quinta-feira, 25 de março de 2010

Revisitando Laranja Mecânica de Kubrick

Quando o escritor Anthony Burgess escreveu A Clockwork Orange em 1962 se iniciava um processo de substancial elevação do nível da violência urbana na sociedade moderna. Refiro-me a violência que afeta diretamente ao cidadão no seu dia-a-dia, o assalto, o estupro, o roubo e as agressões. Burgess soube em seu livro fugir da apreciação fácil deste processo tormentoso que atribui à transgressão criminosa causas aparentes e visíveis a olho nu. A violência é espelhada em seu livro como um processo amplo e com conotações antropológicas, culturais, sociais e, notadamente, política em seu sentido clássico associado à pólis. Tudo com uma ênfase hiperbólica aos conflitos éticos que marcam os homens em sua história.
Em 1971, recaiu sobre o livro de Anthony Burgess o brilho criativo, iluminado e iluminista de Stanley Kubrick, cineasta morto em 1999 e autor de memoráveis filmes como  O Iluminado, Nascido Para Matar e 2001: Uma Odisséia no Espaço. O filme homônimo de Kubrick é de uma atualidade surpreendente, seja do ponto de vista objetivo (roteiro, a fotografia impecável, a direção de arte, os figurinos, etc), seja do ponto de vista dos valores intrínsecos reportados pela câmera.  
Alex DeLarge, representado com brilho por Malcolm McDowell, é a personificação das contradições da hipermodernidade. Não à toa, todo o caminho de perversidade e transgressão percorrido por Alex é ilustrado por trânsfugas que misturam a musicalidade de Beethoven à candura de Singin` in the rain (com Alex dançando e sem o magistral Gene Kelly). As cenas de violência de rua e, sobretudo, o estupro da mulher do escritor marcam o desencontro dos significados e significantes dos atos daquela gang à qual pertence Alex: não há futuro e não há passado para aqueles jovens. Há o viver o presente não apenas de forma descompromissada, mas saber combinar à hipermodernidade uma hiperviolência já presente na própria sociedade. Pouco importa a lei, pois se tudo já está pré-determinado naquela ambientação (britânica?), resta a eles novos rumos compatíveis com aquela realidade. Somente assim se sentirão escutados e, quiçá, admirados.



Eis um filme que não fala de sentimentos. Aliás, estes são excluídos ou plastificados de tal sorte possa surgir um "homem novo" que sem saber dosar misturas, extrai do nazismo às notas do velho Ludwig, o suficiente para comparecer à orgia com moças pouco incautas certo tempo depois de estuprar outra na presença do marido golpeado, mas ainda de olhos abertos. Se há crueza e se esta parece crua, há que se notar que o filme apenas dá uma acelerada nas imagens que estavam a crescer naqueles idos de 1971 quando o filme se realizou. Não há mentiras no filme.
Depois de Ludwig Van Beethoven, vem Ludovico, o tratamento experimental que converterá o detento  Alex DeLarge (pena de 14 anos na jaula) em alguém digno da convivência, digamos, social. Ora, a cura vem pela hiperexposição de Alex às cenas (obrigatórias) de hiperviolência. Se nas ruas tudo era ocasional, eis que o tratamento de recuperação é institucional. Goza os benefícios do Estado que a todos protege, não é mesmo?
Alex saiu da prisão. Não tem pai nem mãe, não tem casa, não tem os velhos amigos - estes já estão a trabalhar na corporação policial!. O pobre Alex cai (por acaso?) nas mãos do escritor cuja mulher foi estuprada e morta no passado. Se sua vingança era "social" no seu passado criminoso, agora a vingança é na sua veia e é particular. Submete-se à tortura e tenta o suicídio. Não fez direito... Desemboca num hospital e, de repente e finalmente, aparece a "sociedade" que o instala num leito. Vira o herói moderno convertido pela própria multidão que o condenou. Ludovico passa a ser questionado enquanto "tratamento de recuperação" e põe em risco o establishment. Em troca de uma bela "aposentadoria" arranjada pelo ministro conservador, Alex apóia a eleição daqueles que criaram Ludovico. Esta feita a história: Alex agora é parte boa da sociedade muito embora quase nada tenha funcionado em sua vida. Agora pode sonhar com a nona de Beethoven e participar novamente de orgias sob o olhar sereno do cavaleiros vitorianos. 
Tudo neste filme parece surreal, mas definitivamente não é. Depois de mais de 40 anos de sua estréia, Kubrick continuar a jogar na nossa cara que a fé naquilo que chamamos de civilização é apenas uma quimera. Como nos ensinou Nietzsche "a fé é querer ignorar tudo aquilo que sabemos ser verdade." Estamos a falar da violência das ruas, mas também daquele escudo que não nos protege e, ao contrário, instalou a violência da hipermodernidade, do excesso de consumo e bebida, do hedonismo desmedido, da arte coisificada, das transações interesseiras e  das relações desinteressadas entre os homens. Eis a violência travestida.
Laranja Mecânica (A ClockWork Orange, 1971, com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates eWarren Clark, dirigido, produzido e roteirizado por Stanley Kubrick) é mais que um espelho atual de onde chegamos. É um libelo pela liberdade, um alerta para o nosso futuro e um filme que tenta nos converter sem que tenhamos de apelar para o Ludovico de nosso cotidiano. 

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