A Páscoa é a mais importante festa do cristianismo. De fato, não haveria a maior religião ocidental não tivesse Cristo ressuscitado de sua tumba, luminoso e glorificado. A Ressurreição forma a identidade do homem que nunca morre em espírito. É eterno como Deus.
Para o judaísmo é o símbolo da liberdade da escravidão do Egito, o início da caminhada em direção à Terra Santa. Não existindo liberdade, não há o homem que sob Deus descobre a vida e a alegria.
Para os que crêem este é o significado da Páscoa. Para os descrentes não razão para não comemorar a vida e a alegria de viver. Para estes, a Páscoa persiste como centro da reflexão sobre a nossa vivência entre os nossos próximos e iguais. Para todos é a festa da família que se reúne para erguer os brindes em louvor à vida.
Para comemorar a Páscoa, selecionei da Sicília uma tradicional receita de doce. Naquela ilha ao Sul da Itália, a santidade da vida se mistura com a sedução dos festejos. Tudo em torno da boa mesa. Muitos santos são comemorados (São Martinho, Santa Lúcia e São José são os mais importantes), além das festas mais marcantes do calendário cristão, onde a Páscoa e o Natal pontificam. A sedução do açúcar se mistura com as conversas das famílias tagarelas. Os sabores dos pratos recai sobre a consciente percepção de que a vida vale a pena e a alegria não é apenas uma virtude: é uma espécie de destino que tem de ser cultivado diariamente.
Vamos à receita do Cannoli. Nossa receita é para 15 pessoas, afinal na Páscoa a casa está sempre cheia.
Prepare inicialmente a massa. Bata a manteiga (25g-35g) e o açúcar (25g) até fazer espuma. Logo depois misture um ovo grande, quatro colheres de vinho branco seco, açúcar baunilhado (duas colheres de sopa) e uma pitada de sal. Tudo com carinho. Depois despeje 150g de farinha de trigo e bata até que fique elástica e bem lisinha. Reserve um lugar fresco e deixe-a descansar coberta por duas horas. Depois deste justo período, estenda a massa com uns 2 milímetros de espessura e recorte-a em quadrados de 12 a 15 centímetros de largura. Posicionando estes quadrados na posição de losangos, role-os com um rolo de metal (2cm de diâmetro e 15 de comprimento) e forme tubos, fechando-os com ovo batido (eis o selo do confeiteiro!). Não retire os tubos nesta fase. (Os tubos podem ser também de bambu).
Siga para o fogão. Pegue uma panela grande , aqueça óleo vegetal (na quantidade que possa cobrir os cannoli). Depois que o óleo estiver fervendo, mergulhe de três a quatro cannoli por cerca de 1 e 1/2 minuto a 2 minutos. Depois de fritos, deixe-os secar no papel absorvente e depois de estarem totalmente frios, retire os tubos cuidadosamente.
Agora chegou a vez do recheio. Mexa vigorosamente a ricota (500g) com um garfo. Em seguida despeje açúcar (100g), uma colher de sopa de açúcar baunilhado e a água de folha de laranjeira (2 colheres de sopa). Mexa e mexa até que a ricota fique com uma consistência cremosa. Depois, coloque casca de limão e laranja cristalizadas e bem picadas (50g no total) e de 90g a 100g de chocolate amargo em pedaços mínimos (quebre a barra com as próprias mãos). Misture tudo até que pareçam bem distribuídos. Não perca tempo. Recheie os cannoli com esta massa de recheio e polvilhe com açúcar em pó. Sirva frio, mas nunca, jamais, coloque esta especialidade siciliana na geladeira. Seria um pecado mortal em plena Páscoa.
Para servir, coloque os cannoli no centro da mesa, certo tempo depois do final da refeição principal. Deixe que cada um se sirva. De preferência coma os cannoli com a presença de um belíssimo Moscato di Pantelleria. Este vinho de sobremesa licoroso recheia a vida juntamente com os recheados cannoli. Feliz Páscoa. Viva a Vida!
quarta-feira, 31 de março de 2010
terça-feira, 30 de março de 2010
"Ilha do Medo", Um Abuso de Forma de Martin Scorcese
Pode-se destacar muitas qualidades em relação ao diretor Martin Scorcese e por aí há uma imensa lista de críticas dispensadas ao mestre do cinema norte-americano. Eu destacaria duas entre todas as possíveis: o domínio absoluto do planejamento, da execução e da finalização das cenas e a simbiose entre Scorcese, os atores e os personagens.
Pois bem: em Ilha do Medo (Shutter Island, 2010, dirigido por Martin Scorcese, com Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydow), Scorcese evidencia com ênfase estes dois talentos com grande maestria. Chega a ser impressionante como é vibrante o andar (ou os sobressaltos) da câmera do grande diretor. Ao mesmo tempo em que tudo parece perfeito, àquele que está a assistir o filme sobram inúmeros detalhes em cada cena que demonstram inequivocamente a destreza e o esmero dispensado pelo diretor. É ele o grande artista mesmo que fora de cena.
Leonardo DiCaprio é o agente Teddy Daniels, um policial federal que é enviado juntamente com um parceiro novato para a ilha Shutter onde há um manicômio onde pacientes psiquiátricos são tratados na expectativa de que sejam curados pelos métodos inovadores de então - a estória se passa em 1954. Daniels vai à ilha investigar o desaparecimento de uma paciente e se defronta com situações que não apenas contradizem a sua autoridade policial como também o envolve em situações que o levam a se defrontar com a própria loucura. Se em Huis Clos, Sartre é categórico ("o inferno são os outros"), na Ilha do Medo o inferno pode estar tão próximo quanto na própria alma. Daniels vê-se cercado por todos os lados e não apenas por estar numa ilha. Até mesmo o terrível Senador Joseph McCarthy que liderou o Comitê de Atividades Antiamericanas é ressuscitado na ardente metáfora de Scorcese. O cenário é completamente ajustado aos tormentos de Daniels: as sombras e nuvens do filme dão-lhe um ar realmente perfeito para as perigosas introspecções humanas.
Todos os atores apresentam-se com brilho, na medida exata do que lhes é proposto. Interessante de se ver é o amadurecimento cada vez maior de DiCaprio que apesar de manter o seu rosto juvenil conseguiu fugir dos estigmas de ator de "um papel apenas". Ben Kingsley e Max Von Sydow não surpreendem, mas não precisam mesmo fazê-lo. Ao contrário, dá até para ficar esperando os trejeitos de cada um deles diante das lentes.
