segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Solista: Elegante Não Tropeça no Simplismo

Na sociedade contemporânea é possível e está se tornando cada vez mais provável que se banalize aquilo que se chamava "norma culta", a língua, as artes, a literatura e assim vai. Uma coisa é a popularização e o maior acesso de todas as classes sociais aquilo que há de melhor na produção cultural. Outra coisa é a crença na capacidade de que quase tudo que emerge "do povo" possa se tornar parte do itinerário da arte. Não pode. Ademais, é preciso que se entenda que a reflexão sobre a problemática social, política e econômica não pode ser entendida como algo óbvio ou banal. O mundo é, por definição, complexo e o pensamento que surge desta realidade requer sofisticação na análise para que se possa revelar respostas mais aproximadas à verdade.
O filme "O Solista" (The Solist, 2009, EUA, França e Reino Unido, direção de Joe Wright, com Robert Downey Jr, Jamie Foxx e Catherine Keener) nos conta a história de Nathaniel Ayers (Jamie Foxx), um mendigo que percorre os logradouros de Los Angeles tocando música clássica em instrumentos de cordas. Ele é um ex-aluno da respeitadíssima The Julliard School, localizada no Lincoln Center em Nova York, e que forma os melhores artistas da América. Ayers é "reconhecido" em meio a um túnel pelo jornalista Steve Lopez (Robert Downey Jr.) do Los Angeles Times. Ao escutar as elegantes notas emitidas pelo mendigo, Lopez passa a se interessar pela sua história e descobre suas origens, bem como o brilho de seu talento. A partir destas constatações expõe a história a seus numerosos leitores que reconhecem naquele mendigo um pouco da sociedade em que estão situados. 
Ocorre que Ayers sofre de esquizofrenia o que lhe impede de conviver socialmente, bem como foi a causa para o seu auto-abandono e seu trágico destino.
Temos neste filme a colisão das imensas possibilidades de um talentoso artista e a as suas impossibilidades sociais, psicológicas e também econômicas. Tudo isto sem nenhum populismo. O talento musical de Nathaniel Ayers é estrondoso e a sua paixão é pelo melhor de Ludwig van Beethoven, suas sonatas e concertos. Não há sob o manto da esquizofrenia de Ayers nenhuma concessão quando o assunto é música: ele ama o que há de melhor e persiste encantado pelas notas que exalam o sabor da vida e obra do compositor alemão.
Lopez quer ajudá-lo e neste tarefa se defronta com a magnitude do problema social de Los Angeles. Há naquela cidade uma multidão ao redor de cem mil pessoas de desamparados e abandonados. Pessoas que estão submetidas, no centro do maior capitalismo mundial, à humilhação, ao completo desamparado, ao consumo desenfreado de drogas e à indiferença da classe política. (Isto lembra outro lugar?).
É certo que não há salvação para a esquizofrenia de Ayers. Tão certo quanto o fato de que seu talento não pode ser removido. O mais sugestivo deste filme é que não há nenhum tropeço do diretor para a análise "populista" da questão. Todo o tema é exposto com sinceridade de propósito, mas nada resvala para a simplificação do contexto do personagem e da realidade que o cerca. Ao contrário, o sofrimento é passado por meio da lente cuidadosa de Wright, o diretor, sem concessões a nada que seja piegas ou que contenha o mau hálito do simplismo. Nesta história não é o "povo" que contém sabedoria, um jargão político tão utilizado. É Ayers, um esquizofrênico pobre que caiu nas traças do mundo, que carrega o seu talento que, por sua vez, é reconhecido e divulgado. Não há da parte do jornalista nenhuma vantagem extraída de seu achado: ele se concentra na realidade factual, sem contornos ou palavras que a neguem, mas sem resvalar nas facilidades da simples denúncia.
Estamos diante de um filme sublime, elegante, bem contado e excepcionalmente bem desempenhado pela dupla Foxx-Downey Jr. Quando terminamos de ver o filme sabemos que o mundo pode ser mau, mas ainda há o som da beleza da arte culta que nos salva de nossa própria esquizofrenia.

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