O grande mérito do filme A Rede Social (The Social Network, EUA, 2010, dirigido por David Fincher, com Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Tiberlake, Joseph Mazzello) é o fato de que não há preocupações de posicionar o Facebook como um "paradigma político-social", nem mesmo como uma "superação cultural". De fato, a coisa toda é fabulosa do ponto de vista tecnológico e de negócios. E pára aí. Todavia, quando nos transportamos para além do filme, vemos que não apenas a face do website é revelada. O corpo inteiro acaba desnudado...
Basta verificarmos o que está a ocorrer em relação ao WikiLeaks para percebermos que o Facebook não tem nenhum significado que ultrapasse de forma significativa os limites de sua própria utilidade. O WikiLeaks é um paradigma político, social e cultural. Dele decorre a exposição das vísceras do poder, da bestialidade das grandes potências, da leviandade da diplomacia e por aí vai. Interessante que o idealizador do WikiLeaks utilizou-se da mídia tradicional (jornais, TVs, etc.) para projetar para o mundo como este de fato funciona nas mãos dos poderosos. Isto evidencia a junção momentânea entre o novo e o velho. Tal qual a burguesia e a nobreza nos tempos da Revolução Francesa.
Mark Zuckenberg, o fundador do Facebbok, é o genial partícipe do mundo dos negócios por meio de sua capacidade de ver a "utilidade" de um sistema que coletou a adesão de 500 milhões de pessoas. Além disso, soube fazer as maldades certas nos momentos certos. E dane-se qualquer escrúpulo. Certamente o WikiLeaks não conseguiria tanto, pois afinal, quem realmente se importa com o funcionamento das estruturas de poder? As pessoas trocam visões sobre o Poder pelo relacionamento virtual, incluindo o sexo e a vulgaridade. Até aí não há novidades: a política do panis et circenses é a marca registrada da manutenção da paz social ao longo dos tempos. Se antes eram os gladiadores e os cristãos engolidos pelos leões agora temos o Facebook e as suas feições pantagruélicas. Bem, muitos pensam diferente. (Não estou a me referir a "utilidade" que tem o website. Estou a refletir sobre os valores sociais que são atribuídos, inclusive por parte da intelligentsia, à rede social).
O filme é banal na minha visão. Não há nele nada que possa ser tão meritório para que já tenha arrecadado tantos prêmios e, obviamente, uma bela bilheteria que garante a Zuckenberg um perfil de mito moderno. A direção é competente, mas não é brilhante. O elenco é razoável e sabe fazer os trejeitos dos esterótipos propostos pelo autor do livro no qual se baseia o filme Bem Mezrich. É daqueles filmes que divide a avaliação do público como se este torcida fosse: os que adotam e "amam" o facebook acham o filme espetacular. Os outros acham que não há nada demais nele... Bem, vale a pena testar de que lado você fica.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Woody Allen Tenta Enganar. Mas, Não Consegue.
Há aqueles que julgam o cineasta Woody Allen um gênio do cinema. Nunca me incluí dentre estes. De fato, a sua filmografia inclui filmes muito bons, tais quais, Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar (1972), Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), Interiores (1978), Zelig (1983), A era do rádio (1987) e Vicky Cristina Barcelona (2008).
Se olharmos o conjunto de sua obra, concluiremos que em grande parte dela Allen se ocupa em trazer para a tela o cotidiano e refleti-lo de forma às vezes dramática e às vezes cômica dentro de uma moldura padrão. Ele, no geral, abusa da própria forma de ver o cinema, dando-lhe um ar próprio, mas por vezes chato e óbvio, para não dizer cansativo. Parece ter um conjunto de falas programado no seu computador e, de repente, o saca conforme a necessidade de cada cena de seus filmes. Neste sentido, ele parece como os improvisadores da commedia dell´arte do século XVI com as suas pantomimas. Na maioria de seus filmes, o enredo corre como uma improvisação no qual os autores seguem uma série de falas pré-programadas que podem ser utilizadas em variados espaços e tempos.
No que diz respeito à temática, Woody Allen apela sempre para a crítica deslavada dos valores sociais. Em seu lugar nada coloca. Deixa aquele vazio que todo mundo sabe que existe, que as vezes sentimos e por vezes conversamos a respeito. Quer ser Freud, mas acaba mesmo sendo Groucho Marx. Pouco existe em seus filmes de seus cineastas prediletos: Ingmar Bergman, Felini, De Sicca ou Godard ou Truffaut. Há um monte de gente que vê todos estes gênios (estes sim!) por detrás de Allen. Para mim não passa de ilusão de óptica para dizer o mínimo.
No seu último filme, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (2010, EUA, You Will Meet a Tall Dark Stranger, com Antonio Banderas, Josh Brolin, Freida Pinto, Naomi Watts e Gemma Jones,), Woody Allen não apenas abusou da velha fórmula como passa a sensação de tentar enganar a todos de uma só vez. O filme é pretensioso (a começar pela citação inicial de Shakespeare), tem uma história ridícula que não deveria inspirar o menor cuidado dramático, não tem ritmo, é mal repartido no que se refere ao correr das cenas e o velho jogo rápido da câmera acaba por jogar o seu velho recurso de imagem no lixo. O pior de tudo é ver o magnífico elenco tentando salvar cada cena. Fico imaginando se Allen os orientou em relação à execução do roteiro. Não deveria, pois não há o que salvar nos diálogos. Até as suas velhas piadas, conseguiram ficar mais velhas a despeito de arrancar algumas risadas do fundo da platéia. (Há quem se divirta sempre).
O melhor a fazer neste filme é ir embora antes, com a sensação de que o dinheiro do ingresso deveria ser reposto de forma instantânea.
Se olharmos o conjunto de sua obra, concluiremos que em grande parte dela Allen se ocupa em trazer para a tela o cotidiano e refleti-lo de forma às vezes dramática e às vezes cômica dentro de uma moldura padrão. Ele, no geral, abusa da própria forma de ver o cinema, dando-lhe um ar próprio, mas por vezes chato e óbvio, para não dizer cansativo. Parece ter um conjunto de falas programado no seu computador e, de repente, o saca conforme a necessidade de cada cena de seus filmes. Neste sentido, ele parece como os improvisadores da commedia dell´arte do século XVI com as suas pantomimas. Na maioria de seus filmes, o enredo corre como uma improvisação no qual os autores seguem uma série de falas pré-programadas que podem ser utilizadas em variados espaços e tempos.
No que diz respeito à temática, Woody Allen apela sempre para a crítica deslavada dos valores sociais. Em seu lugar nada coloca. Deixa aquele vazio que todo mundo sabe que existe, que as vezes sentimos e por vezes conversamos a respeito. Quer ser Freud, mas acaba mesmo sendo Groucho Marx. Pouco existe em seus filmes de seus cineastas prediletos: Ingmar Bergman, Felini, De Sicca ou Godard ou Truffaut. Há um monte de gente que vê todos estes gênios (estes sim!) por detrás de Allen. Para mim não passa de ilusão de óptica para dizer o mínimo.
No seu último filme, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (2010, EUA, You Will Meet a Tall Dark Stranger, com Antonio Banderas, Josh Brolin, Freida Pinto, Naomi Watts e Gemma Jones,), Woody Allen não apenas abusou da velha fórmula como passa a sensação de tentar enganar a todos de uma só vez. O filme é pretensioso (a começar pela citação inicial de Shakespeare), tem uma história ridícula que não deveria inspirar o menor cuidado dramático, não tem ritmo, é mal repartido no que se refere ao correr das cenas e o velho jogo rápido da câmera acaba por jogar o seu velho recurso de imagem no lixo. O pior de tudo é ver o magnífico elenco tentando salvar cada cena. Fico imaginando se Allen os orientou em relação à execução do roteiro. Não deveria, pois não há o que salvar nos diálogos. Até as suas velhas piadas, conseguiram ficar mais velhas a despeito de arrancar algumas risadas do fundo da platéia. (Há quem se divirta sempre).
O melhor a fazer neste filme é ir embora antes, com a sensação de que o dinheiro do ingresso deveria ser reposto de forma instantânea.
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
"José e Pilar": Um filme (não apenas) Sobre o Amor
Quando dizemos a outrem que assistimos a um documentário vem logo a pergunta: sobre o que ou quem era o documentário? Se fosse um filme de ficção a pergunta recairia sobre o desenrrolar do roteiro, os personagens, os atores, etc.
José e Pilar (2010,Brasil/Portugal, dirigido por Miguel Gonçalves Mendes) mostra a intimidade do casal José Saramago e Pilar del Rio, em suas viagens internacionais e, sobretudo, na Ilha de Lanzarote na Espanha onde o escritor português morou por longo período e ali morreu. O filme demorou três anos para ser concluído, entre a captação das imagens e diálogos e a correspondente edição. Foram mais de 200 horas de gravação.
Confesso que eu não saberia dizer exatamente sobre o que é o documentário. Digo isto de maneira bastante singela e sem a pretensão de desqualificar o filme. Ao contrário: há todo um frescor nesta história toda, uma intimidade bem retratada e sem esnobismos estéticos. O diretor do filme, Miguel Mendes, em entrevista ao jornalista Luiz Zanin do Estadão em junho deste ano, diz que o "este filme é sobre o amor que se estabeleceu entre José Saramago e Pilar Del Rio". Maria del Pilar del Rio Sánchez é a jornalista espanhola com quem José Saramago casou-se em 1988 e com ela permaneceu até a sua morte em junho deste ano. Bom, de fato há uma boa dose de amor na relação mostrada no filme entre José Saramago e a esposa dedicada. Todavia, parece-me que reduzir o filme a esta relação seria empobrecê-lo. Não é o caso.
O documentário não tem a menor pretensão de situar o autor em relação à sua obra criadora, apenas mostra a banalidade da vida de um Nobel em sua casa, em suas viagens e (também) com sua esposa. Ela sim protagoniza uma relação direta entre a sua obra (organizar a vida do escritor português) e a sua vida (a intimidade litarária,inteligente e cheia de opiniões). Frente à figura de Pilar, José não parece um vice-rei. Parece mais um súdito que contempla a vida imaginativa, enquanto Pilar coloca o cotidiano frente-a-frente com aquelas imensas lentes dos óculos de Saramago. O feijão e o sonho. É o que me parece.
De outro lado, há um momento literariamente interessante que é quando o escritor português inicia e termina (depois de uma demorada doença e convalescença) o livro "A Viagem do Elefante." Há poucas e boas cenas que retratam o ato sofredor, intenso e torturoso da criação literária. Não afirmaria que é o ponto alto do filme, mesmo porque não consigo identificar um ponto alto neste filme que conta uma história plana, mesmo que cheia de significados.
Quanto ao escritor, não há brilho propriamente nas imagens captadas. O que vi foram suas velhas obsessões com a morte, a insignificância do ser humano, com Deus e com Portugal. Saramago destila novas frases sobre estes temas, mas a temática já é por demais conhecida. Acho até mesmo que por detrás de suas opiniões há umas reticências de vaidade extraída de sua sabedoria. Sei lá! Foi o que me pareceu. Posso estar errado, é claro!
Em certo momento, fiquei comovido quando Saramago (que estava aqui no Brasil) diz que se pudesse pedir algo ele pediria tempo. O tempo necessário para continuar fazendo suas coisas e obras e, da mesma forma, para estar com Pilar. O tempo sempre foi uma obsessão para mim. Trato-o por meio de formas poéticas porquanto eu não consigo entendê-lo racionalmente. Para Saramago, o tempo parece fazer parte da insignificância do mundo e do homem. Para mim, o tempo me parece uma espécie de castigo de Deus, uma cerca de fazenda, para nos fazer relevante perante o mundo. Saramago diz que Homero não sobreviverá ao tempo. Eu digo que Homero apenas existiu porque o tempo assim permitiu. Mas, isto tudo é outra coisa. Não é o caso...
Voltemos ao filme. Ao contrário de muitas pessoas, especialmente as mais "cultas e privilegiadas", eu tenho particular atração pelas declarações de amor. Refiro-me não aquelas que estão contidas na literatura, em particular, ou nas artes, em geral. Digo daquelas em que as pessoas, famosas ou não, olham nos olhos das outras e declaram o seu amor. Considero este momento raro. Isto em função de sua banalização, diga-se. E é este exatamente o desafio dos amantes: puxar do fundo d´alma aquilo que dizem ser o Amor, sem cair no banal, no piegas ou no fingimento ocasional. De alguma forma indescritível, José e Pilar conseguem traduzir em uma declaração, silenciosa ou não, o amor que sentem um pelo outro. Isto é muito belo e vale a pena ver e sentir. Mesmo para aqueles que se julgam céticos como o escritor português. Por isto mesmo acho que Homero vive...
