terça-feira, 30 de março de 2010

"Ilha do Medo", Um Abuso de Forma de Martin Scorcese

Pode-se destacar muitas qualidades em relação ao diretor Martin Scorcese e por aí há uma imensa lista de críticas dispensadas ao mestre do cinema norte-americano. Eu destacaria duas entre todas as possíveis: o domínio absoluto do planejamento, da execução e da finalização das cenas e a simbiose entre Scorcese, os atores e os personagens.
Pois bem: em Ilha do Medo (Shutter Island, 2010, dirigido por Martin Scorcese, com Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydow), Scorcese evidencia com ênfase estes dois talentos com grande maestria. Chega a ser impressionante como é vibrante o andar (ou os sobressaltos) da câmera do grande diretor. Ao mesmo tempo em que tudo parece perfeito, àquele que está a assistir o filme sobram inúmeros detalhes em cada cena que demonstram inequivocamente a destreza e o esmero dispensado pelo diretor. É ele o grande artista mesmo que fora de cena.
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Leonardo DiCaprio é o agente Teddy Daniels, um policial federal que é enviado juntamente com um parceiro novato para a ilha Shutter onde há um manicômio onde pacientes psiquiátricos são tratados na expectativa de que sejam curados pelos métodos inovadores de então - a estória se passa em 1954. Daniels vai à ilha investigar o desaparecimento de uma paciente e se defronta com situações que não apenas contradizem a sua autoridade policial como também o envolve em situações que o levam a se defrontar com a própria loucura. Se em Huis Clos, Sartre é categórico ("o inferno são os outros"), na Ilha do Medo o inferno pode estar tão próximo quanto na própria alma. Daniels vê-se cercado por todos os lados e não apenas por estar numa ilha. Até mesmo o terrível Senador Joseph McCarthy que liderou o Comitê de Atividades Antiamericanas é ressuscitado na ardente metáfora de Scorcese. O cenário é completamente ajustado aos tormentos de Daniels: as sombras e nuvens do filme dão-lhe um ar realmente perfeito para as perigosas introspecções humanas.
Todos os atores apresentam-se com brilho, na medida exata do que lhes é proposto. Interessante de se ver é o amadurecimento cada vez maior de DiCaprio que apesar de manter o seu rosto juvenil conseguiu fugir dos estigmas de ator de "um papel apenas". Ben Kingsley e Max Von Sydow não surpreendem, mas não precisam mesmo fazê-lo. Ao contrário, dá até para ficar esperando os trejeitos de cada um deles diante das lentes. 
O filme é baseado no livro de Dennis Lehane que também escreveu Sobre Meninos e Lobos que tornou-se filme sob a batuta de Clint Eastwood. E é no roteiro adaptado por Laeta Kalogridis que residem os maiores (e não tão pequenos) tropeços do filme. Este não consegue acompanhar o ritmo cênico de Scorcese. Ao contrário: o filme acaba dominado completamente pelo desenvolvimento das cenas e o "mistério" do filme acaba sendo revelado (ou escondido) sem que haja a tensão necessária para que o espectador se envolva com a estória. Ou seja, a câmera está a serviço do diretor, mas o roteiro parece não lhe servir para enquadrar o próprio (e belo) projeto das cenas. Até mesmo a música consegue esconder o roteiro. Quem assiste ao filme fica como que procurando o "mistério", mas este não lhe é nunca mostrado pela simples razão de que este não existe, mesmo que de fato acabe sendo revelado. Assim, o todo belo do filme vê-se reduzido pela pouca fricção dos diálogos com as cenas. Este ponto fraco do filme não o condena, mas tira-lhe o atributo de "mais um filmão de Scorcese". Há um "abuso de forma da cena em relação ao roteiro". Apesar de tudo sentar na cadeira e ver Scorcese é um prêmio dos deuses. 

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