O filme é baseado no livro de Dennis Lehane que também escreveu Sobre Meninos e Lobos que tornou-se filme sob a batuta de Clint Eastwood. E é no roteiro adaptado por Laeta Kalogridis que residem os maiores (e não tão pequenos) tropeços do filme. Este não consegue acompanhar o ritmo cênico de Scorcese. Ao contrário: o filme acaba dominado completamente pelo desenvolvimento das cenas e o "mistério" do filme acaba sendo revelado (ou escondido) sem que haja a tensão necessária para que o espectador se envolva com a estória. Ou seja, a câmera está a serviço do diretor, mas o roteiro parece não lhe servir para enquadrar o próprio (e belo) projeto das cenas. Até mesmo a música consegue esconder o roteiro. Quem assiste ao filme fica como que procurando o "mistério", mas este não lhe é nunca mostrado pela simples razão de que este não existe, mesmo que de fato acabe sendo revelado. Assim, o todo belo do filme vê-se reduzido pela pouca fricção dos diálogos com as cenas. Este ponto fraco do filme não o condena, mas tira-lhe o atributo de "mais um filmão de Scorcese". Há um "abuso de forma da cena em relação ao roteiro". Apesar de tudo sentar na cadeira e ver Scorcese é um prêmio dos deuses.
Pois bem: em Ilha do Medo (Shutter Island, 2010, dirigido por Martin Scorcese, com Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydow), Scorcese evidencia com ênfase estes dois talentos com grande maestria. Chega a ser impressionante como é vibrante o andar (ou os sobressaltos) da câmera do grande diretor. Ao mesmo tempo em que tudo parece perfeito, àquele que está a assistir o filme sobram inúmeros detalhes em cada cena que demonstram inequivocamente a destreza e o esmero dispensado pelo diretor. É ele o grande artista mesmo que fora de cena.
Leonardo DiCaprio é o agente Teddy Daniels, um policial federal que é enviado juntamente com um parceiro novato para a ilha Shutter onde há um manicômio onde pacientes psiquiátricos são tratados na expectativa de que sejam curados pelos métodos inovadores de então - a estória se passa em 1954. Daniels vai à ilha investigar o desaparecimento de uma paciente e se defronta com situações que não apenas contradizem a sua autoridade policial como também o envolve em situações que o levam a se defrontar com a própria loucura. Se em Huis Clos, Sartre é categórico ("o inferno são os outros"), na Ilha do Medo o inferno pode estar tão próximo quanto na própria alma. Daniels vê-se cercado por todos os lados e não apenas por estar numa ilha. Até mesmo o terrível Senador Joseph McCarthy que liderou o Comitê de Atividades Antiamericanas é ressuscitado na ardente metáfora de Scorcese. O cenário é completamente ajustado aos tormentos de Daniels: as sombras e nuvens do filme dão-lhe um ar realmente perfeito para as perigosas introspecções humanas.
Todos os atores apresentam-se com brilho, na medida exata do que lhes é proposto. Interessante de se ver é o amadurecimento cada vez maior de DiCaprio que apesar de manter o seu rosto juvenil conseguiu fugir dos estigmas de ator de "um papel apenas". Ben Kingsley e Max Von Sydow não surpreendem, mas não precisam mesmo fazê-lo. Ao contrário, dá até para ficar esperando os trejeitos de cada um deles diante das lentes.
O filme é baseado no livro de Dennis Lehane que também escreveu Sobre Meninos e Lobos que tornou-se filme sob a batuta de Clint Eastwood. E é no roteiro adaptado por Laeta Kalogridis que residem os maiores (e não tão pequenos) tropeços do filme. Este não consegue acompanhar o ritmo cênico de Scorcese. Ao contrário: o filme acaba dominado completamente pelo desenvolvimento das cenas e o "mistério" do filme acaba sendo revelado (ou escondido) sem que haja a tensão necessária para que o espectador se envolva com a estória. Ou seja, a câmera está a serviço do diretor, mas o roteiro parece não lhe servir para enquadrar o próprio (e belo) projeto das cenas. Até mesmo a música consegue esconder o roteiro. Quem assiste ao filme fica como que procurando o "mistério", mas este não lhe é nunca mostrado pela simples razão de que este não existe, mesmo que de fato acabe sendo revelado. Assim, o todo belo do filme vê-se reduzido pela pouca fricção dos diálogos com as cenas. Este ponto fraco do filme não o condena, mas tira-lhe o atributo de "mais um filmão de Scorcese". Há um "abuso de forma da cena em relação ao roteiro". Apesar de tudo sentar na cadeira e ver Scorcese é um prêmio dos deuses.
quinta-feira, 25 de março de 2010
Revisitando Laranja Mecânica de Kubrick
Quando o escritor Anthony Burgess escreveu A Clockwork Orange em 1962 se iniciava um processo de substancial elevação do nível da violência urbana na sociedade moderna. Refiro-me a violência que afeta diretamente ao cidadão no seu dia-a-dia, o assalto, o estupro, o roubo e as agressões. Burgess soube em seu livro fugir da apreciação fácil deste processo tormentoso que atribui à transgressão criminosa causas aparentes e visíveis a olho nu. A violência é espelhada em seu livro como um processo amplo e com conotações antropológicas, culturais, sociais e, notadamente, política em seu sentido clássico associado à pólis. Tudo com uma ênfase hiperbólica aos conflitos éticos que marcam os homens em sua história.
Em 1971, recaiu sobre o livro de Anthony Burgess o brilho criativo, iluminado e iluminista de Stanley Kubrick, cineasta morto em 1999 e autor de memoráveis filmes como O Iluminado, Nascido Para Matar e 2001: Uma Odisséia no Espaço. O filme homônimo de Kubrick é de uma atualidade surpreendente, seja do ponto de vista objetivo (roteiro, a fotografia impecável, a direção de arte, os figurinos, etc), seja do ponto de vista dos valores intrínsecos reportados pela câmera.
Alex DeLarge, representado com brilho por Malcolm McDowell, é a personificação das contradições da hipermodernidade. Não à toa, todo o caminho de perversidade e transgressão percorrido por Alex é ilustrado por trânsfugas que misturam a musicalidade de Beethoven à candura de Singin` in the rain (com Alex dançando e sem o magistral Gene Kelly). As cenas de violência de rua e, sobretudo, o estupro da mulher do escritor marcam o desencontro dos significados e significantes dos atos daquela gang à qual pertence Alex: não há futuro e não há passado para aqueles jovens. Há o viver o presente não apenas de forma descompromissada, mas saber combinar à hipermodernidade uma hiperviolência já presente na própria sociedade. Pouco importa a lei, pois se tudo já está pré-determinado naquela ambientação (britânica?), resta a eles novos rumos compatíveis com aquela realidade. Somente assim se sentirão escutados e, quiçá, admirados.
Eis um filme que não fala de sentimentos. Aliás, estes são excluídos ou plastificados de tal sorte possa surgir um "homem novo" que sem saber dosar misturas, extrai do nazismo às notas do velho Ludwig, o suficiente para comparecer à orgia com moças pouco incautas certo tempo depois de estuprar outra na presença do marido golpeado, mas ainda de olhos abertos. Se há crueza e se esta parece crua, há que se notar que o filme apenas dá uma acelerada nas imagens que estavam a crescer naqueles idos de 1971 quando o filme se realizou. Não há mentiras no filme.