José e Pilar (2010,Brasil/Portugal, dirigido por Miguel Gonçalves Mendes) mostra a intimidade do casal José Saramago e Pilar del Rio, em suas viagens internacionais e, sobretudo, na Ilha de Lanzarote na Espanha onde o escritor português morou por longo período e ali morreu. O filme demorou três anos para ser concluído, entre a captação das imagens e diálogos e a correspondente edição. Foram mais de 200 horas de gravação.
Confesso que eu não saberia dizer exatamente sobre o que é o documentário. Digo isto de maneira bastante singela e sem a pretensão de desqualificar o filme. Ao contrário: há todo um frescor nesta história toda, uma intimidade bem retratada e sem esnobismos estéticos. O diretor do filme, Miguel Mendes, em entrevista ao jornalista Luiz Zanin do Estadão em junho deste ano, diz que o "este filme é sobre o amor que se estabeleceu entre José Saramago e Pilar Del Rio". Maria del Pilar del Rio Sánchez é a jornalista espanhola com quem José Saramago casou-se em 1988 e com ela permaneceu até a sua morte em junho deste ano. Bom, de fato há uma boa dose de amor na relação mostrada no filme entre José Saramago e a esposa dedicada. Todavia, parece-me que reduzir o filme a esta relação seria empobrecê-lo. Não é o caso.
O documentário não tem a menor pretensão de situar o autor em relação à sua obra criadora, apenas mostra a banalidade da vida de um Nobel em sua casa, em suas viagens e (também) com sua esposa. Ela sim protagoniza uma relação direta entre a sua obra (organizar a vida do escritor português) e a sua vida (a intimidade litarária,inteligente e cheia de opiniões). Frente à figura de Pilar, José não parece um vice-rei. Parece mais um súdito que contempla a vida imaginativa, enquanto Pilar coloca o cotidiano frente-a-frente com aquelas imensas lentes dos óculos de Saramago. O feijão e o sonho. É o que me parece.
De outro lado, há um momento literariamente interessante que é quando o escritor português inicia e termina (depois de uma demorada doença e convalescença) o livro "A Viagem do Elefante." Há poucas e boas cenas que retratam o ato sofredor, intenso e torturoso da criação literária. Não afirmaria que é o ponto alto do filme, mesmo porque não consigo identificar um ponto alto neste filme que conta uma história plana, mesmo que cheia de significados.
Quanto ao escritor, não há brilho propriamente nas imagens captadas. O que vi foram suas velhas obsessões com a morte, a insignificância do ser humano, com Deus e com Portugal. Saramago destila novas frases sobre estes temas, mas a temática já é por demais conhecida. Acho até mesmo que por detrás de suas opiniões há umas reticências de vaidade extraída de sua sabedoria. Sei lá! Foi o que me pareceu. Posso estar errado, é claro!
Em certo momento, fiquei comovido quando Saramago (que estava aqui no Brasil) diz que se pudesse pedir algo ele pediria tempo. O tempo necessário para continuar fazendo suas coisas e obras e, da mesma forma, para estar com Pilar. O tempo sempre foi uma obsessão para mim. Trato-o por meio de formas poéticas porquanto eu não consigo entendê-lo racionalmente. Para Saramago, o tempo parece fazer parte da insignificância do mundo e do homem. Para mim, o tempo me parece uma espécie de castigo de Deus, uma cerca de fazenda, para nos fazer relevante perante o mundo. Saramago diz que Homero não sobreviverá ao tempo. Eu digo que Homero apenas existiu porque o tempo assim permitiu. Mas, isto tudo é outra coisa. Não é o caso...
Voltemos ao filme. Ao contrário de muitas pessoas, especialmente as mais "cultas e privilegiadas", eu tenho particular atração pelas declarações de amor. Refiro-me não aquelas que estão contidas na literatura, em particular, ou nas artes, em geral. Digo daquelas em que as pessoas, famosas ou não, olham nos olhos das outras e declaram o seu amor. Considero este momento raro. Isto em função de sua banalização, diga-se. E é este exatamente o desafio dos amantes: puxar do fundo d´alma aquilo que dizem ser o Amor, sem cair no banal, no piegas ou no fingimento ocasional. De alguma forma indescritível, José e Pilar conseguem traduzir em uma declaração, silenciosa ou não, o amor que sentem um pelo outro. Isto é muito belo e vale a pena ver e sentir. Mesmo para aqueles que se julgam céticos como o escritor português. Por isto mesmo acho que Homero vive...
domingo, 14 de novembro de 2010
"Contos da Era Dourada" Trata de Uma Era Trágica.
Recentemente repassei trechos da magnífica biografia política de Josef Stálin, escrita pelo consagrado escritor marxista Isaac Deutscher,(1907-1967) que além de sua famosa obra sobre Stálin também biografou LéonTrotsky e fez reputados ensaios sobre o Império Soviético. Um trecho me chamou à atenção em especial. Fazia referência ao escritor Maxim Gorki (1868-1936), famoso escritor e revolucionário, companheiro de primeira hora de Lênin no seu projeto de instalação do regime comunista na Rússia. A certa altura, depois da ascensão de Stálin ao poder , Gorki passou a criticá-lo por meio de seu jornal Novaia Jizn. A resposta de Stalin foi feroz, vulgar e insultante. Em discurso perante seus correligionários afirmou literalmente:
"A revolução russa derrubou muitas autoridades. Seu poder se expressa, entre outras coisas, no fato de que não se dobra diante de "grandes nomes". A revolução recrutou-os a seu serviço ou reduziu-os a nada se não desejavam a aprender com ela." (O grifo é meu).
O filme romeno Contos da Era Dourada (2010, dirigido por cinco diretores romenos, Cristian Mungiu, Hanno Höfer, Constantin Popescu, Ioana Uricaru e Razvan Marculescu) trata exatamente da redução ao nada sobre o qual pregou Stalin. Os contos são uma criação que parece exótica sobre a realidade da Romênia nos anos 80 quando o país estava submetido à ditadura de Nicolae Ceausescu (1918-1989). O filme assume de forma irreverente a forma de comédia muito embora esteja a tratar da mais pura realidade social e política daquele feroz regime comunista.
Em meio às crises de desabastecimento, à falta de dinheiro e de oportunidade para os mais jovens, à ausência de satisfação mínima aos anseios individuais dos cidadãos e à crise moral que reveste os aparelhos do Estado, os diretores conseguem destilar um refinado espírito crítico cheio de humor e ironia. Uma missão que parece relativamente difícil, mas de fato não é. Afinal, o que se chamava de regime proletário não passa de uma combinação trágica e, ao mesmo tempo, cômica de uma realidade objetiva e incontestável. O lado cômico diz respeito às faces histrônicas e pretensiosas do Poder espalhado pelo território que ocupa. A face trágica diz respeito ao atolamento dos indivíduos pelo regime e a violência que se expressa no cotidiano mais singelo às transações políticas mais nefastas. Tudo sob o silêncio oculto e imperativo de um regime personalíssimo (tal qual no tempo de Stalin).
Ainda é tempo de se fazer uma reflexão sobre o desenvolvimento dos projetos daquilo que outrora se denominou de regimes revolucionários. Neste filme temos os feitos contados por meio de humorados contos cinematográficos. Todavia, há muito mais que ser falado. Os regimes comunistas nos provaram que a a Utopia do proletariado se descarrilou em ditaduras cruéis que escravizaram o povo e cultivaram e cultuaram as personalidades mais obscuras do século XX (Stalin, Mao liderando o ranking) juntamente com Hitler. No final das contas tivemos a destruição de velhas ordens por meio da barbárie e a instalação de regimes novos que foram a barbárie. Há ainda no mundo que encoste o seu pensamento na ilusão de que havia ali algo civilizatório na política e no desenvolvimento social. Nunca houve. Apenas o ovo da serpente brotou e trouxe as suas conseqüências mais horrendas. Estamos hoje livres para constatar isto, mas ainda não estamos livres daqueles que ainda acreditam nestas moléstias.
Os contos deste filme não são dourados e nem a era é dourada. Apenas o humor é nobre. Exatamente para tratar de aspectos e fatos sórdidos. Dura ironia.
"A revolução russa derrubou muitas autoridades. Seu poder se expressa, entre outras coisas, no fato de que não se dobra diante de "grandes nomes". A revolução recrutou-os a seu serviço ou reduziu-os a nada se não desejavam a aprender com ela." (O grifo é meu).
O filme romeno Contos da Era Dourada (2010, dirigido por cinco diretores romenos, Cristian Mungiu, Hanno Höfer, Constantin Popescu, Ioana Uricaru e Razvan Marculescu) trata exatamente da redução ao nada sobre o qual pregou Stalin. Os contos são uma criação que parece exótica sobre a realidade da Romênia nos anos 80 quando o país estava submetido à ditadura de Nicolae Ceausescu (1918-1989). O filme assume de forma irreverente a forma de comédia muito embora esteja a tratar da mais pura realidade social e política daquele feroz regime comunista.
Em meio às crises de desabastecimento, à falta de dinheiro e de oportunidade para os mais jovens, à ausência de satisfação mínima aos anseios individuais dos cidadãos e à crise moral que reveste os aparelhos do Estado, os diretores conseguem destilar um refinado espírito crítico cheio de humor e ironia. Uma missão que parece relativamente difícil, mas de fato não é. Afinal, o que se chamava de regime proletário não passa de uma combinação trágica e, ao mesmo tempo, cômica de uma realidade objetiva e incontestável. O lado cômico diz respeito às faces histrônicas e pretensiosas do Poder espalhado pelo território que ocupa. A face trágica diz respeito ao atolamento dos indivíduos pelo regime e a violência que se expressa no cotidiano mais singelo às transações políticas mais nefastas. Tudo sob o silêncio oculto e imperativo de um regime personalíssimo (tal qual no tempo de Stalin).
Ainda é tempo de se fazer uma reflexão sobre o desenvolvimento dos projetos daquilo que outrora se denominou de regimes revolucionários. Neste filme temos os feitos contados por meio de humorados contos cinematográficos. Todavia, há muito mais que ser falado. Os regimes comunistas nos provaram que a a Utopia do proletariado se descarrilou em ditaduras cruéis que escravizaram o povo e cultivaram e cultuaram as personalidades mais obscuras do século XX (Stalin, Mao liderando o ranking) juntamente com Hitler. No final das contas tivemos a destruição de velhas ordens por meio da barbárie e a instalação de regimes novos que foram a barbárie. Há ainda no mundo que encoste o seu pensamento na ilusão de que havia ali algo civilizatório na política e no desenvolvimento social. Nunca houve. Apenas o ovo da serpente brotou e trouxe as suas conseqüências mais horrendas. Estamos hoje livres para constatar isto, mas ainda não estamos livres daqueles que ainda acreditam nestas moléstias.
Os contos deste filme não são dourados e nem a era é dourada. Apenas o humor é nobre. Exatamente para tratar de aspectos e fatos sórdidos. Dura ironia.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
"Dois Irmãos": Um Filme Cheios de Sutiliezas
O cinema me parece uma das últimas resistências, senão a última, ao processo de "padronização" do pensamento ocidental. De fato, parece que a história acabou, mesmo que saibamos que esta afirmação é uma farsa. O pensamento, a reflexão, a introspecção na alma do homem, são formas nobres de trabalho. (Mas, quem deseja trabalhar?). Nele a mais-valia nada mais é do que aqueles saltos que damos para pensarmos na realidade e na sua correspondente transformação. Ok! Eu sei que estou fazendo uma pregação quixotesca quando olhamos a barbárie que cerca a humanidade, a falta de delicadeza, a ausência de espírito crítico e assim vai. Seria ótimo que alguns loucos (mesmo que poucos) se ocupassem das trincheiras da resistência à banalização fácil do pensamento.
Cinema, assim como literatura, é "estranhamento". Diante de uma realidade objetiva e banal se pode extrair transgressões que nos fazem pensar e ir além. A vida vale a pena por isto. Se se cai no vazio da existência, acabamos sabendo completamente os fatos (basta ir ao google), mas pouco sabemos dos fatos. Um pouco sutil, mas a vida é cheia de sutilezas. A bem da própria humanidade.
