixas recai sobre os sonetos, a mais fecunda criação poética de vez que “vale mais que um longo poema” (Boileau) quando bem construído. A heterogeneidade da linguagem, as suas fábulas narrativas e as coletâneas de ideias são realmente merecedoras de leitura cuidadosa daqueles que tem a capacidade especial da abstração e do “entendimento” poético da apresentação/representação proposta pelo autor.
Crisol com Açúcar é um presente à poesia brasileira. Fernando Dusi Rocha, poeta mineiro de Ubá, precisa ser conhecido do público brasileiro e dos editores. È justo que os encontros literários voltem ao passado para comemorar os anos de nossos maiores escritores e poetas. Todavia, por tantas vezes, temos a chance de inaugurar o futuro e continuamos a cultivar apenas o passado. E apenas isso. Dusi Rocha está aí para, quem sabe com tantos outros poetas, inaugurar uma nova jornada com açúcar da poesia brasileira. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Gracias a Violeta Parra

Violeta Parra (1917-1967) pertence a um rol de artistas que se projetou diretamente de suas raízes para o mundo. Sem intermediários e influências laterais conseguiu ao longo de sua  carreira, iniciada aos nove anos, projetar uma musicalidade genuína e marcante nascida das montanhas chilenas diretamente para o mundo. Muito embora seu traçado artístico tenha sido aproveitado (e com a sua aquiescência) ideologicamente pela esquerda latino-americana pode-se afirmar que sua arte integra-se muito mais ao universo folclórico que ao tecido do pensamento da esquerda de língua espanhola da América. A isso também pode-se dizer de suas outras facetas artísticas menos conhecidas: as pinturas e o artesanato.


Interessante que apesar de sua vida estar fincada num período de extraordinária transformação política e econômica do Chile e da América Latina, a força de seus versos cantados está na intensa expressão artística das classes que ficaram permanentemente à margem destes processos. São os campesinos, mineiros, pequenos agricultores e os marginais do processo subcapitalista os inspiradores e os destinatários da obra de Parra. Todavia, esta obra ultrapassou as fronteiras chilenas e ganhou as mentes dos ideólogos e dos artistas mundo afora. Sua personalidade forte somada a uma imagem marcante e destoante da elite branca não impediu que a burguesia nativa se apropriasse de algumas de suas visões nacionalistas e raízes mais profundas do povo chileno. Além das músicas recheadas de conteúdo de protesto, há um lirismo penetrante em sua música, sendo a mais famosa Gracias a La Vida cantada por muitos intérpretes, dentre os quais a argentina Mercedes Sosa (1935-2009) e a brasileira Elis Regina (1945-1982).


Gracias a la vida, que me ha dado tantoMe dió dos luceros que cuando los abroPerfecto distingo lo negro del blancoY en alto cielo su fondo estrelladoY en las multitudes el hombre que yo amo

O recém-lançado filme Violeta Foi Para o Céu (2011, Chile/Brasil/Argentina, direção de Andrés Wood, com Francisca Gavillán, Tomas Durand e Christian Quevedo e roteiro de Eliseu Altunaga) recorda com certa veia poética a trajetória da cantora chilena. O mais impressionante do filme é a interpretação segura de Francisca Gavillán (atriz principal do filme Machuca de 2004). A semelhança física com Parra  é impressionante (a foto colorida é da atriz e a em preto e branco é da cantora) e a interpretação é firme e consistente, coisa difícil em personagens tão marcados e marcantes. O filme ganhou Prêmio do Grande Júri do Festival de Sundance, uma das razões para a ampla distribuição nos cinemas das principais cidades brasileiras. Violeta tem todos os ingredientes para agradar os públicos mais intelectualizados dos países do hemisfério norte. A composição de uma excêntrica musicalidade com os contrastes sociais que as letras de Parra projetam tem tudo para seduzir os públicos mais distantes da realidade deste canto do mundo. Para os brasileiros há algo de melancólico em ver a personagem e escutar as suas músicas. Afinal, tudo soa como se estivéssemos nos perdidos anos 60. De outro lado, é um aprendizado para os que não conhecem Parra. Neste particular, o roteiro deixa rastros de sua personalidade, mas falta para os que nada sabem da história de Violeta uma contextualização que permita que o espectador se situe temporalmente perante a personagem e a sociedade em que estava inserida.
Por estes tempos em que a antiga esquerda latino-americana perdeu suas referências políticas e artísticas é um deleite assistir a este filme e resgatar um pouquinho aqueles tempos nos quais algumas almas ainda se condoíam com os mais pobres, os marginalizados e os sofridos. A música era folclórica e a realidade dura. Hoje, as coisas parecem estar invertidas.    