Depois de Ludwig Van Beethoven, vem Ludovico, o tratamento experimental que converterá o detento Alex DeLarge (pena de 14 anos na jaula) em alguém digno da convivência, digamos, social. Ora, a cura vem pela hiperexposição de Alex às cenas (obrigatórias) de hiperviolência. Se nas ruas tudo era ocasional, eis que o tratamento de recuperação é institucional. Goza os benefícios do Estado que a todos protege, não é mesmo?
Alex saiu da prisão. Não tem pai nem mãe, não tem casa, não tem os velhos amigos - estes já estão a trabalhar na corporação policial!. O pobre Alex cai (por acaso?) nas mãos do escritor cuja mulher foi estuprada e morta no passado. Se sua vingança era "social" no seu passado criminoso, agora a vingança é na sua veia e é particular. Submete-se à tortura e tenta o suicídio. Não fez direito... Desemboca num hospital e, de repente e finalmente, aparece a "sociedade" que o instala num leito. Vira o herói moderno convertido pela própria multidão que o condenou. Ludovico passa a ser questionado enquanto "tratamento de recuperação" e põe em risco o establishment. Em troca de uma bela "aposentadoria" arranjada pelo ministro conservador, Alex apóia a eleição daqueles que criaram Ludovico. Esta feita a história: Alex agora é parte boa da sociedade muito embora quase nada tenha funcionado em sua vida. Agora pode sonhar com a nona de Beethoven e participar novamente de orgias sob o olhar sereno do cavaleiros vitorianos.
Tudo neste filme parece surreal, mas definitivamente não é. Depois de mais de 40 anos de sua estréia, Kubrick continuar a jogar na nossa cara que a fé naquilo que chamamos de civilização é apenas uma quimera. Como nos ensinou Nietzsche "a fé é querer ignorar tudo aquilo que sabemos ser verdade." Estamos a falar da violência das ruas, mas também daquele escudo que não nos protege e, ao contrário, instalou a violência da hipermodernidade, do excesso de consumo e bebida, do hedonismo desmedido, da arte coisificada, das transações interesseiras e das relações desinteressadas entre os homens. Eis a violência travestida.
Laranja Mecânica (A ClockWork Orange, 1971, com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates eWarren Clark, dirigido, produzido e roteirizado por Stanley Kubrick) é mais que um espelho atual de onde chegamos. É um libelo pela liberdade, um alerta para o nosso futuro e um filme que tenta nos converter sem que tenhamos de apelar para o Ludovico de nosso cotidiano.
Em 1971, recaiu sobre o livro de Anthony Burgess o brilho criativo, iluminado e iluminista de Stanley Kubrick, cineasta morto em 1999 e autor de memoráveis filmes como O Iluminado, Nascido Para Matar e 2001: Uma Odisséia no Espaço. O filme homônimo de Kubrick é de uma atualidade surpreendente, seja do ponto de vista objetivo (roteiro, a fotografia impecável, a direção de arte, os figurinos, etc), seja do ponto de vista dos valores intrínsecos reportados pela câmera.
Alex DeLarge, representado com brilho por Malcolm McDowell, é a personificação das contradições da hipermodernidade. Não à toa, todo o caminho de perversidade e transgressão percorrido por Alex é ilustrado por trânsfugas que misturam a musicalidade de Beethoven à candura de Singin` in the rain (com Alex dançando e sem o magistral Gene Kelly). As cenas de violência de rua e, sobretudo, o estupro da mulher do escritor marcam o desencontro dos significados e significantes dos atos daquela gang à qual pertence Alex: não há futuro e não há passado para aqueles jovens. Há o viver o presente não apenas de forma descompromissada, mas saber combinar à hipermodernidade uma hiperviolência já presente na própria sociedade. Pouco importa a lei, pois se tudo já está pré-determinado naquela ambientação (britânica?), resta a eles novos rumos compatíveis com aquela realidade. Somente assim se sentirão escutados e, quiçá, admirados.
Eis um filme que não fala de sentimentos. Aliás, estes são excluídos ou plastificados de tal sorte possa surgir um "homem novo" que sem saber dosar misturas, extrai do nazismo às notas do velho Ludwig, o suficiente para comparecer à orgia com moças pouco incautas certo tempo depois de estuprar outra na presença do marido golpeado, mas ainda de olhos abertos. Se há crueza e se esta parece crua, há que se notar que o filme apenas dá uma acelerada nas imagens que estavam a crescer naqueles idos de 1971 quando o filme se realizou. Não há mentiras no filme.
Depois de Ludwig Van Beethoven, vem Ludovico, o tratamento experimental que converterá o detento Alex DeLarge (pena de 14 anos na jaula) em alguém digno da convivência, digamos, social. Ora, a cura vem pela hiperexposição de Alex às cenas (obrigatórias) de hiperviolência. Se nas ruas tudo era ocasional, eis que o tratamento de recuperação é institucional. Goza os benefícios do Estado que a todos protege, não é mesmo?
Alex saiu da prisão. Não tem pai nem mãe, não tem casa, não tem os velhos amigos - estes já estão a trabalhar na corporação policial!. O pobre Alex cai (por acaso?) nas mãos do escritor cuja mulher foi estuprada e morta no passado. Se sua vingança era "social" no seu passado criminoso, agora a vingança é na sua veia e é particular. Submete-se à tortura e tenta o suicídio. Não fez direito... Desemboca num hospital e, de repente e finalmente, aparece a "sociedade" que o instala num leito. Vira o herói moderno convertido pela própria multidão que o condenou. Ludovico passa a ser questionado enquanto "tratamento de recuperação" e põe em risco o establishment. Em troca de uma bela "aposentadoria" arranjada pelo ministro conservador, Alex apóia a eleição daqueles que criaram Ludovico. Esta feita a história: Alex agora é parte boa da sociedade muito embora quase nada tenha funcionado em sua vida. Agora pode sonhar com a nona de Beethoven e participar novamente de orgias sob o olhar sereno do cavaleiros vitorianos.
Tudo neste filme parece surreal, mas definitivamente não é. Depois de mais de 40 anos de sua estréia, Kubrick continuar a jogar na nossa cara que a fé naquilo que chamamos de civilização é apenas uma quimera. Como nos ensinou Nietzsche "a fé é querer ignorar tudo aquilo que sabemos ser verdade." Estamos a falar da violência das ruas, mas também daquele escudo que não nos protege e, ao contrário, instalou a violência da hipermodernidade, do excesso de consumo e bebida, do hedonismo desmedido, da arte coisificada, das transações interesseiras e das relações desinteressadas entre os homens. Eis a violência travestida.
