domingo, 25 de abril de 2010

Lembrando o Centenário de Noel Rosa e Adoniran Barbosa

Escreve Eric J. Hobsbawn em A História Social do Jazz (The Jazz Scena, 1989): "(...) a essência do jazz é não ser uma música padronizada ou produzida em série (embora a música popular influenciada pelo jazz o seja) e, em segundo lugar, o jazz tem muito pouco a ver com a indústria moderna." Acredito que esta observação sobre o mais importante estilo musical da América seja possível de ser enquadrado à perfeição em relação ao samba no Brasil.
Muito embora o samba tenha evidente nascente africana, a sua batida e ritmo estão mergulhados em mistérios: de uma dança ritualística africana passou a integrar a linguagem popular por meio da difusão originada nas entranhas da escravidão da era do açúcar. Da favela do morro desceu à cidade e invadiu o Rio de Janeiro, e daí, passou a ser o ritmo do Brasil. No mundo, inclusive.
De outro lado, temos de reconhecer que o samba desperta certos preconceitos entre as elites brasileiras. Narizes são torcidos e dedos mudam a estação de rádio quando toca o ritmo mais genuíno do país. Mas, o samba vive e continua a sem poder ser contido seriado ou padronizado. Tal qual o jazz, o samba desfila uma capacidade extraordinária de manter sua raiz e ao mesmo tempo transmitir seus genes por diversos estilos - deita raízes. O samba é o nosso jazz.
Foi exatamente esta a sensação que recuperei na mente e na alma ao assistir ontem (24/04) a apresentação da Orquestra Jazz Sinfônica, regida pelo maestro João Maurício Galindo tendo como solista a excepcional cantora Fabiana Cozza. Era um concerto que comemorava o centenário de nascimento de nada menos Noel Rosa e Adoniran Barbosa.

Adoniran é daqueles mistérios brasileiros. De uma presumida malandragem exala uma poética popular, um cantarolar diferente que mistura samba e certos vestígios "italianados" da Paulicéia Desvairada. Interessante cantar Adoniran Barbosa (cujo nome verdadeiro era João Rubinato): entre os versos podemos destacar seu inconfundível humor e ao mesmo tempo uma lírica sofisticada. Vejamos em Bom Dia Tristeza:


"Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar"



Ou ainda em Carolina:


"Ela escreveu um livro
Sobre a vida de um cortiço
O que ela escreveu
Tá causando reboliço
Carolina é um sucesso
Vão levá-la pra cidade
Até querem que ela faça
Conferência na Argentina."


Eis a tristeza que se assenta numa mesa de bar e uma Carolina que abandona o morro, afinal o seu sucesso é o fim de uma "estação da vida". Tudo respira humor e afaga o lirismo daquilo que se perde em meio à turbulenta vida de um favelado ou maloqueiro. Adoniran é o gênio que  dispensa o seu olhar à realidade e desta traga o que há de mais óbvio numa forma inovadora. É o samba que lhe permite isto.
Noel Rosa é certamente, ao lado de Chico Buarque de Holanda, o maior letrista da música popular brasileira. Assim como Nelson Rodrigues fez na literatura e na arte dramática, Noel Rosa soube captar o espírito mais provinciano, malandro e eufórico do Rio de Janeiro. Ele foi tão a fundo nesta missão que suas músicas se tornaram transcendentais: canta-se até hoje suas belas e bem acabadas letras. Noel soma, por assim dizer, a expressão mais popular com as redondilhas mais especiais. Noel Rosa é um gênio que espanta qualquer discussão que não parta desta premissa. São mais de 300 músicas em pouco mais de sete anos de vida artística. O boêmio esteve aqui de passagem (morreu aos 26 anos), parece que tinha por única missão deixar o melhor acervo do samba nacional. Ele é a prova mais viva de que a assertiva de Hobsbawn cabe como uma luva no samba. Vejamos em Minha Viola a sofisticação da linguagem e a transmissão exata da idéia que persegue, além de um humor inconfundível:

"Eu tive um sogro cansado dos regabofe
Que procurou o Voronoff, doutô muito creditado
E andam dizendo que o enxerto foi de gato
Pois ele pula de quatro miando pelos telhado
Adonde eu moro tem o Bloco dos Filante
Que quase que a todo instante um cigarro vem filá
E os danado vem bancando inteligente
Diz que tão com dor de dente
Que o cigarro faz passá."

Em Mentiras de Mulher Noel Rosa consegue ao mesmo tempo ser o autor da descrição e o seu partícipe mais ativo (da própria idéia). É talvez a sua melhor marca e de onde sempre partiu para refinar seu repertório. Vejamos:

"Esta mulher jamais se cansa,
De fazer trança,
Na mentira é um colosso,
Sua visita tão cacete,
Que escrevi no gabinete:
"Está fechado para almoço".

Este centenário duplo de Noel Rosa e Adoniran Barbosa (sobre a sua data de nascimento há dúvidas) foi magnificamente bem lembrado pela Orquestra Jazz Sinfônica e pela paulista Fabiana Cozza. Uma pena mesmo é que esta lembrança seja modesta frente a importância destes dois para a música popular brasileira e para o samba. 
Seria uma benção para o país se se cantasse mais Noel e Adoniran. Olhando para o passado o país poderia construir um futuro mais promissor para a sua música popular. 


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