quarta-feira, 2 de maio de 2012

A Beleza do Kilimajaro

É possível extrair vários fragmentos fantásticos de grandes obras e, a partir destes, construir outras derivações artísticas que nos remetem a outras tantas ideias e reflexões. Foi da inspiração do poema de Victor Hugo (1802-1885) Pobres que nasceu o argumento do filme francês As Neves de Kilimanjaro (França, 2011, dirigido por Robert Guédiguian, com Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilye Canto, Grégoire Leprince-Ringuet).
Trata-se de uma obra que remete com significativa carga dramática à crise atual do Velho Continente.
Michel é um líder sindical que é demitido de uma empresa portuária em Marselha. Seu nome foi sorteado juntamente com outros vinte para fazer parte de um programa de demissão. Ele não precisava se autoincluir dentre os possíveis sorteados, mas o fez por pura generosidade e fidelidade aos seus ideais político-sindicais. Uma vez demitido, vê-se solitário e diante da perspectiva da aposentadoria e da melancolia que começa a se desenrolar pelo início da velhice. Sua esposa Marie-Claire é depositária não somente de um profundo e duradouro amor, mas é a coluna vertebral de seu cotidiano, marcado pelos costumes proletários da França hodierna.
Na comemoração das bodas de prata do casal seus amigos lhes presenteiam com uma viagem para a Tanzânia, onde visitarão o Kilimanjaro, cujas neves foram celebrizadas no filme homônimo a este de 1952, com Gregory Peck, Susan Hayward e a estonteante Ava Gardner. A semelhança com o filme norte-americano pára na sua simples menção. Depois da festa, o casal e seus melhores amigos são roubados e, assim, perdem as passagens e o dinheiro arrecadado para a viagem. Inusitadamente, Michel descobre quem são os assaltantes. Um dos presos é um jovem igualmente desempregado que sustenta outros dois irmãos menores e abandonados pela mãe. Tanto Michel quanto Marie-Claire se envolvem emocionalmente com a dramática situação cujo desfecho é lapidado por uma sensibilidade imensa.
Desde a Revolução Francesa (1789), o ocidente é marcado por diversos tipos de burguesia. Não importa qual seja a sua tipologia, os marcos desta estão entranhados na sociedade: o regime da propriedade, a ordem econômica (em tese) competitiva e a ideologia do consumo e do individualismo. Tudo isto revestido por uma democracia representativa que varia os partidos, mas não radicaliza o modus vivendi burguês. Pois bem: o filme não propaga ideologias políticas, no sentido clássico da palavra. Nada revela sobre a dominação burguesa, ou mesmo, as hemorragias do desemprego e da desesperança. De forma elegante e bem construída, o roteiro e sua excelente execução trata da abnegação, da solidariedade, do amor genuíno pelo próximo e pela sensibilidade que nasce do coração na direção do outro. Esta ideia de alteridade não é diluída por uma estória fácil ou "água com açúcar" . Ao contrário, nasce das dificuldades de uma família proletária que vive um de seus piores momentos. A burguesia e suas opressões e o sindicato combatente ao qual pertence Michel estão presentes, mas preferem o anonimado quando se trata das escolhas pessoais que os personagens principais vão fazendo ao longo do filme.
No contexto real de uma Europa que sofre as agruras do desemprego e da desesperança, o filme não escolhe a realidade como ponto de reflexão e de inflexão de direção. Prefere a imagem e a ação do homem na direção de sua tarefa para com o próximo. Uma bela e, de certa forma, incompreensível imagem à luz do cientificismo social e político que costuma se engrandecer nos momentos difíceis das sociedades. Michel e Marie-Claire não escolheram os trágicos fatos com os quais se defrontam, mas, uma vez estes presentes, são capazes de dizer para si mesmos e para os outros que a vida não é feita para a ordem do mundo, mas para que sejamos mais do que indivíduos que estão de olho nas próprias preferências. É preciso não negar a dor, mas para curá-la o primeiro passo cabe ao próprio"homem de barro com um sopro de espírito".
Do ponto de vista "técnico", a direção é competente e não há nenhum apego às manobras da câmera ou às tomadas diferenciadas das cenas. Trata-se de um filme bastante tradicional neste estrito sentido. O grande destaque artístico cabe à atuação segura e muito bem ambientada de todo o elenco. A atriz Ariane Ascaride (Marie-Claire) se destaca por uma representação precisa de uma mulher proletária moderna. Claramente, a atriz explorou o que de melhor a personagem lhe fornece e, desta forma, conquista o público e o restante do elenco.
Eis um belo filme para pensar e sairmos mais determinados a enobrecer a nossa própria humanidade. 