Laranja Mecânica (A ClockWork Orange, 1971, com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates eWarren Clark, dirigido, produzido e roteirizado por Stanley Kubrick) é mais que um espelho atual de onde chegamos. É um libelo pela liberdade, um alerta para o nosso futuro e um filme que tenta nos converter sem que tenhamos de apelar para o Ludovico de nosso cotidiano.
sexta-feira, 5 de março de 2010
Uma Receita do Mar da Ligúria: Bagnum di Acciughe
Os pescados dos 350 km da costa marítima da Ligúria, região noroeste da Itália, são a representação mais loquaz da personalidade desta terra: é o símbolo da confiança dos habitantes da região no seu próprio destino. A combinação mais usual dos pescados são as ervas aromáticas, os diversos legumes frescos e os ovos. Tudo naquela terra bela fundeada por uma paisagem sem igual é particular e sem outra referência em toda a gastronomia.
Um dos pratos mais especiais da Ligúria é o Bagnum di Acciughe, feito de anchovas mergulhadas em tomate. A origem deste especialidade vem do mar e de seus proprietários, os pescadores que regressados de suas aventuras marítimas esperavam que a as redes secassem. Durante este ócio (criativo, não?), comiam esta pequena refeição preparada por entre os espaços dos pesqueiros. Vamos à receita.
Use sempre anchovas italianas e jamais as confundam com os produtos "anchovados" de outros pescados (por exemplo, as sardinhas). As anchovas importadas e já preparadas para o uso culinário podem ser conseguidas nos bons supermercados brasileiros. Coloque numa frigideira dois alhos (extirpados de sua parte central que causa aquela sensação desagradável) e uma cebola juntamente com o azeite extra virgem (4-5 colheres de sopa). Refogue até os ingredientes ganharem a conotação amarelada. Corte em pequeninos pedaços os tomates (300g aproximadamente) sem cascas e sementes e junte ao refogado de cebola e alho. Junte a gosto a pimenta do reino e o sal. Tenha paciência e deixe que tudo se faça por dez minutos. Adicione meio copo de vinho branco e reduza o fogo para que a porção cozinhe mais e se torne um molho.
Pegue as anchovas (800 gramas), coloque-as numa panela oval e acenda o fogo brando. Como fossem flores as regue com a outra metade do copo de vinho branco e cubra as anchovas com o molho. Polvilhe com abundante porção de salsa picada. Salpique sal e pimenta a gosto. Permaneça cozinhando as anchovas por dez minutos. Durante estes longos dez minutos nos quais a boca já está a salivar, torre no forno com fogo médio fatias de pães brancos. Depois os retire e esfregue alho neles como se estivesse usando uma pequena lixa. Depois deposite as anchovas mergulhadas no molho nestas torradas (bagnum). Sirva com vinho branco seco. Eis aí um singelo prato, revestido de sabor e cheio de sabores para despertar os deuses que saem do mar da Ligúria para invadir as mentes daqueles que sabem o valor do bom viver.
Um dos pratos mais especiais da Ligúria é o Bagnum di Acciughe, feito de anchovas mergulhadas em tomate. A origem deste especialidade vem do mar e de seus proprietários, os pescadores que regressados de suas aventuras marítimas esperavam que a as redes secassem. Durante este ócio (criativo, não?), comiam esta pequena refeição preparada por entre os espaços dos pesqueiros. Vamos à receita.
Use sempre anchovas italianas e jamais as confundam com os produtos "anchovados" de outros pescados (por exemplo, as sardinhas). As anchovas importadas e já preparadas para o uso culinário podem ser conseguidas nos bons supermercados brasileiros. Coloque numa frigideira dois alhos (extirpados de sua parte central que causa aquela sensação desagradável) e uma cebola juntamente com o azeite extra virgem (4-5 colheres de sopa). Refogue até os ingredientes ganharem a conotação amarelada. Corte em pequeninos pedaços os tomates (300g aproximadamente) sem cascas e sementes e junte ao refogado de cebola e alho. Junte a gosto a pimenta do reino e o sal. Tenha paciência e deixe que tudo se faça por dez minutos. Adicione meio copo de vinho branco e reduza o fogo para que a porção cozinhe mais e se torne um molho.
Pegue as anchovas (800 gramas), coloque-as numa panela oval e acenda o fogo brando. Como fossem flores as regue com a outra metade do copo de vinho branco e cubra as anchovas com o molho. Polvilhe com abundante porção de salsa picada. Salpique sal e pimenta a gosto. Permaneça cozinhando as anchovas por dez minutos. Durante estes longos dez minutos nos quais a boca já está a salivar, torre no forno com fogo médio fatias de pães brancos. Depois os retire e esfregue alho neles como se estivesse usando uma pequena lixa. Depois deposite as anchovas mergulhadas no molho nestas torradas (bagnum). Sirva com vinho branco seco. Eis aí um singelo prato, revestido de sabor e cheio de sabores para despertar os deuses que saem do mar da Ligúria para invadir as mentes daqueles que sabem o valor do bom viver.
terça-feira, 2 de março de 2010
"Simplesmente Complicado": Rir e Não Pensar
Eis um filme para divertir e quase nada a mais - será?. Simplesmente Complicado (It´s Complicated, EUA, 2009, direção e roteiro de Nancy Meyers, com Meryl Streep, Alec Baldwin e Steve Martin) cumpre o papel de comédia romântica com o brilho do desempenho de Alec Baldwin e com moderadas participações de Streep e Martin - este último de fato está sofrível no filme.
Trata-se da estória de Jane, mãe de três filhos pós-adolescentes, e que depois de dez anos de separação está a descobrir novos prazeres, da cozinha à cama, e, eventualmente pode ter um amor. A sorte (ou o azar) é que o seu ex-marido (Baldwin) constata, por razões oblíquas, que o seu verdadeiro amor é a ex-mulher. Entre os dois se interpõe o arquiteto Adam que está a projetar as novas dependências da (enorme e charmosa) casa de Jane. Adam também é separado e seu divórcio foi fruto de uma traição amorosa de sua ex-esposa durante uma viagem à Toscana, (Triste sina a de Adam).
Bom, os lances do filme são fruto de episódios engraçados dos encontros amorosos de Jane com o ex-marido e a tentativa de conquista do coração de Jane por parte de Adam. O roteiro não chega a ser preciso, pois a estória tem seguidos altos e baixos, mas isto não compromete o razoável resultado final. Até parece que a diretora Nancy Meyers apostou alto no elenco para compensar certas fragilidades de seu roteiro. É preciso fazer acontecer...