O diretor argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (Argentina, 2010, com Graziela Borges e Antonio Gasalla) consegue atingir o "estranhamento" dos fatos de forma delicada, inteligente e com uma ironia suave e aguda ao mesmo tempo. Este filme tem traços da nouvelle vague, não propriamente na temática amoral, mas na ausência de lineraridade entre os personagens e suas estórias. Trata de dois irmãos como reza o título. Ela é uma uma corretora de imóveis, sempre cercada de si mesma, sempre marcada pelo ceticismo e por uma ausência de intensidade. Tudo lhe parece óbvio e capaz de fornecer frutos que possam lhe satisfazer o próprio ego. A vida não tem sutilezas e nem a fortuna de ver além da própria existência "careta" e burguesa.
Já o irmão é revestido de sensibilidade, seja no tratamento carinhoso e generoso à mãe, seja na sua atividade de artesão. A cada passo que dá, ele extrai os temperos da vida, edifica além dos tijolos disponíveis e escassos. O que poderia se esperar de um aposentado? Ele nos prova que muita coisa, inclusive a capacidade de traduzir para si e para os outros os mais profundos significados da existência.
O filme não é um show e nada tem de pretencioso. Ao contrário: tem o ritmo de uma peça bem encadeada e que a cada cena faz o espectador se entregar a si mesmo. Um espécie de jogo de sedução. As impossibilidades da realidade humana vão se traduzindo em amplos salões que podem ser percorridos por nós mesmos.
Do choque de visões entre os dois irmãos nasce um questionamento raro no cinema, sobretudo naquele que é produzido nas periferias de Hollywood. Não é um jogo de Caim e Abel. Trata-se de um filme inacabado, de fato. O diretor não se preocupa com a paródia, mesmo que esta lhe seja útil. Há uma dialética nada cansativa onde as diferenças se entrelaçam e criam um novo momento. Em certo momento a peça grega Édipo Rei é utilizada com rara beleza, porquanto cria um novo e surpreendente momento, magnificamente encarnado pelo ator Antonio Gasalla. Ali, vemos que a memória e o esquecimento dos fatos se transporta para a própria vida.
Daniel Burman consegue fazer a sua parte e resistir á onda que dilacera a arte cinematográfica. Faz um filme sem chatices, mesmo que acabe por sobrar alguma chateação para aqueles que vêem a vida com a amargura e o niilismo projetados pela também excepcional atriz Graziela Borges.
O saber que provem do cinema é, ao mesmo tempo cognitivo, (conhecemos a realidade) e reflexivo (vamos à essência daquilo que vivemos). Nem sempre é assim, é claro. Somente para aqueles que sabem que existem sempre Dois Irmãos que nos perseguem em nós mesmos. Felizmente ou infelizmente sempre acabamos por ter de escolher um deles. Não dá para fugir. Mesmo que corramos o mundo todo...
Cinema, assim como literatura, é "estranhamento". Diante de uma realidade objetiva e banal se pode extrair transgressões que nos fazem pensar e ir além. A vida vale a pena por isto. Se se cai no vazio da existência, acabamos sabendo completamente os fatos (basta ir ao google), mas pouco sabemos dos fatos. Um pouco sutil, mas a vida é cheia de sutilezas. A bem da própria humanidade.
O diretor argentino Daniel Burman em Dois Irmãos (Argentina, 2010, com Graziela Borges e Antonio Gasalla) consegue atingir o "estranhamento" dos fatos de forma delicada, inteligente e com uma ironia suave e aguda ao mesmo tempo. Este filme tem traços da nouvelle vague, não propriamente na temática amoral, mas na ausência de lineraridade entre os personagens e suas estórias. Trata de dois irmãos como reza o título. Ela é uma uma corretora de imóveis, sempre cercada de si mesma, sempre marcada pelo ceticismo e por uma ausência de intensidade. Tudo lhe parece óbvio e capaz de fornecer frutos que possam lhe satisfazer o próprio ego. A vida não tem sutilezas e nem a fortuna de ver além da própria existência "careta" e burguesa.
Já o irmão é revestido de sensibilidade, seja no tratamento carinhoso e generoso à mãe, seja na sua atividade de artesão. A cada passo que dá, ele extrai os temperos da vida, edifica além dos tijolos disponíveis e escassos. O que poderia se esperar de um aposentado? Ele nos prova que muita coisa, inclusive a capacidade de traduzir para si e para os outros os mais profundos significados da existência.
O filme não é um show e nada tem de pretencioso. Ao contrário: tem o ritmo de uma peça bem encadeada e que a cada cena faz o espectador se entregar a si mesmo. Um espécie de jogo de sedução. As impossibilidades da realidade humana vão se traduzindo em amplos salões que podem ser percorridos por nós mesmos.
Do choque de visões entre os dois irmãos nasce um questionamento raro no cinema, sobretudo naquele que é produzido nas periferias de Hollywood. Não é um jogo de Caim e Abel. Trata-se de um filme inacabado, de fato. O diretor não se preocupa com a paródia, mesmo que esta lhe seja útil. Há uma dialética nada cansativa onde as diferenças se entrelaçam e criam um novo momento. Em certo momento a peça grega Édipo Rei é utilizada com rara beleza, porquanto cria um novo e surpreendente momento, magnificamente encarnado pelo ator Antonio Gasalla. Ali, vemos que a memória e o esquecimento dos fatos se transporta para a própria vida.
Daniel Burman consegue fazer a sua parte e resistir á onda que dilacera a arte cinematográfica. Faz um filme sem chatices, mesmo que acabe por sobrar alguma chateação para aqueles que vêem a vida com a amargura e o niilismo projetados pela também excepcional atriz Graziela Borges.
O saber que provem do cinema é, ao mesmo tempo cognitivo, (conhecemos a realidade) e reflexivo (vamos à essência daquilo que vivemos). Nem sempre é assim, é claro. Somente para aqueles que sabem que existem sempre Dois Irmãos que nos perseguem em nós mesmos. Felizmente ou infelizmente sempre acabamos por ter de escolher um deles. Não dá para fugir. Mesmo que corramos o mundo todo...
domingo, 24 de outubro de 2010
Os Dois Outonos do Momento
Nestes tempos de outono no hemisfério norte, veio a releitura de O Outono do Patriarca (Editora Record, tradução de Remy Gorga, Filho, 15ª edição, 2003). Neste texto de 1975 o Nobel Gabriel Garcia Marquez refaz o seu estilo realista-fantástico para colocar de novo o dedo na ferida social do homem, em especial o latino-americano. Trata-se de uma reflexão implacável sobre o poder, a corrupção, as práticas delirantes e a loucura que leva o homem a caminhar como um rei entre os destroços sócio-políticos da comunidade da qual ele próprio emerge. Ora, nada mais atual neste turno de eleições no Brasil quando a leitura dos jornais nos coloca dentro de uma bolha de vidro da qual não conseguimos discernir onde está a verdade dos fatos, mas, que de outro lado, sabemos que sejam quais forem os fatos, lá está intacta a verdade. Nua e crua.
Li este livro há cerca de dez anos. Resolvi relê-lo para verificar se conseguia escapar de certa desesperança que bate à porta quando Marquez escreve sobre a realidade latino-americana. Fiquei novamente estonteado pelo estilo belo e poético do escritor colombiano. Depois de ler As Travessuras da Menina Má do rival pessoal de Marquez, o também Nobel Mario Vargas Llosa, considero a hipótese de me debruçar por entre livros menos substanciosos. Pelo menos por algumas semanas. De ilusão também se vive, não é mesmo?
Também é outono em Nova York. Viver este outono é tarefa bem mais suave e romântica, mesmo que nos intervalos das andanças por Manhattan estejamos a carregar o livro e a lê-lo nos cafés mais charmosos do Soho. Nova York para mim é uma lição de paciência e perseverança, por entre uma tardia esperança nascida da capacidade do ser humano em se superar. Muito seduz e quase tudo nos conduz a terrenos arqueológicos do nosso interior. O jazz do Soho e do lendário Blue Note, o jantar dos pequeninos bistrôs dos arredores das avenidas com numeração mais baixa, os notáveis restaurantes gregos que tanto amo, os shows surpreendentes de velhos ícones e uma inesperada conversa com o ator Jeff Bridges. Nada melhor. Ademais botar nos ouvidos o recém-adquirido iphone e escutar Ella Fitzgerald, o velho Sinatra e Chet Baker, cada um no seu sedutor estilo, cantando ou tocando Autumm in New York. É tudo transbordante e magnífico. Podemos apreciar muito além das aparências do consumo desenfreado e dos friorentos cantos do Central Park. Sorte. Muita sorte. Estar vivo e sóbrio (nem sempre!) para sentir tudo isto. Meio renovado e meio moído. É a vida. Estes dois outonos preenchem a minha vida. Por aqui, fico esperando o verão e seu sol belo e quente. Com a benção de Deus.
Deixo aos amigos um poema que escrevi há dois anos, mas que faz parte de meu centenário interior. Era inverno. Um longo inverno que ainda não acabou.
A Grande Maçã
Se tens as cores e contornos da maçã
Se és uma pequena cidade azul
Ou, ainda, se és o cinza de teus edifícios
Pouco sei ou hei de saber.
Sinto-me possuído de minhas sensações e sentimentos neste mundaréu
Que preenchem uma pequena ilha, assuntada por um rio e um escondido mar
Não vejo a altura dos andares dos prédios por quanto estes despencam
Não vejo as bandeirolas de seus hotéis – são tantas!
Tudo sai dos múltiplos ventres de tuas avenidas e ruas
Todas tão simétricas quanto desigual é tua gente
Como esquecido, sinto-me às vezes em catacumbas.
Só escuto ecos como se estes resvalassem em gargantas
Não há sons em teus ventres, apenas murmúrios
Incompreensíveis, diga-se
Tudo a se derramar...
Até as pontes que pretensiosamente tentam ligar terra a tanta terra
Vãos que carecem de vida e sorrateiros protegem os desprotegidos
Gargântulas estão por todo lado
A consumir tudo ao redor
Sem piedade ou qualquer graça
Da desgraça também se alimenta
Pantagruel incomensuravelmente insaciável
Que draga gente
Que rumina variados vegetais e remédios
Gente, gente, gente e gente de toda raça, de toda terra
Cidade nua que se veste em cada esquina
De sabores confusos e olfatos dúbios
De fedores e esplendores
De longos corredores e museus nus e revestidos
Placas comemorativas e nomes, nomes, nomes, nomes
Quantos beneméricos pode ter uma cidade?
Quanto dinheiro pode ter um benemérito?
Quanta benemerência as carências de tanta gente merecem?
Tantas vias preenchidas de fumaça
Mulheres secas, mulheres cheias, mulheres negras e incolores
De seios pequeninos ou fartos a alimentar sonhos
E tão poucas crianças
Crianças pálidas de pálidos sorrisos
Por entre praças se entrelaçam com pouca mata
Ah a mata! Aquela mata central
Tal qual uma vulva invulgar
Infértil, mesmo que se propague por toda a cidade
De resto, aquela mata que justifica tanto cimento,
Tanto asfalto,
Tanto descaso.
Não há deuses por lá, mas há templos
Resvala certa espiritualidade cheia de esperanças e devaneios
Sem realizações, sem registros, sem livros sagrados e sem cemitérios
Tudo é desejo naquela cidade
Desejo do bem, da glória, da vitória, da saúde e do dinheiro
Tudo é desejo e algum sonho
Sonhar por entre céus sem horizontes
Nas suas lojas, nas suas bodegas, nas mesas de bares
E tudo jaz.
E tudo jazz
Com seus negros atléticos e frenéticos
Seus expectadores e esterótipos
A comida gorda que se esparrama por entre as mãos negras de negras serventes
Aquela batida metronômica, nove notas, nove horas
(Nove?) músicos
A música
De um povo sem nação, de uma terra sem governo e de uma nação sem língua
Jargões e mais jargões
Palavras e mais palavras
Sacudidas nas bocas cheias que expelem sabores confusos pelos trens e salões
É muito cheiro, é muito bafo, é muita saliva
E come, come e come
E bebe, bebe e bebe
E fala, fala e fala
Ninguém escuta
Japonês, tailandês, norueguês, português, chinês, francês, inglês
Clichês, clichês, clichês e clichês
Ideologias e mais ideologias
A justificar quase tudo, mesmo que não haja totalidade.