terça-feira, 3 de abril de 2012

Robert Doisneau: O Fotógrafo Está No Rio


Robert Doisneau (1912-1994) foi um dos maiores fotógrafos do século passado e com , Cartier-Bresson, Eugène Atget e André Kertész, suas maiores influências, retratou o cotidiano marcado pelas guerras, o gigantesco desenvolvimento econômico e a multiplicação das manifestações artísticas, especialmente na Europa. Deste ambiente de profundas transformações políticas e sociais Robert Doisneau soube captar vínculos especiais entre as cidades e os campos, entre os pequenos-burgueses e os trabalhadores, crianças e velhos, donas de casa e mulheres que ganhavam crescente participação na vida ocidental. 
Assim como Cartier-Bresson, Doisneau foi um artista que se aproveitou da luz e das sombras com exemplar maestria. Muito embora suas fotos pareçam (e provavelmente sejam) "mais posadas" que a de Cartier-Bresson, a estética de ambos não merece reparos, muito embora Doisneau seja menos "comemorado" que seu colega francês. (A propósito, no próximo 14 de abril comemora-se os 100 anos de seu nascimento).
A exposição de 152 fotografias do mestre francês no Centro Cultural Justiça Federal no Rio de Janeiro é um acontecimento perfeito para que o público, leigo ou não, possa interagir com a arte deste maravilhoso retratista do século passado. A curadoria da exposição (a cargo de Agnès de Gouvion Saint-Cyr) conseguiu enquadrar, com oportunidade e talento, a visão, ao mesmo tempo, oportuna e romântica de Doisneau. Não é tarefa fácil como alguns poderiam simplificar.
Doisneau traduz por meio de registros cotidianos e, com evidente viés jornalístico, uma série de fronteiras que podem ser apreciadas em função da excelente organização da mostra do francês. Estas fronteiras saem da banal vivência dos transeuntes, dos pequenos agricultores, das moradias populares para a convivência entre o natural e o extraordinário, o excêntrico e o comum. Ademais, não é fácil fugir da obviedade de suas mais famosas fotos, estas quase todas aproveitadas pela cultura pop pós-II Guerra Mundial. A mais famosa Le baiser de l'hôtel de ville (O Beijo no Hotel de Ville) per se é uma marca registrada e fiel de sua obra, mesmo que tenha sido exageradamente "aproveitada" para fins de consumo de massa. Permito-me expor abaixo uma das minhas prediletas e que espelham com fidelidade o senso de oportunidade, humor, luz e poesia do fotógrafo francês.


