sexta-feira, 30 de abril de 2010

Cidadão Kane: O Retrato do Poder

Ao assistir novamente Cidadão Kane  lembrei-me das últimas linhas de Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray que narram o assassinato de Basil Hallward e a destruição da tela que tanto atormentava Gray. No último parágrafo há uma lapidada sentença de Wilde: "No chão jazia o cadáver de um homem em traje a rigor com uma faca cravada no peito. Ele estava lívido, enrugado e repugnante. Só pelos anéis é que os seus criados conseguiram identificá-lo."
Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941, dirigido por Orson Wells, com Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Everett Sloane e outros) foi a faca empunhada por William Randolph Hearst  que matou a carreira de Orson Wells. Até o final de sua vida ele não conseguiu mais fazer nenhum filme significativo. Suas últimas "obras" foram comerciais de TV sugerindo o consumo de bebidas que jamais ele tomaria. Tinha 24 anos quando concluiu Cidadão Kane - foi o seu auge.
William R. Hearst (1863-1951), um dos maiores magnatas da imprensa norte-americana e mundial até os anos 40, destruiu a carreira de Wells, mas não conseguiu, como Dorian Gray, destruir a "tela" que tanto atormentou.
Cidadão Kane é uma obra que se projeta até hoje como uma magnífica interpretação cinematográfica das entranhas do poder, da manipulação da opinião pública, da megalomania frenética dos poderosos e da ausência de escrúpulos e limites éticos nas relações pessoais, sociais e políticas. Isto mesmo: tudo isto.
É tarefa hercúlea fazer restrições de qualquer natureza ao filme de Orson Wells. Ele não é a perfeição porquanto esta não existe. Todavia, a equação que Wells montou e decifrou para montar o filme é genial. 
O filme conta a trajetória de Charles Foster Kane, herdeiro de uma imensa fortuna, mas que prefere iniciar a sua carreira profissional a partir de um pequeno jornal. Desde sempre, Foster sabia que era mais importante controlar as mentes do que os meios de produção mais aparentes, suas minas, fábricas e imóveis. Kane é o retrato de Hearst, mas ao escolher esta história, Wells sabia que estava indo além dos limites biográficos daquele poderoso magnata. O poder é indescritível, mas as suas manifestações e mecanismos são passíveis de serem conhecidos. Maquiavel já tinha nos legado este ensinamento, não é mesmo?
O roteiro, do qual o próprio diretor é co-autor juntamente com Herman J. Mankiewicz, foi inovador ao selecionar um fato específico e desconhecido (a descoberta do significado da última palavra pronunciada pelo protagonista antes de sua morte "Rosebud") para encaminhar toda a estória. Tudo começa com a morte do personagem principal, também estrelado por Wells. A partir daí segue-se uma longa e detalhada descrição dos fatos da vida daquele poderoso chefão da mídia. Wells vai a fundo e escolheu meticulosamente os fatos e as cenas que melhor instruíam o público na direção do que desejava transmitir.
É possível achar defeitos em Cidadão Kane, mas esta é tarefa hercúlea: as tomadas das câmeras são excepcionais e inovadoras, a luz e os cenários são quase sempre perfeitos e a atuação do elenco - sem celebridades, exceto o próprio Orson Wells - é exemplar. Sente-se em todos os cantos da tela o toque genial de Wells, o menino de 24 anos. No filme, há uma mescla de teatralidade com uma calculada artificialidade, ou seja, ao assistir o filme, nota-se que Wells não se preocupou em ser realista do ponto de vista cênico. Ao contrário. Para ele o que era importante era criar o cenário, o diálogo , a fotografia, a música e as tomadas, como elementos "necessários" para que a "idéia" do filme chegasse não somente aos olhos dos espectadores, mas também às suas mentes. O resultado é tão explosivo quanto foi a raiva de William R. Hearst ao ver as suas tripas expostas pelo jovem diretor.
O tempo para Cidadão Kane continua a passar muito lentamente. O argumento do filme é não somente eficaz para a sua execução. Os seus efeitos permanecem no tempo: o poder e a sua manipulação pela política e pela mídia continua a ser assunto prioritário nesta era em que a democracia parece vazia de valores e com suas estruturas corrompidas, arcaicas e sem a representatividade imaginada pelos gregos.
Cidadão Kane ganhou apenas um Oscar (o de melhor roteiro), muito embora tivesse sido indicado para oito  (ator,direção de arte, fotografia, montagem, trilha sonora, filme e som)  - Orson Wells concorria a quatro. Hollywood estava comprometida com Hearst e seduzida pelo seu poder. No dia da entrega do maior prêmio do cinema americano vaiou o filme a cada vez em que ele foi mencionado. O filme apenas se consagrou aos final dos anos 50 e início dos 60. 
Orson Wells morreu ao 70 anos (em 1985) amargurado com a idéia de que sua carreira tivesse "se encerrado" aos 24 ou 25 anos. Lamentou em uma entrevista concedida em 1982 que tivesse continuado na indústria cinematográfica depois de Kane. Disse ele que "nesta indústria se gasta 2% do tempo fazendo filmes e 98% fazendo politicagem". Ele sentiu nas suas entranhas obesas o peso do poder relatado em seu brilhante filme. Mostrou as entranhas do poder, mas possivelmente não as tenha decifrado por completo. 

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