Tantas luzes, raios e trovões travestidos de canhões
Será a Cidade das Luzes?
Quanta filosofia em vão...
Existem refúgios em meio aquelas ruas e avenidas.
Tantos refugiados
Fugitivos daquela sensação evocada em cada esquina
De que há tantos lugares para ir
Melhor esperar
Por aquilo que não se sabe, não se vê e não se sente
Apenas existe
Furtivamente.
New York, Dezembro 2008
Li este livro há cerca de dez anos. Resolvi relê-lo para verificar se conseguia escapar de certa desesperança que bate à porta quando Marquez escreve sobre a realidade latino-americana. Fiquei novamente estonteado pelo estilo belo e poético do escritor colombiano. Depois de ler As Travessuras da Menina Má do rival pessoal de Marquez, o também Nobel Mario Vargas Llosa, considero a hipótese de me debruçar por entre livros menos substanciosos. Pelo menos por algumas semanas. De ilusão também se vive, não é mesmo?
Também é outono em Nova York. Viver este outono é tarefa bem mais suave e romântica, mesmo que nos intervalos das andanças por Manhattan estejamos a carregar o livro e a lê-lo nos cafés mais charmosos do Soho. Nova York para mim é uma lição de paciência e perseverança, por entre uma tardia esperança nascida da capacidade do ser humano em se superar. Muito seduz e quase tudo nos conduz a terrenos arqueológicos do nosso interior. O jazz do Soho e do lendário Blue Note, o jantar dos pequeninos bistrôs dos arredores das avenidas com numeração mais baixa, os notáveis restaurantes gregos que tanto amo, os shows surpreendentes de velhos ícones e uma inesperada conversa com o ator Jeff Bridges. Nada melhor. Ademais botar nos ouvidos o recém-adquirido iphone e escutar Ella Fitzgerald, o velho Sinatra e Chet Baker, cada um no seu sedutor estilo, cantando ou tocando Autumm in New York. É tudo transbordante e magnífico. Podemos apreciar muito além das aparências do consumo desenfreado e dos friorentos cantos do Central Park. Sorte. Muita sorte. Estar vivo e sóbrio (nem sempre!) para sentir tudo isto. Meio renovado e meio moído. É a vida. Estes dois outonos preenchem a minha vida. Por aqui, fico esperando o verão e seu sol belo e quente. Com a benção de Deus.
Deixo aos amigos um poema que escrevi há dois anos, mas que faz parte de meu centenário interior. Era inverno. Um longo inverno que ainda não acabou.
A Grande Maçã
Se tens as cores e contornos da maçã
Se és uma pequena cidade azul
Ou, ainda, se és o cinza de teus edifícios
Pouco sei ou hei de saber.
Sinto-me possuído de minhas sensações e sentimentos neste mundaréu
Que preenchem uma pequena ilha, assuntada por um rio e um escondido mar
Não vejo a altura dos andares dos prédios por quanto estes despencam
Não vejo as bandeirolas de seus hotéis – são tantas!
Tudo sai dos múltiplos ventres de tuas avenidas e ruas
Todas tão simétricas quanto desigual é tua gente
Como esquecido, sinto-me às vezes em catacumbas.
Só escuto ecos como se estes resvalassem em gargantas
Não há sons em teus ventres, apenas murmúrios
Incompreensíveis, diga-se
Tudo a se derramar...
Até as pontes que pretensiosamente tentam ligar terra a tanta terra
Vãos que carecem de vida e sorrateiros protegem os desprotegidos
Gargântulas estão por todo lado
A consumir tudo ao redor
Sem piedade ou qualquer graça
Da desgraça também se alimenta
Pantagruel incomensuravelmente insaciável
Que draga gente
Que rumina variados vegetais e remédios
Gente, gente, gente e gente de toda raça, de toda terra
Cidade nua que se veste em cada esquina
De sabores confusos e olfatos dúbios
De fedores e esplendores
De longos corredores e museus nus e revestidos
Placas comemorativas e nomes, nomes, nomes, nomes
Quantos beneméricos pode ter uma cidade?
Quanto dinheiro pode ter um benemérito?
Quanta benemerência as carências de tanta gente merecem?
Tantas vias preenchidas de fumaça
Mulheres secas, mulheres cheias, mulheres negras e incolores
De seios pequeninos ou fartos a alimentar sonhos
E tão poucas crianças
Crianças pálidas de pálidos sorrisos
Por entre praças se entrelaçam com pouca mata
Ah a mata! Aquela mata central
Tal qual uma vulva invulgar
Infértil, mesmo que se propague por toda a cidade
De resto, aquela mata que justifica tanto cimento,
Tanto asfalto,
Tanto descaso.
Não há deuses por lá, mas há templos
Resvala certa espiritualidade cheia de esperanças e devaneios
Sem realizações, sem registros, sem livros sagrados e sem cemitérios
Tudo é desejo naquela cidade
Desejo do bem, da glória, da vitória, da saúde e do dinheiro
Tudo é desejo e algum sonho
Sonhar por entre céus sem horizontes
Nas suas lojas, nas suas bodegas, nas mesas de bares
E tudo jaz.
E tudo jazz
Com seus negros atléticos e frenéticos
Seus expectadores e esterótipos
A comida gorda que se esparrama por entre as mãos negras de negras serventes
Aquela batida metronômica, nove notas, nove horas
(Nove?) músicos
A música
De um povo sem nação, de uma terra sem governo e de uma nação sem língua
Jargões e mais jargões
Palavras e mais palavras
Sacudidas nas bocas cheias que expelem sabores confusos pelos trens e salões
É muito cheiro, é muito bafo, é muita saliva
E come, come e come
E bebe, bebe e bebe
E fala, fala e fala
Ninguém escuta
Japonês, tailandês, norueguês, português, chinês, francês, inglês
Clichês, clichês, clichês e clichês
Ideologias e mais ideologias
A justificar quase tudo, mesmo que não haja totalidade.
Tantas luzes, raios e trovões travestidos de canhões
Será a Cidade das Luzes?
Quanta filosofia em vão...
Existem refúgios em meio aquelas ruas e avenidas.
Tantos refugiados
Fugitivos daquela sensação evocada em cada esquina
De que há tantos lugares para ir
Melhor esperar
Por aquilo que não se sabe, não se vê e não se sente
Apenas existe
Furtivamente.
New York, Dezembro 2008
domingo, 12 de setembro de 2010
A Menina Má de Mario Vargas Llosa e de Todos Nós
Mario Vargas Llosa é um escritor genial, dotado de quase todas as virtudes requeridas de um escritor. Todavia, acumula uma versatilidade no uso dos ingredientes que tornam um romance numa obra de envergadura dramática. Em Travessuras da Menina Má (2006, Editora Objetiva, Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht) Llosa consegue escrever sobre um tema - ou será uma idéia? - grandioso, mas que se enquadra na natural estreiteza da caracterização de cada personagem. Uma tarefa nada fácil e que pressiona o escritor a cada parágrafo, sob o risco e a sanção de que perca a necessária tensão da escrita e da idéia que prende o leitor. Neste romance, Mario Vargas Llosa conta em primeira pessoa uma história de amor e desamor entre um tradutor (Ricardo Somocurcio) e a sua fugidia amada ("Menina Má).
Confesso que este livro permaneceu em minhas prateleiras por pelo menos três anos. Fiquei entre a falta de tempo para me ocupar da leitura e a tentação de experimentar mais uma vez a grandeza de Llosa. Resolvi pegar o livro e, pouco a pouco, nas noites e madrugadas, preencher a minha insônia. Resultado: fui dragado pela leitura do livre e pela sua provocação nada gratuita. Caiu como uma luva, como um encontro entre os olhos daqueles que desejam ser desejados.
Tão logo comecei a ler as Travessuras lembrei-me da obra A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho. Neste livro, Dumas conta-nos sobre a frivolidade social típica da segunda metade do século XIX na França quando a expansão econômica da burguesia espalhava-se pelos costumes sociais da época. A cortesã Marguerite Gautier utiliza-se do amor para obter dos pares sociais o reconhecimento. De muitas formas, seu intento se realiza sob a complacência dos que a rejeitavam. Por sua vez, Armand, parte da burguesia de então, é o homem apaixonado que busca enquadrar os seus sentimentos ao status quo do qual é vítima e algoz ao mesmo tempo. Não há compatibilidade exterior entre as ambições e o amor de cada um deles. O ponto é desencontro e não o encontro.
Mario Vargas Llosa em Travessuras faz uma opção ainda mais arrojada do meu ponto de vista. A incompatibilidade entre a menina má e Ricardo é interior. O amor é uma impossibilidade inexplicável do ponto de vista dela e é algo absolutamente consolidado no coração dele. A cada encontro amoroso por diversas cidades do mundo (Paris, Londres, Tóquio, etc.) há um correspondente desencontro destas almas. A pergunta mais óbvia é: por que menina má você não é capaz de amar? A resposta não vem e não vem...
Nestes nossos tempos não é raro e sequer difícil cairmos no abismo da absoluta descrença no Amor. Refiro-me ao tema, genérica (como ideal humano) e especificamente (o amor de um homem por uma mulher). Llosa tece um enredo espetacular para estontear os amantes e causar açodamento aos descrentes do cupido. Usa o amor de um homem por uma mulher para mostrar que talvez tenhamos mais razões para duvidar que acreditar. E vice-versa.
O interessante é que nenhum sofrimento de Ricardo diante dos desprezos da menina má interrompe a capacidade dele de prosperar e persegui-la, mesmo que quem o procure seja ela. As suas declarações de amor são tidas por ela como algo brega. O fato é que em lugar destas declarações bregas a menina má nada coloca. Há um completo vazio existencial. Talvez ela saiba que o amor é assim mesmo: parece uma entrega sem charme, sem a aparência lustrada dos tempos modernos, sem os cálculos em relação às palavras e aos interesses, sem o sentimento prévio das vantagens que se retirará do outro, o dinheiro, a vaidade, a ingratidão, etc....
A menina má não cede: ela irá gozar os bons momentos com Ricardo e o descartará sem mito, censura ou candura. Não consegue amá-lo, nem a ele e nem a ninguém. Em cada amante encontra um interesse e o extrai, seja qual for o custo, seja o seu corpo sedutor ou a sua capacidade camaleônica de saber se portar perante cada um. Fatos e sinas. Tristes fatos, tristes sinas, diria Ricardo Somocurcio.
Se em Dumas temos o arquétipo do amor pequeno-burguês em Mario Vargas Llosa temos a essência eterna do Amor, vivida por Ricardo, e a inconsciência construída da menina má que não quer amar por pura conveniência. Parece duro, mas prestemos atenção: o mundo é isto mesmo. Descarta-se não apenas o Amor, mas a própria possibilidade de que ele possa persistir. É preciso trabalhar por ele, mas há muito mais que é priorizado: das coisas frívolas do cotidiano até a ambição de conseguir o que se quer, seja qual for o custo a se tomar. Ricardo, ao contrário do personagem de Dumas (Armand), não é algoz. É a vítima de sua própria crença. É daqueles que acham que a sua bondade para com o Amor há de recompensar. Não recompensa. Não há mal entendidos entre o amante Ricardo e a frieza da menina má. Tudo parece claro a cada encontro, mesmo que existam mistérios, magnificamente bem explorados pelo escritor peruano. O grande equívoco do romance já é dado pela visão antagônica dos dois sobre o Amor e o equívoco dela que seja possível viver sem ele. Resta saber quais dos dois é o mais lúcido.
Tenho a impressão que os leitores deste romance optam por Ricardo na leitura, mas talvez muitos ajam como a menina má. É claro que isto é uma presunção e tanto, mesmo que os efeitos sobre as relações humanas estejam despejadas por aí, entre tantos desencontros amorosos. Bem, como disse, é uma presunção. Para terminar deixo um trecho das Cartas a um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke cuja essência tivesse penetrado a alma da menina má talvez o amor merecesse melhor fortuna:
"Parece-nos que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias, porque já não ouvimos viver os nossos sentimentos que nos tornaram estranhos..."
Confesso que este livro permaneceu em minhas prateleiras por pelo menos três anos. Fiquei entre a falta de tempo para me ocupar da leitura e a tentação de experimentar mais uma vez a grandeza de Llosa. Resolvi pegar o livro e, pouco a pouco, nas noites e madrugadas, preencher a minha insônia. Resultado: fui dragado pela leitura do livre e pela sua provocação nada gratuita. Caiu como uma luva, como um encontro entre os olhos daqueles que desejam ser desejados.