O interessante deste tipo de filme é que cada vez mais os homens são colocados em uma posição desconfortável perante si mesmos e o (inferno) dos outros. Ora Jake está a coletar esperma para tentar a gravidez com a nova esposa, ora vê-se inferiorizado pela alegre e realizada ex-mulher. Para Jane, o destino é fugir de qualquer esterótipo que possa enquadrá-la no velho "padrão" feminino. Se ela cozinha, é porque é profissional. Se ela revela as intimidades sexuais com o ex-marido, é porque é "livre", se ela é mãe é porque conta com a preferência evidente dos filhos, etc. e tal. Tudo sempre com ar de sutil superioridade. Coitado de Jake. Ele anda por aí com o seu moderno Porsche e com uma esposa jovem e bonita. Todavia, nada disso está relacionado com poder. Ao contrário: são exatamente estas as suas fragilidades. O que ele quer mesmo é ser amado, uma boa dose de sexo e um lar com boa comida e com os filhos ao redor. Como se vê, algo muito "doméstico" na falta de outra palavra que melhor o descreva.
Do ponto de vista amoroso, Jake está casado, mas a sua escolha é clara: deseja a ex-mulher e tudo é uma questão de tempo. Se no passado errou, isto não é parte de um inconsciente sobrecarregado - é uma experiência vivida e que não seria repetida. Já no caso de Jane, a coisa é diferente: ela pode ter o homem que quiser na sua cama e braços e, no caso, há dois disponíveis. Para ela não basta reconhecer que o ex-marido é o cara. É preciso recordar as mazelas do passado e enquadrá-las de tal forma que o ex seja sempre lembrado de que ele era isto e era aquilo. Bom, a certa altura do filme ela pronuncia com cuidado que também errou durante os vinte anos de casamento. Mas, e daí?
A vida é sempre uma escolha, mas para Jane é preferível ter opções.É claro que os homens já estiveram em melhor forma. Agora estão barrigudos, submetidos às intempéries dos relacionamentos e sem muita opção, apesar das aparências.
Como já disse, eis um filme que diverte. Pouco importa as sutilezas que marcam os comportamentos sexuais. Afinal, rir dos homens é divertido. Já rir das mulheres pode ser sexismo. Ao invés de cair no perigo mortal deste tipo de constatação é melhor sentar na poltrona, mandar uma pipoca com coca-cola e rir do filme. Viver é mais importante que pensar.
Trata-se da estória de Jane, mãe de três filhos pós-adolescentes, e que depois de dez anos de separação está a descobrir novos prazeres, da cozinha à cama, e, eventualmente pode ter um amor. A sorte (ou o azar) é que o seu ex-marido (Baldwin) constata, por razões oblíquas, que o seu verdadeiro amor é a ex-mulher. Entre os dois se interpõe o arquiteto Adam que está a projetar as novas dependências da (enorme e charmosa) casa de Jane. Adam também é separado e seu divórcio foi fruto de uma traição amorosa de sua ex-esposa durante uma viagem à Toscana, (Triste sina a de Adam).
Bom, os lances do filme são fruto de episódios engraçados dos encontros amorosos de Jane com o ex-marido e a tentativa de conquista do coração de Jane por parte de Adam. O roteiro não chega a ser preciso, pois a estória tem seguidos altos e baixos, mas isto não compromete o razoável resultado final. Até parece que a diretora Nancy Meyers apostou alto no elenco para compensar certas fragilidades de seu roteiro. É preciso fazer acontecer...
O interessante deste tipo de filme é que cada vez mais os homens são colocados em uma posição desconfortável perante si mesmos e o (inferno) dos outros. Ora Jake está a coletar esperma para tentar a gravidez com a nova esposa, ora vê-se inferiorizado pela alegre e realizada ex-mulher. Para Jane, o destino é fugir de qualquer esterótipo que possa enquadrá-la no velho "padrão" feminino. Se ela cozinha, é porque é profissional. Se ela revela as intimidades sexuais com o ex-marido, é porque é "livre", se ela é mãe é porque conta com a preferência evidente dos filhos, etc. e tal. Tudo sempre com ar de sutil superioridade. Coitado de Jake. Ele anda por aí com o seu moderno Porsche e com uma esposa jovem e bonita. Todavia, nada disso está relacionado com poder. Ao contrário: são exatamente estas as suas fragilidades. O que ele quer mesmo é ser amado, uma boa dose de sexo e um lar com boa comida e com os filhos ao redor. Como se vê, algo muito "doméstico" na falta de outra palavra que melhor o descreva.
Do ponto de vista amoroso, Jake está casado, mas a sua escolha é clara: deseja a ex-mulher e tudo é uma questão de tempo. Se no passado errou, isto não é parte de um inconsciente sobrecarregado - é uma experiência vivida e que não seria repetida. Já no caso de Jane, a coisa é diferente: ela pode ter o homem que quiser na sua cama e braços e, no caso, há dois disponíveis. Para ela não basta reconhecer que o ex-marido é o cara. É preciso recordar as mazelas do passado e enquadrá-las de tal forma que o ex seja sempre lembrado de que ele era isto e era aquilo. Bom, a certa altura do filme ela pronuncia com cuidado que também errou durante os vinte anos de casamento. Mas, e daí?
A vida é sempre uma escolha, mas para Jane é preferível ter opções.É claro que os homens já estiveram em melhor forma. Agora estão barrigudos, submetidos às intempéries dos relacionamentos e sem muita opção, apesar das aparências.
Como já disse, eis um filme que diverte. Pouco importa as sutilezas que marcam os comportamentos sexuais. Afinal, rir dos homens é divertido. Já rir das mulheres pode ser sexismo. Ao invés de cair no perigo mortal deste tipo de constatação é melhor sentar na poltrona, mandar uma pipoca com coca-cola e rir do filme. Viver é mais importante que pensar.
segunda-feira, 1 de março de 2010
O Ótimo "O Segredo de Seus Olhos" Não Tem Segredo
Por detrás da forma doce e elegante da lente do filme O Segredo de Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos, Espanha-Argentina, 2009, dirigido por Juan José Campanella, com Ricardo Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago, Javier Godino e Guillermo Francella) há outra realidade. Desejar não basta. É preciso ir na direção daquilo que desejamos (ou amamos).
Benjamin Esposito (Darín) investigou crimes ao longo de sua carreira judicial. Aposentado, decide se tornar escritor e retorna aos fatos e mistérios de um estupro e assassinato ocorrido há muitos anos. Trata-se de um caso resolvido, mas sem solução. Explico: após uma investigação que se inicia a partir de um álbum de fotografias, Esposito chega ao assassino. Prende-o e, assim, faz justiça ao sofrimento do noivo da jovem assassinada. Ledo engano: em pouco tempo o homicida é liberto para trabalhar para a repressão pós-golpe militar de 1976 na Argentina. Soma-se em Esposito uma sensação de completude (os fatos conhecidos) e de falta de entendimento sobre o desfecho do caso (a liberdade do criminoso). Mas, isto tudo é apenas aparência. Ao longo da estória, Esposito vê-se diante de um amor irrealizado, incompleto como o próprio caso policial. Sua chefe Irene Hastings não é apenas bela, mas é um poço de esperança de que Esposito revele seu amor e a tome nos braços e coloque-a em seu coração. Tudo é delicado e ambicioso naquele amor, mas falta a coragem de se revelar e partir para o cultivo do amor.