É notório perceber que ao longo da exposição não há uma fotografia sequer que sugira ou induza o apreciador de sua obra a um pensamento elaborado, a uma ideologia delimitada ou a um modelo "bizarro" ou "contestador" de arte. O que se vê são fotografias marcadas por temas (crianças, jovens, Paris, os mercados e assim vai) que ressaltam uma profunda humanidade, simples e complexa, sem a necessidade de que o artista se envolva demais com o seu objeto a ponto de pretender transformá-lo na mente de quem vê a foto. Disto decorre a lindeza da exposição. Um detalhe importante: a iluminação da exposição do Rio sabe aproveitar e valorizar no limite a qualidade da obra deste fotógrafo que deixará suas marcas por muito tempo entre os amantes da fotografia. Vale visitar o Centro Cultural Justiça Federal no Rio. 
Por fim, gostaria de deixar aos amigos deste blog um poema de outro fotógrafo francês famoso, amigo de Robert Doisneau: Jacques Prévert. Este poema juntamente com um belo café após a exposição carioca refresca a alma e faz a vida mais bela. Ainda mais para aqueles que acreditam no amor. É isso mesmo, o amor. De novo.

Café da Manhã

Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu

debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.


  

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A Poética de "A Dançarina e o Ladrão"

A América Latina é um canto do mundo recheado de surpresas e esperanças, tantas vezes marcadas pela sina da miséria, corrupção e sofrimento eivadas pela desesperança. Historicamente, as terras ocidentais e abaixo do Equador, mostraram-se irrelevantes em muitos aspectos, mas, de vez em quando, se enchem de leveza, pureza e dão exemplos ao mundo.
A Argentina, melancólica terra que canta o seu passado (não tão) glorioso, tem feito no cinema uma obra magistral, fluida em frescor e competência técnica e dramática. De sua posição geopolítica irrelevante tem sido o cinema um sinal de modernidade e renovação para a arte deste apêndice do globo. Isso, nestes tempos recentes, pela atuação espetacular de Ricardo Darín, o melhor ator de língua espanhola da atualidade. O melhor dentre os melhores da atualidade.
É o que se vê no filme A Dançarina e o Ladrão (El Baile de La Victoria, Espanha, 2009, dirigido por Fernando Trueba, com Ricardo Darín, Abel Ayala, Miranda Bodenhofer, Ariadna Gil , Julio Jung, Mario Guerra, Marcia Haydée, Luis Dubó, Luis Gnecco, Mariana Loyola). Baseado no romance do chileno Antonio Skármeta (1940-      ), é roteirizado pelo diretor Fernando Trueba e pelo próprio Skármeta, este filme foi indicado, sem sucesso, pela Espanha para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Pena que demorou certo tempo para percorrer as salas de cinema do Brasil.
Trata-se da estória de uma ladrão de cofres, Nícolas Vergara Grey (Darín), anistiado do cumprimento de parte de sua pena por um crime comum, no exato momento em que a democracia chilena tentava jogar luzes sobre o período ditatorial de Augusto Pinochet. O ditador acabava de chegar de sua estadia forçada na Inglaterra (2000), quando foi mantido em prisão domiciliar pela tentativa da justiça da Espanha em lhe aplicar sanções criminais em função do assassinato de cidadãos daquele país durante o regime ditatorial chileno. Neste contexto, Vergara Grey é libertado e tenta reencontrar sua esposa e filho. Sua busca resulta na descoberta de que estes moravam com o "novo" marido de sua amada. Em meio a esta decepção amorosa, carcomido pela angústia de seus espetaculares feitos de ladrão de cofres, Vergara Grey encontra casualmente Ángel Santiago (Ayala), também um ladrão anistiado, mas sem a fama de Grey. Santiago, em seu primeiro dia liberto, encontra uma dançarina pobre e desamparada, órfã de ativistas políticos assassinatos no período ditatorial, por quem se apaixona e passa a conviver. Nasce assim um amor puro cheio de descobertas e senões existenciais.
Do inusitado encontro dos dois ladrões, nasce a ansiedade e insistência de Santiago em atrair Vergara Grey para a realização de um roubo cinematográfico. A recusa de Vergara Grey em realizar um novo crime se afasta quando comovido pelo amor poético e sofrido de Ángel e Victoria, esta uma dançarina talentosa perdida em meio às ruas da capital do Chile.  
É precioso neste filme, a mistura de beleza poética do relacionamento entre os personagens e, ao mesmo tempo, a rudeza da realidade de cada um deles e de sua convivência meio forçada e meio desejada. A certa altura do filme se somam elementos factuais e uma doce fantasia. A percepção do que é metafórico e real se afasta e o espectador cai na cilada da estória. Em meio à emoção, se espera o desenrolar dos fatos e ao andamento dos acontecimentos cede-se à aceitação da mensagem poética. O encadeamento das cenas tem um força dramática especial, não importando os resultados que se constatam dos fatos, mas a sua construção. Nem mesmo a realização do roubo dos dólares de um ex-general ligado a Pinochet chega a se descolar deste cenário, digamos, cheio de lirismo. Não à toa, o roteiro pode atrair para si a beleza dos versos de Gabriela Mistral (1889-1957), escritora chilena ganhadora do Prêmio Nobel de 1945:


