Comemoraremos dia 21 de abril o centenário da morte de Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, certamente um dos maiores escritores norte-americanos. Ou para ilustrar melhor o seu papel histórico, uso uma frase cunhada por ele mesmo: I am not an American, but I am the American.
Mark Twain nasceu em 30 de novembro de 1835 na Flórida e morreu a 21 de abril de 1910. Em ambas as datas o cometa Halley pôde ser visto a olho nu na terra. Uma das razões justas para rememorá-lo é o fato do próprio Twain sempre ter cultivado a expectativa de que fosse relembrado ao longo do tempo. Sua auto-biografia, publicação póstuma de 1924 teve redobrada atenção do escritor em seus últimos anos de vida.
Vários livros foram lançados para comemorar o centenário da morte do escritor. Muitos aspectos são abordados neste compêndios biográficos (a relação de sua obra com sua vida, suas viagens, seus amores, sua vida mais íntima). Todavia, há um traço comum sempre que nos defrontamos com um escrito sobre Twain: foi ele o fundador da moderna literatura norte-americana e, assim, perpetrou a alma dos mais importantes escritores modernos norte-americanos. O próprio Ernest Hemingway relevou este papel e reconhece que inspirou-se na obra de Twain.
Certamente, este caráter fundador da obra de Twain deriva de seu profundo repertório sobre o arquétipo do Homo Americanus conforme cita o ensaísta norte-americano H.L. Mencken. De muitas formas, Mark Twain acreditou no American Dream, na possibilidade de que um simples mendigo pudesse se tornar um príncipe, apesar de nunca ter alcançado a fortuna material. A força literária desta idéia reforçou em vários momentos a ideologia política sobre o tema. Quase todos os presidentes norte-americanos do século XX utilizaram citações e o próprio espírito de Twain para dar moldura a seus discursos sobre a gênese do povo americano. De Theodore Roosevelt a Barack Obama. Interessante notar que a crença de Twain no espírito americano se revelou a despeito de todas as dificuldades que vivenciou na sua infância após a morte de seu pai o qual deixou elevadas dívidas. Este espírito que marcou a sua trajetória literária não sucumbiu à realidade factual de sua própria família. Ao contrário, forjou a personalidade de sua realidade e ficção.
Do ângulo estritamente literário, não deixa de ser muito notável que não foram muitos livros do autor que transbordaram este espírito americano vanguardista e crente no futuro, muito embora outros tenham tratado de estórias e histórias sob a mesma temática. Basicamente, foram dois: The Adventures of Tom Sawyer e Adventures of Huckleberry Finn. O grande Charles Dickens, apesar de sua imensa obra marcada pelo espírito do capitalismo inglês, não conseguiu trilhar o caminho que levou Twain a inaugurar uma nova era literária. Ao contrário, não há nenhum crítico literário que eleve Dickens a este patamar. Twain é e tido quase de forma unânime como portador deste título de "fundador".
No centenário deste gigante, gostaria de ressaltar dois aspectos marcantes em sua obra e que, nos dias atuais, tornam a sua leitura tão necessária quanto crítica: o seu humor e a sua reflexão despreocupada com as conseqüências aparentes que pudessem provocar.
No que se refere ao seu "humor" o que se vê em seus principais livros não tem o objetivo de arrancar risadas de seus leitores, mas utilizar uma linguagem coloquial e engraçada para tratar dos fatos. Como bem disse Ernest Hemingway quando recebeu o seu Prêmio Nobel em 1954, "Mark Twain não foi um autor cômico, mas um verdadeiro humorista". Adiante em seu discurso de aceitação do Nobel, Hemingway ressalta que dificilmente Twain lograria o prêmio da Academia Sueca dada esta característica a qual não é tão apreciada pelos literatos e os críticos. As reflexões consideradas mais profundas dos diversos grandes escritores sempre foram dissociadas da mescla de humor, realidade e ficção, muito embora em Twain este estilo tenha servido largamente para a consolidação de seus personagens como tipos notáveis de seu tempo. Twain foi, como Charles Chaplin no cinema, um observador e crítico voraz do imperialismo, da discriminação e da realidade contraditória da sociedade vigente em seu tempo. De maneira coloquial, ele soube extrair o melhor "estranhamento literário", necessário para que emergisse o significado real de seus relatos. Ao lê-lo, respira-se o exato espírito no qual estão mergulhados seus personagens. O seu maior feito estilístico é o próprio humor contido nas linhas de seus livros.
De outro lado, os escritos de Mark Twain eram recheados de expressões particulares, de uma aparente vulgaridade que até hoje motivam correntes que pregam o seu banimento das leituras obrigatórias no sistema de ensino norte-americano. Ora, esta matiz enraizada no "popular" é sinal vigoroso de seu vanguardismo. Os "politicamente corretos" julgam-na como discriminatória. Coitados, não sabem do que estão a falar, pois a "correção política" na maioria das vezes está ligada a um superficialismo pouco analítico e incapaz de penetrar na essência dos signos literários. Para além da lingaugem, temos a "mensagem".
A irreverência de Twain faz falta nos dias atuais. Refiro-me a irreverência que vai além da aparente vulgaridade, mas aquela que é capaz de traduzir por meio da "linguagem popular" e "esculachada" a realidade social mais profunda e injusta. No mundo de hoje, os intelectuais perderam esta capacidade e submergiram nas facilidades do lugar-comum, da ideologia fabricada e nas ligações com os interesses mais imediatos de seu público ou patrocinadores.
Neste centenário de Samuel Langhorne Clemens, o Mark Twain, vale a pena lê-lo e aprender mais além do que ele escreve. A irreverência que inaugurou uma nova época literária na América pode servir de exemplo neste país abaixo do Equador.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
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