Tão logo comecei a ler as Travessuras lembrei-me da obra A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho. Neste livro, Dumas conta-nos sobre a frivolidade social típica da segunda metade do século XIX na França quando a expansão econômica da burguesia espalhava-se pelos costumes sociais da época. A cortesã Marguerite Gautier utiliza-se do amor para obter dos pares sociais o reconhecimento. De muitas formas, seu intento se realiza sob a complacência dos que a rejeitavam. Por sua vez, Armand, parte da burguesia de então, é o homem apaixonado que busca enquadrar os seus sentimentos ao status quo do qual é vítima e algoz ao mesmo tempo. Não há compatibilidade exterior entre as ambições e o amor de cada um deles. O ponto é desencontro e não o encontro.
Mario Vargas Llosa em Travessuras faz uma opção ainda mais arrojada do meu ponto de vista. A incompatibilidade entre a menina má e Ricardo é interior. O amor é uma impossibilidade inexplicável do ponto de vista dela e é algo absolutamente consolidado no coração dele. A cada encontro amoroso por diversas cidades do mundo (Paris, Londres, Tóquio, etc.) há um correspondente desencontro destas almas. A pergunta mais óbvia é: por que menina má você não é capaz de amar? A resposta não vem e não vem...
Nestes nossos tempos não é raro e sequer difícil cairmos no abismo da absoluta descrença no Amor. Refiro-me ao tema, genérica (como ideal humano) e especificamente (o amor de um homem por uma mulher). Llosa tece um enredo espetacular para estontear os amantes e causar açodamento aos descrentes do cupido. Usa o amor de um homem por uma mulher para mostrar que talvez tenhamos mais razões para duvidar que acreditar. E vice-versa.
O interessante é que nenhum sofrimento de Ricardo diante dos desprezos da menina má interrompe a capacidade dele de prosperar e persegui-la, mesmo que quem o procure seja ela. As suas declarações de amor são tidas por ela como algo brega. O fato é que em lugar destas declarações bregas a menina má nada coloca. Há um completo vazio existencial. Talvez ela saiba que o amor é assim mesmo: parece uma entrega sem charme, sem a aparência lustrada dos tempos modernos, sem os cálculos em relação às palavras e aos interesses, sem o sentimento prévio das vantagens que se retirará do outro, o dinheiro, a vaidade, a ingratidão, etc....
A menina má não cede: ela irá gozar os bons momentos com Ricardo e o descartará sem mito, censura ou candura. Não consegue amá-lo, nem a ele e nem a ninguém. Em cada amante encontra um interesse e o extrai, seja qual for o custo, seja o seu corpo sedutor ou a sua capacidade camaleônica de saber se portar perante cada um. Fatos e sinas. Tristes fatos, tristes sinas, diria Ricardo Somocurcio.
Se em Dumas temos o arquétipo do amor pequeno-burguês em Mario Vargas Llosa temos a essência eterna do Amor, vivida por Ricardo, e a inconsciência construída da menina má que não quer amar por pura conveniência. Parece duro, mas prestemos atenção: o mundo é isto mesmo. Descarta-se não apenas o Amor, mas a própria possibilidade de que ele possa persistir. É preciso trabalhar por ele, mas há muito mais que é priorizado: das coisas frívolas do cotidiano até a ambição de conseguir o que se quer, seja qual for o custo a se tomar. Ricardo, ao contrário do personagem de Dumas (Armand), não é algoz. É a vítima de sua própria crença. É daqueles que acham que a sua bondade para com o Amor há de recompensar. Não recompensa. Não há mal entendidos entre o amante Ricardo e a frieza da menina má. Tudo parece claro a cada encontro, mesmo que existam mistérios, magnificamente bem explorados pelo escritor peruano. O grande equívoco do romance já é dado pela visão antagônica dos dois sobre o Amor e o equívoco dela que seja possível viver sem ele. Resta saber quais dos dois é o mais lúcido.
Tenho a impressão que os leitores deste romance optam por Ricardo na leitura, mas talvez muitos ajam como a menina má. É claro que isto é uma presunção e tanto, mesmo que os efeitos sobre as relações humanas estejam despejadas por aí, entre tantos desencontros amorosos. Bem, como disse, é uma presunção. Para terminar deixo um trecho das Cartas a um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke cuja essência tivesse penetrado a alma da menina má talvez o amor merecesse melhor fortuna:
"Parece-nos que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias, porque já não ouvimos viver os nossos sentimentos que nos tornaram estranhos..."
terça-feira, 10 de agosto de 2010
A Beleza de Jolie e a Paranóia Americana
A beleza sexy e reluzente de Angelina Jolie é o que há de melhor no filme Salt (EUA, 2010, direção de Phillip Noyce, com Liev Schreiber e Chiwetel Ejiofor). De fato, Jolie evoluiu na beleza, reduziu o peso e, aparentemente, expandiu os seios. É um colírio em meio a centenas de efeitos cênicos e especiais, muita ação e uma filmagem cuidadosa do ponto de vista de cenários e explosões (literais). A coisa pára por aí: o filme tem dois problemas que jogam o filme para um destino desastroso. O primeiro é um roteiro confuso e que não cria a tensão que a força das cenas exorbita. Simplesmente a estória não acontece, fica tudo numa promessa completamente vazia. A saída foi simples e coroa a falta de mínima coerência do roteiro: inventa-se um destino para a principal personagem (Salt), o que promete outro filme, mas torna tudo ainda mais confuso. O roteiro somado às cenas é um desastre.
Fico imaginando o rol de interesses que motivam um escritor de roteiros a ir tão longe. Nem é preciso associar isto à indústria armamentista, afinal a "guerra ao terror" já é suficiente para jorrar milhões para muito tigre industrial. Acredito que há algo mais no ar: a segurança nacional norte-americana não é mais algo buscado por razões "legítimas" de interesse do país. A coisa já invadiu os cantos cerebrais do norte-americano comum que precisa de alguma excitação para que os seus vetores paranóicos funcionem. Não fosse isto, não se cultivaria tanto a neurose da filmografia com os temas bélicos. O problema é que, ao contrário do bom e charmoso James Bond, é provável que a audiência saia convencida de que aquela baboseira toda possa sair da tela e acabar nos quintais gramados dos subúrbios da classe média yankee. Numa dessas, os hispânicos, negros e pobres (ou tudo isto junto) terão de ser deslocados com suas armas para enfrentar o "inimigo".
Fico imaginando Angelina Jolie, tão fiel aos seus afazeres humanitários, em meio às filmagens. Será que ela se ressente de estar propagando algo tão nefasto às mentes do mundo afora, especialmente dos americanos? Perdoe-me a incursão em tema tão sério e diante de filme tão bobo, mas é que não acredito nesta separação tão nítida entre a fantasia e a realidade...
Salt náo serve sequer para divertir, mas não sejamos tão egoístas: é deste filme que depende o salário de Jolie e ela merece! Recentemente, se tornou uma das top five mais bem pagas do cinema mundial. Ela pode não ter muito talento artístico, mas cada um usa o que tem, não é mesmo?
O segundo ponto notável deste tipo de filme é a busca frenética dos autores, sejam eles os diretores, os produtores e todas as equipes, por um inimigo imaginário dos EUA. Se durante a Guerra Fria ou mesmo após a II Guerra Mundial, o tal do "inimigo" era absolutamente detectável, o que se nota é que a queda do Muro de Berlim foi um completo desastre para a filmografia neurótica dos EUA. Como se sabe, há muitos inimigos que podem atingir os EUA - Bin Laden provou isto -, mas não há nenhum que possa destroçá-lo. Não obstante, a patota de Holywood precisa inventar um "inimigo comum e externo" que seja capaz de permear o imaginário da sociedade americana (e correlatas). O que sobrou foi Cuba (pequena demais para assustar), a Coréia do Norte (longe demais para perturbar as mentes) e o terrorismo islâmico (muito batido em Hollywood). Ora, Salt consegue ressucitar a ex-URSS. Acreditem, a ressureição soviética comunista acontece na tela!
Fico imaginando o rol de interesses que motivam um escritor de roteiros a ir tão longe. Nem é preciso associar isto à indústria armamentista, afinal a "guerra ao terror" já é suficiente para jorrar milhões para muito tigre industrial. Acredito que há algo mais no ar: a segurança nacional norte-americana não é mais algo buscado por razões "legítimas" de interesse do país. A coisa já invadiu os cantos cerebrais do norte-americano comum que precisa de alguma excitação para que os seus vetores paranóicos funcionem. Não fosse isto, não se cultivaria tanto a neurose da filmografia com os temas bélicos. O problema é que, ao contrário do bom e charmoso James Bond, é provável que a audiência saia convencida de que aquela baboseira toda possa sair da tela e acabar nos quintais gramados dos subúrbios da classe média yankee. Numa dessas, os hispânicos, negros e pobres (ou tudo isto junto) terão de ser deslocados com suas armas para enfrentar o "inimigo".
Fico imaginando Angelina Jolie, tão fiel aos seus afazeres humanitários, em meio às filmagens. Será que ela se ressente de estar propagando algo tão nefasto às mentes do mundo afora, especialmente dos americanos? Perdoe-me a incursão em tema tão sério e diante de filme tão bobo, mas é que não acredito nesta separação tão nítida entre a fantasia e a realidade...
Salt náo serve sequer para divertir, mas não sejamos tão egoístas: é deste filme que depende o salário de Jolie e ela merece! Recentemente, se tornou uma das top five mais bem pagas do cinema mundial. Ela pode não ter muito talento artístico, mas cada um usa o que tem, não é mesmo?
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
"Uma Noite em 67" Documenta Um Brasil Novo Com Rara Competência
Simplicidade e uma escolha minuciosa dos fatos para mostrar com rara fidelidade documental o contexto, as idéias, as contradições e os fatos (ora, os fatos!) relacionados com o famoso Festival de Música da Record de 1967. Do meu ponto de vista estes são os principais méritos do documentário Uma Noite em 1967 (Brasil, 2010, direção de Ricardo Calil e Renato Terra).
A obra dos diretores é um desfile raro de celebridades (atuais) que oscilam entre a missão consciente e imediata de ganhar aquele festival de música e a inconsciente construção de um cenário ou era nova na música popular brasileira. Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo, Os Mutantes e tantos outros, prestam um enorme serviço ao esclarecer o cenário e as matizes sociais, políticas, estéticas, culturais e antropológicas de um país pós-64 que se transformava além das suas próprias expectativas. Note-se que toda aquela turma estava com seus vinte e poucos anos, mas já lustrava uma maturidade muito além daquela que vemos hoje a frequentar os bancos universitários.
O documentário, como já dissemos, é simples e vai ao ponto: as entrevistas concedidas pelos protagonistas à época do festival e "cruzadas" com outras atuais são, de forma incrível, muito bem elaboradas no que tange ao que se questiona em cada época. A prestação do esclarecimento é feito com muita competência, elegância e muito humor. Apesar de ser um documentário é possível rir muito de certas situações e fatos. Além disto, se é possível acreditar que ali em 67 sobrava inteligência e percepção aguda sobre os fatos, é ainda melhor constatar que as contradições da época são mostradas ao mesmo tempo com as imagens e com os diálogos. O espectador pode oscilar entre o que vê e escuta e tirar suas próprias conclusões, algo fundamental quando assistimos a documentários.
Aquele Brasil da ditadura era paradoxalmente moderno e arcaico. Nota-se isto quando se vê a distância entre os que os entrevistadores (Cidinha Campos, Randal Juliano e Reali Jr.) da época perguntavam aos participantes do festival e as respostas ligeiras, espertas e inteligentes dos cantores/compositores. Caíam as muralhas do óbvio e se revelava um mundo realmente contemporâneo. A ditadura não parou isto. Quando nos transportamos para os dias atuais vemos que a coisa na tela se modernizou muito no que tange à forma, mas que é notória a carência de novas idéias com conteúdo valorativo. Não se trata de saudosismo, mas apenas de uma apreciação crítica sobre o que estamos a assistir. Fico até pensando se os "marqueteiros" de hoje deixariam que um festival como aquele, sem nomes famosos ou consolidados e com uma música primeva, poderia prometer a audiência medida pelos institutos de pesquisa. O "novo", mesmo que com feições algumas vezes arcaicas, é inusitado e arriscado. O documentário de Kalil e Terra mostram que ele também é possível. Vejam bem: naquele festival Chico Buarque e Edu Lobo (que o venceu) eram os "velhos" do pedaço. Caetano e Gil os "modernos". A viola era a trincheira da defesa da brasilidade na música e a guitarra o ícone imperialista.
