A prisão já acalenta a mais acentuada das paixões que pode ser despertada quando nos deparamos com um crime bárbaro: a necessidade de que haja vingança aquele que cometeu o delito. Refiro-me ao pathos que nos move como se justiceiros fôssemos, sem que nos importemos muito a fundo se se praticou a Justiça enquanto valor e virtude social da criação humana.
Escrevo, já com certa distância do momento, sobre o julgamento do casal Nardoni. Há nos eventos que levaram à morte daquela menina Isabella algo de diabólico. Quem poderia negar? Uma menininha despenca andares abaixo por força de outrem e morre, devastada em seu primeiro momento da idade. Eis a tragédia instalada.
Aí vem a comoção social, pois afinal estamos diante de um fato ainda mais assustador: seriam os pais os assassinos, um casal associado por um pacto que foi feito em minutos, pois afinal este foi formado entre o momento em que a criança foi esganada pela madrastra e os minutos seguintes quando se decide jogá-la daquela janela de apartamento. Fosse uma peça teatral, os fatos sairiam da pena brilhante de Nelson Rodrigues.
A cobertura da imprensa e a reclamação popular sobre o caso foram igualmente espetaculares. A lide entre um procurador, representante da Lei, e aqueles jovens pais foi resolvida por uma sentença que jogou os réus no cárcere por alguns (longos?) anos e de alguma forma lhes destruiu as próprias vidas. A coisa toda terminou como em jogos de futebol: a multidão vaiava não somente os criminosos condenados, mas, até mesmo, os advogados que os representavam. A razão pelos lados do Fórum de Santana em São Paulo não era abundante. O que valia mesmo era a paixão. As falas dos procurador da Lei Francisco Cembranelli eram como jogadas de Garrincha, a alegria do povo.
Fazer justiça é algo complexo. É quase impossível que alguém consiga se aproximar demasiadamente dos fatos reais. A verdade é sempre obscura, às vezes mais clara, às vezes mais turva. Ainda mais difícil é nos aproximarmos dos réus o que permitiria conhecimento mais profundo, conseguir entendê-los e vê-los mais além do protagonismo mais importante e trágico de suas vidas. Afinal, é quase certo que tenham cometido o crime. Todavia, é preciso que se reconheça que isto não os torna essencialmente assassinos. Anna Jatobá e Alexandre Nardoni não me parecem assassinos, muito embora tenham matado aquela inocente. Espero que estejam me entendendo...
O mais incrível para mim foi a turbação espalhada nos arredores daquele fórum. Que sobravam torcedores a pulular e gritar não resta dúvida. Importa a estes a Justiça enquanto um dos valores supremos de uma sociedade? Tenho dúvidas.
A sociedade brasileira é uma das mais violentas do mundo. Basta que nos defrontemos com os números de crimes e assassinatos para nos certificarmos de que nós, enquanto Nação e Estado, nos aproximamos muito da imagem de criminosos. Somos Narcisos às avessas. Eis um fato, não um mito. Também parece-me verdadeiro que somos uma sociedade carente de Justiça: nossas prisões nos envergonham, o sistema judicial está afogado e é lento, a repressão policial é de péssima qualidade e a injustiça social é, sem dúvida, a moldura mais ilustrativa de todo este mecanismo defeituoso.
É possível e legítimo que se faça várias análises e se teça variadas retóricas sobre o julgamento de Anna Jatobá e Alexandre Nardoni. Faço meu o direito de também fazê-las.
Permito-me suspeitar da severidade das penas aplicadas. Refiro-me não a boa-fé dos envolvidos no processo de julgamento, mas a inegável influência que aquela multidão apaixonada teve sobre o sentenciamento dos réus.
Acredito que o casal assumiu a representação de algo muito maior do que os próprios fatos daquele crime: eles encarnaram a demanda por Justiça de uma multidão que se identificou extraordinariamente com o caso e desejou extrair daquele júri penas além do critério da proporcionalidade. O caso Nardoni não é um paradigma de justiça. É apenas um trágico caso de homicídio. Bastaria-nos verificar o que corre nas varas criminais de todo o país. Todavia, a morte de Isabella foi tratada sob a influência de um "espírito social" que reclama Justiça a um custo que não necessariamente obedece aos preceitos de proporcionalidade das penas e de respeito ao condenado. Os Nardonis foram à época de seus julgamentos o amálgama da carência mais profunda de Justiça. O perigo é que esta pode vir descaracterizada e esfarrapada pelas paixões de cidadãos que se tornam "torcedores" às portas dos tribunais.
O livro Dos Delitos e Das Penas de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-1794) foi um grito estrondoso no Iluminismo a favor da Justiça e da proporcionalidade das penas. Diante da crueldade de então, ele soube criar uma rebelião construtiva em favor de todos, inclusive daqueles que cometeram crimes. Para ele "o homem deve ser sempre tratado como pessoa, nunca como coisa, objeto". Ou seja, o homem é sempre fim e não meio. Esta humanização do sistema judicial não é apenas necessário. Ela deve ser um caminho em prol da solidariedade e da ética. Fazer justiça, sempre! Particularizá-la, jamais!
O Judiciário já exerceu o seu papel punitivo e a multidão pareceu estar satisfeita. Todavia, parece-me legítimo que nos perguntemos à luz da razão serena e justa: os Nardonis não foram de muitas formas "coisificados" pela mídia e pelas multidões? Mais adiante: eles não se tornaram "meios" de justiça (demandados por um povo sem Justiça) e não o seu fim? A sentença não pode ter sido influenciada por estes fatos questionados?
Nem sempre a questão é sabermos quem matou. Mesmo que saibamos quem matou Isabella é preciso averiguar se fizemos justiça com proporcionalidade sob os raios da razão.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
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