segunda-feira, 22 de agosto de 2011

"Árvore da Vida": Um Filme Corajoso Para Um Mundo Cético

Sócrates, na palavras de Platão (em sua obra Fédon), pregava que "os apetites humanos, a vida corporal, obriga o homem a ver a vida  através da paredes de uma prisão." Há nesta afirmação algo além dos valores filosóficos elevados. Há algo de ascético no pensador grego. Como nos belos versos de San Juan de la Cruz em suas Poesias:

Eu não soube onde entrava
Porém, quando ali me vi,
Sem saber onde estava,
Grandes coisas entendi;
Não direi o que senti,
Que me quedei não sabendo,
Toda a ciência transcendendo

No filme Árvore da Vida (Tree of Life, EUA,2011, dirigido por Terrence Malick, com Brad Pitt, Sean Penn e Jessica Chastain) o diretor escolhe por epígrafe as palavras do Velho Testamento do Livro de Jó (38,4-7): 

“Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre o que estão fundadas as suas bases, ou quem assentou a sua pedra angular? Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?”

Se juntarmos o surpreendente "ascetismo" de Sócrates, com a mística de San Juan de la Cruz a esta epígrafe do filme abrilhantado por Pitt e Penn, podemos ter longos dias de discussão sobre a transcendência humana, o sentido da vida e a nossa própria humanidade. Como se vê um tema profundo, complexo, polêmico, filosófico e, ao mesmo tempo, parte de muitas conversas ao longo desta vida não tão longa.
Neste contexto, o primeiro aplauso para o maravilhoso filme de Terrence Malick (que também assina o roteiro) é a sua coragem, enquanto cineasta, em lançar este tema na composição de um filme. Missão nada fácil de vez que, ao menor passo em falso, o roteiro e toda a montagem podem cair em valas que comportam desde os filmes/livros de autoajuda até os dramalhões que comovem, mas que tantas vezes ressentem-se da ausência de conteúdo. Em tempos onde o debate intelectual permanece como que interditado, nada mais corajoso quando vemos um diretor remexer com tema tão polêmico: a vida, a morte, os valores e a transcendência. E muito mais.
Este é um filme que é uma espécie de "rosa dos ventos" e pode nos tocar de diversos modos, muito embora, o diretor com extrema competência não nos deixe fugir ao "fio condutor" central do roteiro. Uma estória singela de um casal que perde o filho, sem que fatos sobre este evento sejam contados pelo roteiro, consegue extravasar uma coleção de reflexões sobre a nossa humanidade. O casal (formado por Brad Pitt e pela excelente Jessica Chaistain) consegue incorporar, cada um por si, a contradição entre o singular e particular sofrimento (possível e provável) da vida e o sucesso que enxergamos no outro. Matéria e espírito, digamos assim, se entrelaçam e se separam por meio de uma "estória" composta por imagens galácticas, visualmente indefiníveis, e o cenário simples e cativante do interior dos EUA nos anos 1950. Uma família e seus filhos preenchem a nossa humanidade. O sofrimento e a sua superação preenchem o nosso espírito. O pai (Pitt) representa a construção social, moral, econômica, etc. que fazemos ao longo de nossas vidas, sem que de facto se possa construir minimamente que seja, um objetivo, um fim, um horizonte para tal edificação. De outro lado, a mãe (Chaistain), releva junto aos filhos a primazia do amor, da doçura, da leveza espiritual, da bondade, da vigilância desinteressada. Não há uma luta "glauberiana" entre o bem e o mal, o demônio e o divino. O que há é a interação da realidade mais mundana de quem assiste o filme e a possibilidade de redenção que, em princípio, nos caberia. O filme opera no âmbito da subjetividade, da leitura individual, cabível na vestimenta pessoal de cada um. Pode-se revirar o filme de cima abaixo e, de lado a lado, extrair a visão que nos pareça cabível. Espíritas, judeus, crentes, descrentes e cristãos. Ascéticos e céticos.
Esta feição subjetiva do filme não isenta o diretor e roteirista. Acredito que a sua escolha é feita e é definitiva: a existência humana não é nem obra acabada e nem possui originalidade senão em Deus. Malick, a meu ver, não faz uma cruzada religiosa, mas coloca contornos bem claros às possibilidades de o homem ser apenas produto de seu meio ou de um evento "natural". Para ele, existe um big bang criativo que nos converte, às vezes serenamente e noutras explosivamente, em algo além do "barro provido de espírito" considerado por tantos pensadores. Uma escolha prá valer, suficiente para deixar rodas de pensamento propensos a longos debates. (Ou talvez tudo se converta nos 140 caracteres do twitter).
Por fim, algumas palavras sobre a estética do filme. A composição de belíssimas imagens (definidas e indefiníveis) com um cenário extremamente bem arranjado das "imagens reais" é um arranjo precioso, uma obra-prima. A música incidental (com destaque para Brahms) rima com a cadência da câmera e cria um ansiedade complicada de definir. Afinal, o "ritmo" do filme é aparentemente lento. Por detrás da sensação de que "nada acontece", tudo está acontecendo: a criação do mundo, a consolidação da vida, a abrangência dos limites geográficos, o caos da natureza e a racionalidade do homem. Diante de tanta coisa, a platéia muitas vezes fica tentada a sair correndo da sala de cinema, mas o filme prende o espectador na cadeira. De lá não sai, porque logo tudo pode "acontecer". Tudo muito lindo, poético, cheio de essência e sabor. Assim, poderemos escolher entre a paciência de Jó em seus pedidos a Deus, a "prisão" de Sócrates ou a transcendência de San Juan de la Cruz. Ou muito mais.    



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