Quando eu saí do cinema fiquei com um sentimento duplo em relação a este belo documentário: uma saudade sem melancolia com uma vontade louca de topar com algo novo. Isto é possível e desejável. Acho até que não tem nada a ver com os moderninhos que andam por aí.
"À Prova de Morte", Um Abuso de Forma de Tarantino
Nem precisamos especular sobre aspectos filosóficos ou estéticos para concluir que o filme do diretor norte-americano Quentin Tarantino, À Prova de Morte (Death Proof, EUA, 2007, com Kurt Russel , Rosario Dawson , Vanessa Ferlito , Jordan Ladd e Rose McGowan) não passa de um tremendo abuso de forma, uma elaboração estética que despreza não somente alguns dos fundamentos do cinema, mas a própria inteligência da platéia.
O cinema não precisa estar comprometido com as relações entre a racionalidade, a sensibilidade e o domínio estético daquilo que é projetado na tela. Um diretor ou ator pode explorar uma determinada realidade (ou imaginação) psíquica em moldes muitas vezes surpreendentes. São muitos os exemplos, mas eu lembraria neste momento alguns dos filmes de David Lynch (Império dos Sonhos (2006), Cidade dos Sonhos (2001) e, até mesmo, Veludo Azul(1986)). A visão ou ante-visão sobre tais filmes, fez com que Lynch lançasse uma estética condizente com o seu projeto, digamos, "onírico" com ampla utilização de elementos "para-artísticos", "meta-artísticos" ou "anti-artísticos".
O que se vê no filme de Tarantino não é nada disto. Trata-se, isto sim, de um completo abuso de forma sem que o seu resultado não possa ser remetido nem na razão, nem na sensibilidade e nem no impulso de uma idéia "não-convencional". O que parece acontecer é que Tarantino buscou ocupar um espaço experimental onde junta um roteiro entrelaçado de situações no qual a única coisa comum são as doses nada homeopáticas de violência.
O filme conta a estória de um dublê de cinema que persegue com seu carro old fashion moças sensuais e desbocadas e as coloca em situação de risco que as leva (ou não) à morte. O filme tenta ser um filme B, mas vira mesmo é um filme trash sem que a platéia possa segui-lo. Uma gratuidade que não vale o preço do ingresso.
Há recursos na idéia que poderiam ser muito bem aproveitados, a começar pela boa qualidade do elenco, especialmente o ressucitado Kurt Russell. Até mesmo a intenção estética poderia ser cavucada entre a lente da câmera e as marcações de cenário. Todavia, o roteiro destrói tudo: não há explicação nenhuma que me pareça possível para o correr das cenas. (Algumas das cenas são até engraçadas isoladamente, mas nem o prazer imediato daquilo que se vê pode ser curtido no filme). Tudo parece efêmero, inclusive os personagens que estão caracterizados, mas não tem nenhuma função senão a de satisfazer as macaquices de Tarantino.
Não vi críticas sobre o filme, mas acho que provavelmente uma parcela relevante destas vai achar razões para defender a obra de Tarantino. Sobretudo, no que concerne a algumas das formulações de Tarantino neste filme que parecem se aproximar as suas outras montagens, sobretudo no caso de Pulp Fiction. Pura ilusão.
Confesso que sou fã de Tarantino. Eis aí um diretor desafiador num mundo cinematográfico ilustrado de infinitas chatices. Tarantino escapa ao cenário vivente com altas doses de patologias sociais, sobretudo às relacionadas com o sexo e à violência, para traduzir uma idéia que seja socialmente sensível. É o que vemos em Pulp Fiction, Bastardos Inglórios e Cães de Aluguel. Neste À Prova de Morte o que temos é um abuso de forma desrespeitoso com o público e com o próprio diretor. Ele fez uma piada e apenas ele ri. Ridículo.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
"Vincere": Um Filme Político que Alerta Sobre o Obscurantismo
Não deixa de ser impressionante como uma sociedade pode cair no obscurantismo político e social e fazer desmoronar os mais básicos dos princípios, tais como a liberdade e a justiça. A história nos ensina que há não tempo certo e nem ocasião própria para que os mantos escuros pousem sobre as sociedades. Ontem, hoje, sempre.
O filme franco-italiano Vincere (2009, dirigido por Marco Bellocchio, com Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Corrado Invernizzi) trata destas questões de fundo ao contar a história de Ida Dalser que foi amante do ditador Benito Mussolini antes de sua ascensão ao poder em 1922. Mussolini teve com Ida um filho, batizado com o mesmo nome do ditador. Depois de abandoná-la, nunca reconheceu o filho e sequer o relacionamento que tivera com ela. Diante da insistência de Ida Dalser em ser reconhecida como "esposa de Mussolini", ela passa o resto da vida perambulando por monicômios como se louca fosse. A adesão das massas ao projeto político do ditador, o qual resultou no conhecido desastre da nação italiana, é o pano de fundo e a essência do filme. A história de Ida nada mais é que a tradução inequívoca de um drama pessoal que pode ser projetado além-muros da própria realidade de um ser. A morte de Ida e de seu filho, ambos enterrados em valas comuns e não-visitadas, é a morte dos próprios princípios da humanidade e da política. É difícil acreditar muitas vezes que isto possa acontecer.
Uma coisa é certa: a popularidade de um líder portador de um projeto como foi o fascista desmoraliza a idéia vulgar de que "a voz do povo é a voz de Deus". O adesismo momentâneo motivado por uma vida melhor diante das eventuais dificuldades pelas quais pode passar uma sociedade em troca do abandono dos mais profundos princípios é daquelas falácias que se tornam óbvias apenas quando se completa a tragédia. O nazismo e o fascismo foram o corolário das insatisfações sociais com as políticas liberais que dominaram o século XIX e início do XX. Hitler e Mussolini souberam extrair das insatisfações do povo a ação necessária para consolidar os seus projetos de horror. Os aplausos, inclusive da enorme parcela das elites, davam a impressão de que a história dava mais um passo à frente. Contrariamente, caía-se na mesma vala de Ida e seu filho. Franco, as ditaduras latino-americanas, Bush e seu 11/09, Stálin, Mao e tantos outros, nada mais são do que a variação tônica da mesma pauta. Todos tiveram substantivo apoio do povo. Ora, o povo! Partícipe ativo de sua própria traição.
Vincere é um belo filme. Bellochio, o diretor, dá lições de cinema: incorporou um padrão modernizado do neorealismo italiano, usou a câmera de variadas formas e plenamente adequadas à cada cena: do close do jovem revolucionário Benito Mussolini (nos anos iniciais do século) até o aproveitamento perfeito de imagens do verdadeiro Mussolini e seus histrônicos discursos. A bela atriz Giovanna Mezzogiorno é uma benção à interpretação: o sofrimento de Ida fica embelezado pelos lindos olhos verdes dela, mas a face não esconde o sopro trágico da alma de Ida Dalser .
Há poucos filmes de cunho político que atingem o objetivo de contar, ensinar, refletir e criticar a história. Bellochio consegue isto sem passar pelas "facilidades" do tema e as "vulgaridades" que facilitam a adesão da platéia. O povo aderiu a Mussolini. O filme é feito sem se importar muito em ser popular. A entrega filmada da história é um alerta para os nossos tempos, inclusive no Brasil. O obscurantismo é um fantasma eterno da liberdade. Ida Dalser vive para nos alertar.
O filme franco-italiano Vincere (2009, dirigido por Marco Bellocchio, com Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Corrado Invernizzi) trata destas questões de fundo ao contar a história de Ida Dalser que foi amante do ditador Benito Mussolini antes de sua ascensão ao poder em 1922. Mussolini teve com Ida um filho, batizado com o mesmo nome do ditador. Depois de abandoná-la, nunca reconheceu o filho e sequer o relacionamento que tivera com ela. Diante da insistência de Ida Dalser em ser reconhecida como "esposa de Mussolini", ela passa o resto da vida perambulando por monicômios como se louca fosse. A adesão das massas ao projeto político do ditador, o qual resultou no conhecido desastre da nação italiana, é o pano de fundo e a essência do filme. A história de Ida nada mais é que a tradução inequívoca de um drama pessoal que pode ser projetado além-muros da própria realidade de um ser. A morte de Ida e de seu filho, ambos enterrados em valas comuns e não-visitadas, é a morte dos próprios princípios da humanidade e da política. É difícil acreditar muitas vezes que isto possa acontecer.
Uma coisa é certa: a popularidade de um líder portador de um projeto como foi o fascista desmoraliza a idéia vulgar de que "a voz do povo é a voz de Deus". O adesismo momentâneo motivado por uma vida melhor diante das eventuais dificuldades pelas quais pode passar uma sociedade em troca do abandono dos mais profundos princípios é daquelas falácias que se tornam óbvias apenas quando se completa a tragédia. O nazismo e o fascismo foram o corolário das insatisfações sociais com as políticas liberais que dominaram o século XIX e início do XX. Hitler e Mussolini souberam extrair das insatisfações do povo a ação necessária para consolidar os seus projetos de horror. Os aplausos, inclusive da enorme parcela das elites, davam a impressão de que a história dava mais um passo à frente. Contrariamente, caía-se na mesma vala de Ida e seu filho. Franco, as ditaduras latino-americanas, Bush e seu 11/09, Stálin, Mao e tantos outros, nada mais são do que a variação tônica da mesma pauta. Todos tiveram substantivo apoio do povo. Ora, o povo! Partícipe ativo de sua própria traição.
Vincere é um belo filme. Bellochio, o diretor, dá lições de cinema: incorporou um padrão modernizado do neorealismo italiano, usou a câmera de variadas formas e plenamente adequadas à cada cena: do close do jovem revolucionário Benito Mussolini (nos anos iniciais do século) até o aproveitamento perfeito de imagens do verdadeiro Mussolini e seus histrônicos discursos. A bela atriz Giovanna Mezzogiorno é uma benção à interpretação: o sofrimento de Ida fica embelezado pelos lindos olhos verdes dela, mas a face não esconde o sopro trágico da alma de Ida Dalser .
Há poucos filmes de cunho político que atingem o objetivo de contar, ensinar, refletir e criticar a história. Bellochio consegue isto sem passar pelas "facilidades" do tema e as "vulgaridades" que facilitam a adesão da platéia. O povo aderiu a Mussolini. O filme é feito sem se importar muito em ser popular. A entrega filmada da história é um alerta para os nossos tempos, inclusive no Brasil. O obscurantismo é um fantasma eterno da liberdade. Ida Dalser vive para nos alertar.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Copa do Mundo é do Polvo! E do Jagger!
Caminhamos para assistir a final da Copa do Mundo da África do Sul entre a Espanha e a Holanda. De fato, não estamos diante de um espetáculo muito estimulante. Temos um concerto de interesses imensos, de empresas patrocinadoras, de empresários de jogadores, da mídia e da crônica esportiva cheia de opiniões, do turismo local, etc e tal. Em meio a tudo isto, um pouquinho de futebol porque ninguém é de ferro. Afinal como seria explicar a FIFA? Não há ironia que possa revelar algo diferente.
Talvez o único alerta que possamos fazer a esta altura da tertúlia futebolística seja o fato de que estamos diante de uma Copa já decidida. Não há razão alguma que justifique que a partida final aconteça. O campeão pode ser conhecido muito mais facilmente. Explico.
Desde sempre o homem é fascinado pela aferição do futuro. Os magos, profetas, gurus e assim vai, sempre estiveram a vigiar o futuro para os reis e poderosos. O povo ficava na espreita para ver se sobrava algum. No Templo de Delfos, na Grécia, as pitonisas entravam em transe e transformavam as suas palavras em previsões, ou melhor, em verdades incontestáveis. Aí residia o futuro e quem fosse sábio que apenas cumprisse o script.
Pois bem: temos de reconhecer que o polvo do aquário da África do Sul é a pitonisa moderna. Com os seus lustrosos tentáculos ele não erra: levanta a tampa do recipiente com comida e serve-se. Há dois recipientes, cada qual com a bandeira do país que vai disputar a partida. O recipiente escolhido representa o país vencedor da partida vindoura. O futuro está revelado.