"Sentirás que a teu lado cavam briosamente,
que outra dormida chega a quieta cidade
Esperarei que me hajam coberto totalmente…
e depois falaremos por uma eternidade!" 


Reconhecemos neste filme muitos de nossas esperanças e sonhos. Neste sentido, a competência do diretor espanhol Fernando Trueba (ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro por Belle Époque em 1993) possibilita que todas as simbioses, sejam poéticas, artísticas ou dramáticas, possam ser levadas ao público com imenso e raro bom gosto. (Não seria difícil que o filme caísse na pieguice). A verdade é que, esgotado o tempo em que estamos embebidos pela estória, acabamos por perceber que nos faltam filmes como este, cheio de renovação, mistério, poesia e amor. Tudo isso, carregado de elegância, competência visual, uma musicalidade além da própria (e boa) trilha musical, posicionamentos de câmeras bem pensados e uma teatralidade que condiz com plenitude com aquilo que Skármeta quis passar em seu romance.
A safra de filmes de Hollywood não tem sido generosa. Em certo sentido a vulgaridade da festa do Oscar lhe faz boa companhia.
Em, A Dançarina e o Ladrão, podemos nos sentir recompensados pela insistência em amar o cinema. Podemos sair leves e cheios de esperança da sala do cinema. E, se ainda tivermos vontade, podemos recitar versos, quem sabe os da própria Mistral, na certeza de que a poesia vive em meio à miséria do mundo. 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Mussolini de Pierre Milza