Todavia, o tempo passa e o agora aposentado Esposito vai de encontro ao tempo passado.
Em O Segredo de Seus Olhos a estória transcorre com alguma passividade. O mistério não é grandioso. O espectador não fica em nenhum momento boquiaberto com as revelações que o roteiro faz. Ao contrário, há um óbvio transcorrer dos fatos. O segredo só pode mesmo estar nos olhos e não naquilo que vemos.
O diretor Campanella (o mesmo de O Filho da Noiva) soube sair da obviedade dos fatos para investir na tensão entre os personagens que se amam (Irene e Esposito). Se o investigador criminal foi rápido e preciso em selecionar dentre os suspeitos do assassinato um homem a partir de seu olhar numa fotografia, no caso de seu próprio amor, apenas os olhos de Irene não bastaram. Foi preciso que Esposito fosse carcomido pelo tempo para que ele reconhecesse muito além dos olhos de Irene, o próprio amor entre eles. Campanella, com habilidade metódica e cuidadosa consegue criar a tensão necessária para que ao assistir o filme possamos prender a respiração e esperar que Esposito se manifeste. Esta é a essência do segredo.
A sua forma, como já escrito acima, é elegante e apenas isso já faz muito de vez que há escassez de elegância nas artes em geral e no cinema em particular.
O cinema argentino está de parabéns há algum tempo. É incrível a qualidade não apenas da produção (que conta com os recursos espanhóis), mas sobretudo a versatilidade artística dos atores, bem como a sua expressão dramática. Não há as moças com silhuetas bem moldadas do cinema brasileiro, mas é fantástica a beleza cinematográfica daqueles lados portenhos. Por aqui sobra nudez e violência. Os argentinos estão a nos ensinar a fazer cinema, muito além do investimento em grana. Corro o risco de dizer, sem medo de errar, que não há atualmente nenhum ator com o porte dramático de Ricardo Darín entre nós. Que eu seja perdoado pelos eventuais Policarpos Quaresmas do cinema nacional, mas eu não consigo ver nenhum ator com as virtudes do protagonista de O Segredo de Seus Olhos. O mesmo valeria para Soledad Villamil se pelos nossos lados não tivéssemos Fernanda Montenegro. Solitária, que fique claro! Se no futebol, Pelé nunca foi superado por Maradona, no cinema somos um time de segunda divisão perante os hermanos.
Não sei os méritos de O Segredo dos Seus Olhos o levarão à glória do Oscar. O jogo em Hollywood é barra pesada. Mas, uma coisa é certa: este filme supera a si próprio. Com um roteiro simples, o diretor carregou os excelentes atores para além dos personagens. Não é isto que esperamos quando nos sentamos no escuro para assistir as projeções?
Benjamin Esposito (Darín) investigou crimes ao longo de sua carreira judicial. Aposentado, decide se tornar escritor e retorna aos fatos e mistérios de um estupro e assassinato ocorrido há muitos anos. Trata-se de um caso resolvido, mas sem solução. Explico: após uma investigação que se inicia a partir de um álbum de fotografias, Esposito chega ao assassino. Prende-o e, assim, faz justiça ao sofrimento do noivo da jovem assassinada. Ledo engano: em pouco tempo o homicida é liberto para trabalhar para a repressão pós-golpe militar de 1976 na Argentina. Soma-se em Esposito uma sensação de completude (os fatos conhecidos) e de falta de entendimento sobre o desfecho do caso (a liberdade do criminoso). Mas, isto tudo é apenas aparência. Ao longo da estória, Esposito vê-se diante de um amor irrealizado, incompleto como o próprio caso policial. Sua chefe Irene Hastings não é apenas bela, mas é um poço de esperança de que Esposito revele seu amor e a tome nos braços e coloque-a em seu coração. Tudo é delicado e ambicioso naquele amor, mas falta a coragem de se revelar e partir para o cultivo do amor.
Todavia, o tempo passa e o agora aposentado Esposito vai de encontro ao tempo passado.
Em O Segredo de Seus Olhos a estória transcorre com alguma passividade. O mistério não é grandioso. O espectador não fica em nenhum momento boquiaberto com as revelações que o roteiro faz. Ao contrário, há um óbvio transcorrer dos fatos. O segredo só pode mesmo estar nos olhos e não naquilo que vemos.
O diretor Campanella (o mesmo de O Filho da Noiva) soube sair da obviedade dos fatos para investir na tensão entre os personagens que se amam (Irene e Esposito). Se o investigador criminal foi rápido e preciso em selecionar dentre os suspeitos do assassinato um homem a partir de seu olhar numa fotografia, no caso de seu próprio amor, apenas os olhos de Irene não bastaram. Foi preciso que Esposito fosse carcomido pelo tempo para que ele reconhecesse muito além dos olhos de Irene, o próprio amor entre eles. Campanella, com habilidade metódica e cuidadosa consegue criar a tensão necessária para que ao assistir o filme possamos prender a respiração e esperar que Esposito se manifeste. Esta é a essência do segredo.
A sua forma, como já escrito acima, é elegante e apenas isso já faz muito de vez que há escassez de elegância nas artes em geral e no cinema em particular.
O cinema argentino está de parabéns há algum tempo. É incrível a qualidade não apenas da produção (que conta com os recursos espanhóis), mas sobretudo a versatilidade artística dos atores, bem como a sua expressão dramática. Não há as moças com silhuetas bem moldadas do cinema brasileiro, mas é fantástica a beleza cinematográfica daqueles lados portenhos. Por aqui sobra nudez e violência. Os argentinos estão a nos ensinar a fazer cinema, muito além do investimento em grana. Corro o risco de dizer, sem medo de errar, que não há atualmente nenhum ator com o porte dramático de Ricardo Darín entre nós. Que eu seja perdoado pelos eventuais Policarpos Quaresmas do cinema nacional, mas eu não consigo ver nenhum ator com as virtudes do protagonista de O Segredo de Seus Olhos. O mesmo valeria para Soledad Villamil se pelos nossos lados não tivéssemos Fernanda Montenegro. Solitária, que fique claro! Se no futebol, Pelé nunca foi superado por Maradona, no cinema somos um time de segunda divisão perante os hermanos.
Não sei os méritos de O Segredo dos Seus Olhos o levarão à glória do Oscar. O jogo em Hollywood é barra pesada. Mas, uma coisa é certa: este filme supera a si próprio. Com um roteiro simples, o diretor carregou os excelentes atores para além dos personagens. Não é isto que esperamos quando nos sentamos no escuro para assistir as projeções?