Ora, pergunto eu: por que devemos perder tempo vendo TV se um polvo resolve a coisa toda?
Trata-se de um profeta de estirpe. Natan, Amós, Elias. Sei lá.
A única questão que me intriga é saber por que tantos "especialistas" em futebol não tem a mesma acuracidade. Por que aqueles comentaristas faceiros falam uma coisa e o que acontece em campo é outra?
Já especulei muito a respeito. Listei algumas razões (incertas):
1) O polvo tem muitos tentáculos e os "especialistas" tem apenas um cérebro. Nos dias de hoje melhor ter corpo que cabeça. Corpo bonito, é claro;
2) O polvo quer mesmo é comer o marisco dentro do recipiente. Vai lá e resolve. Os "especialistas" fingem que não comem, mas para comer tem de não resolver o problema;
3) O polvo é flexível. Os "especialistas" são cheios de convicções;
4) O polvo não precisa falar. Diz, assim mesmo. Os "especialistas" falam muito e não tem nada a dizer;
5) O polvo é remunerado por um marisco. Os "especialistas" tem de vender um monte de patrocínios;
6) O polvo sabe o que a coisa toda é simples. Os "especialistas" precisam explicar a tática, a técnica, o "momento da partida", o "craque da copa", etc.
7) O polvo não se importa com críticas, sequer tem ouvidos. Os "especialistas" precisam ser escutados, criticam, mas odeiam críticas e, antes de falar, verificam a quais interesses eles atendem.
Paro por aqui, pois chega de pensar, temos sete cogitações. Além disso, "sete" é número de mentiroso.
Há, porém, outra forma de decidir as partidas. Basta convidar o Mick Jagger e perguntar para que time ele vai torcer: como se sabe o ex-moço do rock´n roll é um pé frio danado. Mas, que ele decide, isso ele faz!!! Se disse que vai dar Inglaterra, escolha a Alemanha. Se torceu pelo Brasil, escolha a Holanda. Um craque magrela e com a boca beiçuda.
Esta Copa do Mundo para mim não tem time bom. Tem apenas uma dupla que sabe de tudo: o polvo e o Jagger. Não assistirei a partida de domingo. Quero saber das coisas. Antecipadamente.
Talvez o único alerta que possamos fazer a esta altura da tertúlia futebolística seja o fato de que estamos diante de uma Copa já decidida. Não há razão alguma que justifique que a partida final aconteça. O campeão pode ser conhecido muito mais facilmente. Explico.
Desde sempre o homem é fascinado pela aferição do futuro. Os magos, profetas, gurus e assim vai, sempre estiveram a vigiar o futuro para os reis e poderosos. O povo ficava na espreita para ver se sobrava algum. No Templo de Delfos, na Grécia, as pitonisas entravam em transe e transformavam as suas palavras em previsões, ou melhor, em verdades incontestáveis. Aí residia o futuro e quem fosse sábio que apenas cumprisse o script.
Pois bem: temos de reconhecer que o polvo do aquário da África do Sul é a pitonisa moderna. Com os seus lustrosos tentáculos ele não erra: levanta a tampa do recipiente com comida e serve-se. Há dois recipientes, cada qual com a bandeira do país que vai disputar a partida. O recipiente escolhido representa o país vencedor da partida vindoura. O futuro está revelado.
Ora, pergunto eu: por que devemos perder tempo vendo TV se um polvo resolve a coisa toda?
Trata-se de um profeta de estirpe. Natan, Amós, Elias. Sei lá.
A única questão que me intriga é saber por que tantos "especialistas" em futebol não tem a mesma acuracidade. Por que aqueles comentaristas faceiros falam uma coisa e o que acontece em campo é outra?
Já especulei muito a respeito. Listei algumas razões (incertas):
1) O polvo tem muitos tentáculos e os "especialistas" tem apenas um cérebro. Nos dias de hoje melhor ter corpo que cabeça. Corpo bonito, é claro;
2) O polvo quer mesmo é comer o marisco dentro do recipiente. Vai lá e resolve. Os "especialistas" fingem que não comem, mas para comer tem de não resolver o problema;
3) O polvo é flexível. Os "especialistas" são cheios de convicções;
4) O polvo não precisa falar. Diz, assim mesmo. Os "especialistas" falam muito e não tem nada a dizer;
5) O polvo é remunerado por um marisco. Os "especialistas" tem de vender um monte de patrocínios;
6) O polvo sabe o que a coisa toda é simples. Os "especialistas" precisam explicar a tática, a técnica, o "momento da partida", o "craque da copa", etc.
7) O polvo não se importa com críticas, sequer tem ouvidos. Os "especialistas" precisam ser escutados, criticam, mas odeiam críticas e, antes de falar, verificam a quais interesses eles atendem.
Paro por aqui, pois chega de pensar, temos sete cogitações. Além disso, "sete" é número de mentiroso.
Há, porém, outra forma de decidir as partidas. Basta convidar o Mick Jagger e perguntar para que time ele vai torcer: como se sabe o ex-moço do rock´n roll é um pé frio danado. Mas, que ele decide, isso ele faz!!! Se disse que vai dar Inglaterra, escolha a Alemanha. Se torceu pelo Brasil, escolha a Holanda. Um craque magrela e com a boca beiçuda.
Esta Copa do Mundo para mim não tem time bom. Tem apenas uma dupla que sabe de tudo: o polvo e o Jagger. Não assistirei a partida de domingo. Quero saber das coisas. Antecipadamente.
João Baptista, Entre a Saudade e a Compreensão
Para J.A.C, com o carinho que ainda é pouco...
“Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.” (Charles Baudelaire, As Flores do Mal)
João Baptista. Este era o seu nome. Nada mais, nada menos. Temos de reconhecer que o “p” de seu nome compõe um ar de nobreza, a absoluta ausência de obviedade. Podemos lembrar, ademais, o precursor do Salvador. Sua cabeça na bandeja, seu corpo, sei lá onde.
Todas as noites são frias. Afinal, as noites nunca são mais quentes que o próprio dia que as precedem. O sol ilumina, mas queima. A noite se vinga sem queima ou iluminação. Apenas esfria...
Em um certa noite, sem arrepios ou mitificação, João Baptista morria. Segurava a mão de uma moça que não era mais donzela, mas que naquele ato se travestia de dama. João Baptista. Quem há de lembrar este nome?
João Baptista era homem do romance. Não tinha par, nem sequer tinha história. Era dono de bar, boteco, ou coisa assim. Vivia uma íntima opressão, torneada de palavras duras, conselhos óbvios: assim houve de ser, assim teve de ser. Tudo lhe parecia regado em saliva opressiva que o tornava ofegante, mesmo que não fosse fruto de uma caminhada mais acesa. Era dono de bar, boteco ou coisa assim. Todavia, o mundo era uma possibilidade e ele, sabedor de poucas coisas do mundo, sabia que este podia ser algo além da dimensão daquela pequenina cidade do interior de uma terra que não sei o nome.
João Baptista era um oprimido. Não que aquilo que o rodeasse fosse uma corrente ou amarra, mas porque o que o mundo podia ser algo mais universal, livre, belo e, assim mesmo, injusto.
Largou tudo porque o fizeram largar. Passivamente aceitava o seu destino. Amava as mulheres e se deleitava nos cântaros das bebidas e da boemia. Podia ser um negro liberto do século passado. Era um imigrante escravo dos tempos modernos.
Um belo dia apossou-se de feroz dádiva e disse: “existe algo além deste balcão de bar, boteco, ou o que quer que seja.”.
Comprou um caminhão e viveu a liberdade. Em cada porto, uma mulher. Em cada quilômetro um canto novo. Enfim, a liberdade. Lembrava as jogadas arrojadas de um certo artilheiro: Romeu, este era o nome do goleador do jogo de futebol. “Onde estará Julieta?” Nem sabia do velho Shakespeare, mas sabia de Julieta. O amor é óbvio, mas Julieta não é.
Andou sobre o motor quente daquele caminhão. Aonde foi? Onde pousou? Ninguém sabe. João Baptista era como os versos trôpegos de Pessoa:
“Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.”
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.”
A felicidade é como a sorte. Dura pouco, mas pode ser eterna. Como foi para João Baptista? Seu sotaque italiano não pode expressar por muito tempo a felicidade da solidão daquele caminhão a percorrer estradas infinitas. Sua sorte durou pouco. A eternidade veio-lhe como que sorrateira e lhe capturou os movimentos. Esteve doente e ninguém lhe socorreu. Estava sóbrio e ninguém o escutou. Estava preso e ninguém lhe visitou. Estava só e apenas ele compreendeu...
Doente e preso a uns poucos móveis João permaneceu. Sabia já na mente o significado da liberdade, mas sabia que esta era apenas um aforismo de suas tentativas vãs em vagar pelas estradas, sem ter aonde ir.
Sim, havia uma mulata ao seu redor. Antigo amor era agora uma trânsfuga de Deus: segurava a sua mão e acariciava o seu pé. Era tudo o que lhe bastava. Não era pouco. Era quase tudo.
João Baptista doente não era uma caricatura. A liberdade da vida é uma deformação, nunca ela existe límpida e fulgurante. Naquela cama a velocidade prometida já não era de caminhão caixeiro-viajante: a cadeira de rodas era a sua melhor promessa. Não havia reza que pudesse unir as suas mãos rígidas. O corpo ficara torto e amorfo tal qual os dogmatismos que nos empurram para os maiores julgamentos da história.
Não havia saudade porquanto tudo era presente. Não havia futuro, pois tudo era incerto. Meu Deus: João Baptista conheceu o tempo e o aboliu com sua própria enfermidade.
Há o tempo de se plantar, há o tempo de se colher. Há o tempo que não é tempo e este João Baptista conheceu.
Os sonhos nos projetam longe, mas o olhar dos homens nos aterra. João Baptista apenas sonhou, mas ele não sabia que eram sonhos. Nas mãos daquela mulata se sustentava o seu ser. A cama, a cadeira e a mesa num quarto frio (todas as noites são frias). Nada mais. Sem poesia e sem mistificação.
João Baptista morreu. Não houve obituário, nem versos solenes nem discursos. Houve apenas o seu próprio sorriso. Aquele homem sabia o que era a liberdade mesmo que nunca a tenha gozado. A liberdade não era tardia como em Tiradentes. Era apenas uma criação intestina da mente. Naquele caminhão, depois do balcão do bar. Numa direção que não tinha destino.
João Baptista não tem juízes e nem sentença. Tem apenas o seu próprio litígio com a vida. Deixa um legado infinito que apenas a ele próprio serviu. Não tem herdeiros, pois não tem herança. Passou na vida como um vento quente em meio à noite fria que lhe lavrou a própria alma.
Saudade de João Baptista. Ele não se importou com nada, mas eu me importei com tudo. Fosse preso no balcão do bar ou na ilusão de liberdade que carregou até a noite que o levou.
Saudade de João Baptista. Eu o enfrento de dia e o sinto à noite que já não é tão fria.
segunda-feira, 5 de julho de 2010
De Sica: Genial, Humano e Elegante
O encontro da arte com a política sempre foi um tema complexo, mesmo que se reconheça de forma relativamente generalizada que não há possibilidade de separá-los. No caso específico do cinema, a projeção na tela é talvez uma das manifestações mais efetivas da realidade/arte humana. Não há como um diretor fugir do zeitgeist (espírito do tempo) em que vive.
O neorealismo italiano foi um dos movimentos de pensamento sobre o cinema que mais revolucionou a forma de pensar da "sétima arte". Seus principais expoentes, Luchino Visconti, Roberto Rosselini e De Sica deitaram raízes da realidade social e política na película de projeção. Um movimento marcado pelo excesso de criatividade e de coragem temática em meio ao desenvolvimento da moderna Itália. Daí para o mundo. Seus filmes influenciaram grandes diretores comtemporâneos, dentre os quais, Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, Um Bonde Chamado Desejo), Paul Mazursky (Mulher Descasada, Tempestade), Woody Allen (Bananas), Steven Spielberg (Lista de Schindler) e tantos outros. Juntamente com a Nouvelle Vague, o neorealismo raiou como um sol de meio-dia e esquentou o debate sobre cinema com a sua estética arrojada e visão política e social.