Em tempo de internet, "nuvens", twitter, facebook e outras "ferramentas intergalácticas" ainda é um imenso prazer percorrer as ruas das grandes cidades europeias e verificar que as "jurássicas" livrarias ainda tem muitos apreciadores. As prateleiras estão lotadas de livros fantásticos, bem como de verdadeiro lixo cultural. Umberto Eco, o grande intelectual italiano, em artigo recente no Corriere della Siera observou com grande propriedade que "a internet é um perigo para quem não tem conhecimento e uma ferramenta extremamente útil para quem o tem." De fato nunca se produziu tanta informação e relativamente tão pouco conhecimento.
O livro Mussolini (487 páginas) escrito por Pierre Milza e traduzido para o português pelo General Gleuber Vieira e pela tradutora Alessandra Bonrruquer e publicado pela Nova Fronteira em 2011 é um livro espetacular. Trata-se de uma biografia política do ditador italiano e que traz luzes fundamentais sobre a formação do Estado Fascista a partir dos anos 20 até a sua completa derrocada em 1945. Neste livro sobra conhecimento, somado a uma gama extraordinária de informações. Exatamente como imagina Eco ser o ideal no mundo de hoje.
O fascismo foi um fenômeno bastante diverso do Nazismo alemão, apesar de suas semelhanças fundamentais (ditadura, centralização do poder e associação com a burguesia nacional) terem contribuído para que o senso comum os igualasse milimetricamente. Este livro de Milza tem o mérito de analisar detidamente a construção do fascismo na Itália e, desta forma, diferenciá-lo do que aconteceu na Alemanha, sobretudo após a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933. Note-se que quando o Hitler ascendeu ao poder, Mussolini já estava liderando a Itália há dez anos. Aliás Hitler o admirava muito em função de sua liderança.
Pierra Milza, além de ter investigado política e sociologicamente a formação, ascensão, consolidação e derrocada do fascismo por meio de uma vasta literatura acadêmica que está relacionada ao final do livro, teve acesso a todo o arquivo particular do ditador italiano (Segreteria particulare del Duce). Desta forma, o personagem político apresentado se completa com feições pessoais que alicerçam a visão sobre o ser e o animal político complexo que Mussolini era.
O mais interessante do livro a meu ver é a descrição da opção de Mussolini entre a Alemanha nazista e os aliados (inicialmente comandados exclusivamente pela Inglaterra de Churchill) quando da Segunda Guerra Mundial. O livro deixa evidente que esta não foi uma opção óbvia como as aparências podem nos levar a crer. Ao contrário, Mussolini tinha uma visão geopolítica bem elaborada no papel, mas impossível do ponto de vista da sustentação militar - as forças armadas italianas não estavam à altura do projeto do ditador. Neste contexto, o Duce tentou de muitas formas negociar as suas ambições de ser o "Rei do Mediterrâneo", seja com Hitler, seja com os aliados. Ademais, contava com sincera simpatia de Churchill e de Roosevelt, que o consideravam uma espécie de pacificador político e social, uma terceira via, em meio aos conflitos entre as velhas idéias do liberalismo dos séculos anteriores e o bolchevismo que se espalhava pelo Velho Continente. Outro aspecto interessante é que Mussolini desconfiava por demasiado das teoria raciais de Hitler e temia que os italianos fossem considerados "raça inferior" pelos nazistas "arianos". Não bastasse esta desconfiança, uma de suas três principais amantes (elas foram muitas), Margherita Sarfatti, era judia e foi a única delas capaz de influenciá-lo de forma mais decisiva. Nada mais paradoxal.
Se o Mussolini real foi uma figura do qual poucos tem saudade (felizmente), o Mussolini que surge do livro de Milza é fascinante e inquietador. Entender a Itália de então é jorrar informações e conhecimento sobre a formação do Estado Italiano Moderno. Neste sentido, a "descontinuidade" do fascismo proporcionada pela II Guerra Mundial não retirou da história os efeitos dramáticos que o fascismo trouxe para as sociedades europeias, em geral, e italiana em particular. Além disso, as lições políticas construídas há 90 anos (quando Mussolini assumiu o poder) me parecem suficientemente relevantes para estes tempos em que a Europa insiste em colocar em perspectiva muitos dos fatores que permitiram os nefastos efeitos do fascismo sobre a democracia, a liberdade e a justiça. Leiam Mussolini de Pierre Milza.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