"Educação": Nada de Novo no Front
T.S. Eliot, o grande poeta anglo-americano, escreveu em 1951 Notes Towards the Definition of Culture (Notas Para a Definição da Cultura) que devemos "combater o delírio de que os males do mundo modernos podem ser consertados em um sistema de instrução. Uma medida que é desejável como paliativo, pode ser injuriosa se apresentada como cura (...). Há também o perigo que a educação - que na verdade está sob a influência da política - tome sobre si a reforma e a direção da cultura, em vez de se manter em seu lugar como uma das atividades por meio do qual a cultura se realiza." Desse ponto de vista a educação não pode ser a muleta que tenta corrigir a visão cultural de uma sociedade, mas é por ela, de forma não-exclusiva, que a cultura se realiza.
O desenvolvimento da cultura de massas a partir dos anos 50, e sobretudo, nos anos 60 do século passado, proporcionou uma mudança radical na cultura e no comportamento. Dentre as múltiplas transformações cabe destacar aquela que mitificou a matéria e arrastou consigo o comportamento. Se no período anterior do século XX os valores sociais e pessoais "controlavam" o valor das coisas na sociedade burguesa, a partir dos anos 50, as coisas passaram ao campo espiritual, ou seja, adquiriram valores que antes eram dos homens. Estes últimos passaram de sujeito para objeto. Não à toa, toda fascinação passou a ser dispensada aos carros, às roupas (algumas exóticas), às casas e edifícios e à própria arte. Para que os homens "fossem" era preciso "possuir". Por sua vez "possuir" não significava manipular o valor das coisas, mas ser manipulado por elas. Docemente se realizou o que a revolução cultural tentava violentamente evitar. Havia algo de novo à frente, mas os homens passaram a ser vistos pelo retrovisor das estruturas que produziam em massa.
É ao redor desta temática que transcorre o filme Educação (An Education, Inglaterra, 2009, dirigido por Lone Scherfig, com Carey Mulligan, Peter Sarsgaard, Alfred Molina e Dominic Cooper). O filme é baseado nas memórias (com o mesmo título do filme) da jornalista inglesa Lynn Barber.
O filme conta a história de uma excelente estudante (Jenny) de uma escola tradicional inglesa que ao conhecer um homem mais velho (David), com seus 30 anos, se envolve não apenas com ele do ponto de vista afetivo, mas como passa a conviver com o "estilo de vida adulto deste". A freqüência aos concertos de música clássica, aos leilões de arte, às viagens de fim de semana, aos bons restaurantes londrinos tomam conta do imaginário daquela adolescente.
Seus pais compunham com ela o que se poderia chamar de uma "família tradicional de classe média", cujos valores passam a ser o contraponto à nova situação da jovem enamorada. Todavia, o charmoso David é hábil o suficiente para consolidar a sua sedução perante todos. Afinal, o fato de ser aparentemente abastado e com as "novas virtudes" demandadas pela sociedade em transformação dos anos 60 são capazes de converter não apenas Jenny, mas também o seu pai que ambiciona "o melhor" para a vida da filha, inclusive um bom casamento, e a sua mãe, uma dona de casa cercada de muralhas sociais por todos os lados e que vê uma oportunidade de ouro para que sua filha escape de seu próprio destino.
O mais notável desta trama é que a facilidade que temos para entender o que está a ocorrer com Jenny é a mesma que temos para compreender o porquê. De um lado se apresentam, o dicionário de latim, as aulas de literatura, o cultivo da boa música, da dança de salão e dos bons costumes. Tudo muito enfadonho para uma jovem fascinada com os tempos que terá de percorrer. De outro lado, temos o próprio "mundo novo", com as suas liberalidades sexuais, comportamentais e culturais. Neste "novo mundo", a arte não tem mais o valor intrínseco da expressão de um tempo ou de um sentimento. O valor da arte está expresso em libras esterlinas e corre solto pelos salões de leilões. O mesmo vale para os livros, a música, a gastronomia. Coitada de Jenny: é ela a ponte que liga toda a significação das coisas ao significante vazio deste novo mundo. David, fruto de uma paixão juvenil, e seus amigos dão valor a esta estudante menina-moça. O valor que está contido nas entranhas dos livros ou nas palavras precisas de seus professores de literatura servem a eles desde que lhes seja possível transformar em cifrões o conteúdo intelectual e estético da mocinha.
Jenny é tratada nos padrões escrupulosos de seus pais e na limitação evidente dos recursos materiais. Mesmo assim, lá no horizonte está Oxford, a faculdade que lhe elevará o padrão social. A classe média sonha e pode realizar, mas se houver facilidades pelo caminho tanto melhor. O atalho pode ser mais curto. Fosse assim, a sorte prevaleceria sempre e não seria uma exceção.
Dos anos 60 para cá temos de reconhecer que as aparências têm (muito) valor. Tanto ou mais valem quanto em relação à época que as revoltas e revoluções desejaram superar. Se houve progresso com as "revoluções culturais e políticas" dos famosos anos 60 temos de nos sujeitar ao fato de que não foram poucas as chagas que ficaram. A liberalização sexual, a individualização, a prevalência do hedonismo enquanto valor, etc, têm seu custo muito embora poucos estejam dispostos a calcular. Em lugar das aspirações liberais passou-se a ser aspirado pelas coisas. Alguma liberdade e outro tanto de novas obrigações perante a nova ordem. Como sempre foi.
Jenny aprendeu isto a duras penas. O seu querido David não era lá essas coisas: faltava-lhe o caráter de quem realmente deseja, sabe, conquista e liberta. Sequer a Paris imaginada pela adolescente versada na língua gaulesa escapa desta fatalidade. A Cidade das Luzes nada mais foi que o rito de passagem da menina para mulher. Sem pudor e, provavelmente, sem amor.
É certo que o tempo não regride. O paradoxo mais sensível no campo temporal é aquele que nos dá a chance de sermos autores de nossa história, mesmo que o mais provável seja que nos tornemos vítimas dela. O único "retorno" que nos é possível é na direção de nossos valores. Diga-se: os nossos melhores valores. Pois bem: é retornando de seu exílio "moderno" e "vanguardista" que Jenny volta aos livros e à convivência com as suas aparentes dificuldades cotidianas: a escola, o estudo em sua escrivaninha, os trajes escolares e assim vai.
É quase impossível acreditarmos que se pode escapar da sedução do "novo". Quando estamos a falar da "nova era" ou da "nova cultura" torna-se imperativo que experimentemos do novo cálice de vinho. Ou melhor, da tragada da maconha. A educação por sua vez parece se tornar, num contexto de "superação dos tempos", um processo obsoleto, sofrido, penoso e sem esperança. Não há nos bancos escolares nenhuma satisfação para as novas aspirações juvenis. Este talvez seja o maior dilema de nossos tempos no que diz à educação. Talvez tenha sido sempre assim. Todavia, como nos ensina T.S. Eliot não cabe a educação ser aquela que corrige a cultura. Cabe-lhe o papel de realizá-la da maneira mais nobre. Quem sabe possamos nos reconciliar com aquilo que na Padéia grega era o centro da vida educacional: o bom, o belo e o justo. Parece simples, mas não é.
O desenvolvimento da cultura de massas a partir dos anos 50, e sobretudo, nos anos 60 do século passado, proporcionou uma mudança radical na cultura e no comportamento. Dentre as múltiplas transformações cabe destacar aquela que mitificou a matéria e arrastou consigo o comportamento. Se no período anterior do século XX os valores sociais e pessoais "controlavam" o valor das coisas na sociedade burguesa, a partir dos anos 50, as coisas passaram ao campo espiritual, ou seja, adquiriram valores que antes eram dos homens. Estes últimos passaram de sujeito para objeto. Não à toa, toda fascinação passou a ser dispensada aos carros, às roupas (algumas exóticas), às casas e edifícios e à própria arte. Para que os homens "fossem" era preciso "possuir". Por sua vez "possuir" não significava manipular o valor das coisas, mas ser manipulado por elas. Docemente se realizou o que a revolução cultural tentava violentamente evitar. Havia algo de novo à frente, mas os homens passaram a ser vistos pelo retrovisor das estruturas que produziam em massa.
É ao redor desta temática que transcorre o filme Educação (An Education, Inglaterra, 2009, dirigido por Lone Scherfig, com Carey Mulligan, Peter Sarsgaard, Alfred Molina e Dominic Cooper). O filme é baseado nas memórias (com o mesmo título do filme) da jornalista inglesa Lynn Barber.
O filme conta a história de uma excelente estudante (Jenny) de uma escola tradicional inglesa que ao conhecer um homem mais velho (David), com seus 30 anos, se envolve não apenas com ele do ponto de vista afetivo, mas como passa a conviver com o "estilo de vida adulto deste". A freqüência aos concertos de música clássica, aos leilões de arte, às viagens de fim de semana, aos bons restaurantes londrinos tomam conta do imaginário daquela adolescente.
Seus pais compunham com ela o que se poderia chamar de uma "família tradicional de classe média", cujos valores passam a ser o contraponto à nova situação da jovem enamorada. Todavia, o charmoso David é hábil o suficiente para consolidar a sua sedução perante todos. Afinal, o fato de ser aparentemente abastado e com as "novas virtudes" demandadas pela sociedade em transformação dos anos 60 são capazes de converter não apenas Jenny, mas também o seu pai que ambiciona "o melhor" para a vida da filha, inclusive um bom casamento, e a sua mãe, uma dona de casa cercada de muralhas sociais por todos os lados e que vê uma oportunidade de ouro para que sua filha escape de seu próprio destino.
O mais notável desta trama é que a facilidade que temos para entender o que está a ocorrer com Jenny é a mesma que temos para compreender o porquê. De um lado se apresentam, o dicionário de latim, as aulas de literatura, o cultivo da boa música, da dança de salão e dos bons costumes. Tudo muito enfadonho para uma jovem fascinada com os tempos que terá de percorrer. De outro lado, temos o próprio "mundo novo", com as suas liberalidades sexuais, comportamentais e culturais. Neste "novo mundo", a arte não tem mais o valor intrínseco da expressão de um tempo ou de um sentimento. O valor da arte está expresso em libras esterlinas e corre solto pelos salões de leilões. O mesmo vale para os livros, a música, a gastronomia. Coitada de Jenny: é ela a ponte que liga toda a significação das coisas ao significante vazio deste novo mundo. David, fruto de uma paixão juvenil, e seus amigos dão valor a esta estudante menina-moça. O valor que está contido nas entranhas dos livros ou nas palavras precisas de seus professores de literatura servem a eles desde que lhes seja possível transformar em cifrões o conteúdo intelectual e estético da mocinha.
Jenny é tratada nos padrões escrupulosos de seus pais e na limitação evidente dos recursos materiais. Mesmo assim, lá no horizonte está Oxford, a faculdade que lhe elevará o padrão social. A classe média sonha e pode realizar, mas se houver facilidades pelo caminho tanto melhor. O atalho pode ser mais curto. Fosse assim, a sorte prevaleceria sempre e não seria uma exceção.
Dos anos 60 para cá temos de reconhecer que as aparências têm (muito) valor. Tanto ou mais valem quanto em relação à época que as revoltas e revoluções desejaram superar. Se houve progresso com as "revoluções culturais e políticas" dos famosos anos 60 temos de nos sujeitar ao fato de que não foram poucas as chagas que ficaram. A liberalização sexual, a individualização, a prevalência do hedonismo enquanto valor, etc, têm seu custo muito embora poucos estejam dispostos a calcular. Em lugar das aspirações liberais passou-se a ser aspirado pelas coisas. Alguma liberdade e outro tanto de novas obrigações perante a nova ordem. Como sempre foi.
Jenny aprendeu isto a duras penas. O seu querido David não era lá essas coisas: faltava-lhe o caráter de quem realmente deseja, sabe, conquista e liberta. Sequer a Paris imaginada pela adolescente versada na língua gaulesa escapa desta fatalidade. A Cidade das Luzes nada mais foi que o rito de passagem da menina para mulher. Sem pudor e, provavelmente, sem amor.
É certo que o tempo não regride. O paradoxo mais sensível no campo temporal é aquele que nos dá a chance de sermos autores de nossa história, mesmo que o mais provável seja que nos tornemos vítimas dela. O único "retorno" que nos é possível é na direção de nossos valores. Diga-se: os nossos melhores valores. Pois bem: é retornando de seu exílio "moderno" e "vanguardista" que Jenny volta aos livros e à convivência com as suas aparentes dificuldades cotidianas: a escola, o estudo em sua escrivaninha, os trajes escolares e assim vai.
É quase impossível acreditarmos que se pode escapar da sedução do "novo". Quando estamos a falar da "nova era" ou da "nova cultura" torna-se imperativo que experimentemos do novo cálice de vinho. Ou melhor, da tragada da maconha. A educação por sua vez parece se tornar, num contexto de "superação dos tempos", um processo obsoleto, sofrido, penoso e sem esperança. Não há nos bancos escolares nenhuma satisfação para as novas aspirações juvenis. Este talvez seja o maior dilema de nossos tempos no que diz à educação. Talvez tenha sido sempre assim. Todavia, como nos ensina T.S. Eliot não cabe a educação ser aquela que corrige a cultura. Cabe-lhe o papel de realizá-la da maneira mais nobre. Quem sabe possamos nos reconciliar com aquilo que na Padéia grega era o centro da vida educacional: o bom, o belo e o justo. Parece simples, mas não é.
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