The Artist é Lição Generosa Para um Mundo em Crise

Indicações aos prêmios de cinema nem sempre são referências eficazes para guiar aqueles que gostam de cinema e pretendem escolher um bom filme. Assim como ocorre no caso dos críticos, há uma infinidade de aspectos subjetivos e objetivos que criam barreiras ao discernimento dos leitores no que tange a escolha para assistir aos filmes abençoados e bem conceituados pelos críticos. Ademais, há o número de estrelas e os rankings dos jornais e sites que emboloram a mente do desejoso de um bom filme. De toda a forma, há inteira justiça na indicação do filme The Artist (França, 2011, dirigido por Michel Hazanavicius, com Jean Dujardin, Bérénice Bejo e John Goodman) para o Oscar e para o Globo de Ouro, os dois prêmios mais importantes do cinema norte-americano.
Trata-se de um filme mudo, em preto em branco e com um roteiro, digamos, "bastante tradicional" que faz, por meio de seus personagens, o retrato da transposição do cinema mudo em falado, no final dos anos 1920 e início dos 30 nos EUA e no mundo. Além da superação tecnológica e formal do cinema sem fala para o falado, esta transformação alterou completamente a construção cinematográfica no que se refere à dramaticidade dos personagens e ao comportamento cênico e expressividade corporal dos artistas. Não à toa, Charles Chaplin foi um dos maiores críticos e partizan ativo contra o cinema falado. Enfim, cedeu sem que isso não o permitisse dar umas boas bordoadas no cinema falado.  Para o gênio do cinema mudo, esta transformação minimizava a expressividade dos sentimentos perante a câmera e distorcia a caracterização dos personagens. Já Buster Keaton, rival de Chaplin no cinema mudo, se valia das gags recheadas de saltos, movimentos acrobáticos e uma série de expressões corporais para gravitar os personagens em torno da estória silenciosa. A compassividade de Keaton se confrontava com a expressão facial e a extremada saliência dramática de Chaplin. Um belo confronto, sem dúvida e relativamente esquecido na história do cinema.
The Artist não faz alterações bruscas do ponto de vista daquela forma dos anos 20 e 30. Muito embora os dois artistas principais do filme não sejam Chaplin e Keaton, ambos se desincubem da missão artística com grande talento e beleza estética. Jean Dujardin (cujo personagem chama-se George Valentin) consegue somar o brilho de duas lembranças fantásticas do cinema, Gene Kelly (com o qual se parece bastante) e o estilo fanfarrão dO Gordo e o Magro. O francês faz uma verdadeira "estréia" internacional em grande estilo. O mesmo vale para a mimosa Berenice Bejo que reúne raro talento para expressar Peppy Miller, a personagem bondosa e, ao mesmo tempo, vívida da atriz do cinema falado (Dujardin faz o artista mudo).
Na Europa o filme foi extremamente bem recebido,sem que as falas em inglês possam se constituir em uma barreira significativa para a aceitação de um filme como ocorre na França e na Itália (onde os filmes todos são dublados e não legendados). Interessante notar que, diante da crise atual no Velho Continente, o roteiro exala uma série de mensagens significativas aos europeus. Não vou contar nada do roteiro para não atrapalhar o gosto cinéfilo dos leitores mas posso antecipar que da estória há lições muita humanas. Mesmo em meio a enormes transformações tecnológicas, crises pessoais e interesses econômicos é possível projetar aos seres humanos doçura, solidariedade e amor. Entre os dois personagens do filme haveria um enorme espaço para as intrigas e as vaidades. Todavia, a personagem de Bejo (Peppy Miller) resolve tudo por meio da generosidade e do amor para quem seria o seu rival se seguisse a vontade imperial do produtor do filme (personagem de John Goodman). Estas lições caem como uma luva para uma Europa atual cheia de desempregados e solitários vaguejantes nas ruas das cidades e das capitais. O amor vence sempre, desde que assim desejemos. É essa a respiração natural e cheia de emoção deste fantástico filme que deve chegar ao Brasil ao longo deste ano. A aceitação do público e os prometidos prêmios demonstram igual generosidade que o filme condensa, ilustra e encanta. O público agradece e este filme merece.