O italiano Vittorio De Sicca (1901-1974) foi certamente o príncipe deste movimento: a beleza de seus filmes somada a uma personalidade instigante, sedutora e inteligente são marcos essenciais do movimento neorealista. É isto que está retratado com grande elegância, talento e vasto conteúdo no documentário Vittorio de Sica - Minha Vida, Meus Amores (Itália, 2010, dirigido por Mario Canale e Anna Rosa Mori). Esta dupla de diretores já assinou outro documentário que possuiu a mesma estética sobre Marcello Mastroianni (Marcello - Uma Vida Doce).
O documentário é fascinante como o diretor italiano. Pode-se perceber toda a humanidade de De Sica. O documentário mostra o diretor traçando cuidadosamente a cenas de seus filmes com o carinho que se dispensa a um bebê. Sabia colocar a câmera no olho da idéia e, a partir daí, variava a forma conforme o imperativo daquilo que desejava transmitir. Era jogador compulsivo e perdeu nas mesas dos cassinos grandes fortunas a ponto de fazer filmes bem comerciais para pagar as suas dívidas. Teve e amou duas mulheres ao mesmo tempo e de ambas teve filhos. Era capaz de dar o seu sobretudo para um morador de rua, um ato de abnegação sem a costumeira promoção que se extrai deste tipo de atitude no ambiente pop dos dias de hoje. Era um aristocrata no vestir e agir, mas amava os atores desconhecidos que protagonizavam os seus filmes, muitas vezes em detrimento de estrelas consagradas.
Do meu ponto de vista seus melhores filmes são Ladrões de Bicicleta, Umberto D. (sobre seu pai) e Milagre em Milão. Entretanto, Matrimônio à Italiana e Ontem, Hoje e Amanhã são igualmente brilhantes.
Acredito que é uma espécie de dever republicano o cinema refletir sobre a realidade política e social, preservando, ao mesmo tempo, a elegância e o "estranhamento" na forma. Quando assistimos a um filme que nos ilustra o que vivemos em seus detalhes ganhamos um sentido de totalidade que perdemos nesta era em que a fragmentação dos meios e a avareza dos fins está por destruir o próprio ser humano. Por dentro e por fora. De Sica sabia disto e mostrou sem medo de errar.
O neorealismo italiano foi um dos movimentos de pensamento sobre o cinema que mais revolucionou a forma de pensar da "sétima arte". Seus principais expoentes, Luchino Visconti, Roberto Rosselini e De Sica deitaram raízes da realidade social e política na película de projeção. Um movimento marcado pelo excesso de criatividade e de coragem temática em meio ao desenvolvimento da moderna Itália. Daí para o mundo. Seus filmes influenciaram grandes diretores comtemporâneos, dentre os quais, Elia Kazan (Sindicato de Ladrões, Um Bonde Chamado Desejo), Paul Mazursky (Mulher Descasada, Tempestade), Woody Allen (Bananas), Steven Spielberg (Lista de Schindler) e tantos outros. Juntamente com a Nouvelle Vague, o neorealismo raiou como um sol de meio-dia e esquentou o debate sobre cinema com a sua estética arrojada e visão política e social.
O italiano Vittorio De Sicca (1901-1974) foi certamente o príncipe deste movimento: a beleza de seus filmes somada a uma personalidade instigante, sedutora e inteligente são marcos essenciais do movimento neorealista. É isto que está retratado com grande elegância, talento e vasto conteúdo no documentário Vittorio de Sica - Minha Vida, Meus Amores (Itália, 2010, dirigido por Mario Canale e Anna Rosa Mori). Esta dupla de diretores já assinou outro documentário que possuiu a mesma estética sobre Marcello Mastroianni (Marcello - Uma Vida Doce).
O documentário é fascinante como o diretor italiano. Pode-se perceber toda a humanidade de De Sica. O documentário mostra o diretor traçando cuidadosamente a cenas de seus filmes com o carinho que se dispensa a um bebê. Sabia colocar a câmera no olho da idéia e, a partir daí, variava a forma conforme o imperativo daquilo que desejava transmitir. Era jogador compulsivo e perdeu nas mesas dos cassinos grandes fortunas a ponto de fazer filmes bem comerciais para pagar as suas dívidas. Teve e amou duas mulheres ao mesmo tempo e de ambas teve filhos. Era capaz de dar o seu sobretudo para um morador de rua, um ato de abnegação sem a costumeira promoção que se extrai deste tipo de atitude no ambiente pop dos dias de hoje. Era um aristocrata no vestir e agir, mas amava os atores desconhecidos que protagonizavam os seus filmes, muitas vezes em detrimento de estrelas consagradas.
Do meu ponto de vista seus melhores filmes são Ladrões de Bicicleta, Umberto D. (sobre seu pai) e Milagre em Milão. Entretanto, Matrimônio à Italiana e Ontem, Hoje e Amanhã são igualmente brilhantes.
Acredito que é uma espécie de dever republicano o cinema refletir sobre a realidade política e social, preservando, ao mesmo tempo, a elegância e o "estranhamento" na forma. Quando assistimos a um filme que nos ilustra o que vivemos em seus detalhes ganhamos um sentido de totalidade que perdemos nesta era em que a fragmentação dos meios e a avareza dos fins está por destruir o próprio ser humano. Por dentro e por fora. De Sica sabia disto e mostrou sem medo de errar.
sábado, 19 de junho de 2010
Saramago: Iconoclasta e Dogmático
Sobram análises e elogios a José Saramago depois de sua morte neste 18 de junho de 2010 aos 87 anos. O escritor português finalmente encontrou repouso na sua casa nas Ilhas Canárias (exatamente na Ilha de Lanzarotte). Sua obra sempre foi inquietante.
A obra de Saramago é muito comemorada como inovadora - utilizou a língua portuguesa com um estilo seco em meio a frases longas e pontuação nada obediente aos preceitos e tradições clássicas da gramática da última flor do Lazio. No que diz respeito à temática soube ultrapassar limites óbvios que estavam dispostos ao tempo e à realidade que viveu e conviveu. De todo o modo, dos temas de seus livros podemos destacar que, em cada parágrafo ou capítulo de seus livros, podia-se observar a oscilação constante entre a ficção e a não-ficção. Algo frenético, intenso, questionador e angustiante. É o caso de Ensaio Sobre a Cegueira e Memorial do Convento. Em poucos livros - destaco O Ano da Morte de Ricardo Reis - a profundidade da ficção se torna mais clara e muitos aspectos são explorados sob o manto de uma literatura, digamos, menos engajada à realidade, mais voadora e com latitude romanesca.
Suspeito que a sua maior preferência tenha sido a de ser um ficcionista polêmico. Seu melhor papel. Aí é onde se destaca mais pelas inferências e intervenções racionais no contexto de sua literatura. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é marco desta sua característica. Nele Saramago parece mais realizado e exercitando a sua imaginação em nome de uma coerência pessoal no que diz respeito ao seu ateísmo e seu anti-clericalismo. No mundo hodierno talvez esta sua face tenha se tornado mais sedutora aos olhos de críticos literários, bem como dos pensadores de nosso tempo. A rebeldia é sempre mais sedutora e, convenhamos, exerce além do fascínio uma espécie de "efeito congelante" sobre o pensamento crítico do leitor/pensador.
José Saramago reunia uma série de atributos que lhe permitiam que a coroa de iconoclasta lhe caísse bem: nascido de uma família pobre, foi trabalhador pouco especializado e tinha uma extraordinária capacidade autodidata. Logo aos 22 anos publicou seu primeiro livro depois de anos de uma educação formal deficiente. Foi um ícone da esquerda mundial e de muitas formas seu porta-voz.
A glória, não apenas literária, de Saramago é, obviamente, produto de seu tempo. Todavia, não se pode atribuir-lhe posições avançadas. Não era um visionário, era um crítico do presente que utilizava ferramentas arcaicas do passado. Nunca revisou seus conceitos stalinistas, estes muito além dos marxistas. Seu ateísmo sempre me pareceu uma decorrência natural de sua visão política e não fruto de uma mastigação demorada e intelectual. Deus não parecia caber no homem e vice-versa. Porém, o homem de Saramago foi igualmente construído à semelhança da visão cética de uma religião, no caso, o marxismo. Ele foi um devoto do materialismo que, pouco a pouco, na sua literatura e na construção de suas opiniões pessoais, foi fossilizado em dogmas rígidos. As críticas que dispensava ao mundo católico saíam de sua boca e pena, ambas devotadas aos mais duros e intransigentes dogmas. Neste sentido, não há revisão crítica nem em sua vida e nem em sua obra.
Há, ademais, uma incoerência intrínseca de seu pensamento - se é que existiu um. Saramago é fruto de muitas experiências que se propagaram mundo afora e lhe permitiram chegar ao Nobel de Literatura. A mais importante é a liberdade que gozou como poucos privilegiados e, muito provavelmente, não gozaria no regime soviético - apenas para citar o mais óbvio. Contestava um capitalismo que lhe deu abrigo e promoção. Criticava a Igreja Católica e os cristãos sem que fosse capaz de entendê-los no tempo. Falava de justiça, mas de uma justiça estrangulada pelos seu dogmas cultivados e deixados numa estante a vigiar os seus pensamentos. Afirmava que a "democracia agonizava no mundo", mas nunca foi capaz de estruturar o significado da própria construção frasal.
Em A Viagem do Elefante de 2008 ele nos contou a história do transporte de um elefante de Goa (Índia) até a Aústria, passando pela Espanha e Portugal. Tudo se passa no século XVI. Aquela transição exótica do elefante é uma espécie de uma longa tentativa de Saramago de transfigurar o ser humano. Não conseguiu. Sua mente ficou petrificada nos seus próprios limites dogmáticos. Embora voassem suas idéias literárias, o homem de Saramago permaneceu na sua tumba, sem chance de reviver e exercer seu potencial criativo. O homem de Saramago foi condenado pela Inquisição do célebre escritor português. Mesmo assim, a liberdade manda lembranças e aplaude a sua grandiosa obra literária.
A obra de Saramago é muito comemorada como inovadora - utilizou a língua portuguesa com um estilo seco em meio a frases longas e pontuação nada obediente aos preceitos e tradições clássicas da gramática da última flor do Lazio. No que diz respeito à temática soube ultrapassar limites óbvios que estavam dispostos ao tempo e à realidade que viveu e conviveu. De todo o modo, dos temas de seus livros podemos destacar que, em cada parágrafo ou capítulo de seus livros, podia-se observar a oscilação constante entre a ficção e a não-ficção. Algo frenético, intenso, questionador e angustiante. É o caso de Ensaio Sobre a Cegueira e Memorial do Convento. Em poucos livros - destaco O Ano da Morte de Ricardo Reis - a profundidade da ficção se torna mais clara e muitos aspectos são explorados sob o manto de uma literatura, digamos, menos engajada à realidade, mais voadora e com latitude romanesca.
Suspeito que a sua maior preferência tenha sido a de ser um ficcionista polêmico. Seu melhor papel. Aí é onde se destaca mais pelas inferências e intervenções racionais no contexto de sua literatura. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é marco desta sua característica. Nele Saramago parece mais realizado e exercitando a sua imaginação em nome de uma coerência pessoal no que diz respeito ao seu ateísmo e seu anti-clericalismo. No mundo hodierno talvez esta sua face tenha se tornado mais sedutora aos olhos de críticos literários, bem como dos pensadores de nosso tempo. A rebeldia é sempre mais sedutora e, convenhamos, exerce além do fascínio uma espécie de "efeito congelante" sobre o pensamento crítico do leitor/pensador.
José Saramago reunia uma série de atributos que lhe permitiam que a coroa de iconoclasta lhe caísse bem: nascido de uma família pobre, foi trabalhador pouco especializado e tinha uma extraordinária capacidade autodidata. Logo aos 22 anos publicou seu primeiro livro depois de anos de uma educação formal deficiente. Foi um ícone da esquerda mundial e de muitas formas seu porta-voz.
A glória, não apenas literária, de Saramago é, obviamente, produto de seu tempo. Todavia, não se pode atribuir-lhe posições avançadas. Não era um visionário, era um crítico do presente que utilizava ferramentas arcaicas do passado. Nunca revisou seus conceitos stalinistas, estes muito além dos marxistas. Seu ateísmo sempre me pareceu uma decorrência natural de sua visão política e não fruto de uma mastigação demorada e intelectual. Deus não parecia caber no homem e vice-versa. Porém, o homem de Saramago foi igualmente construído à semelhança da visão cética de uma religião, no caso, o marxismo. Ele foi um devoto do materialismo que, pouco a pouco, na sua literatura e na construção de suas opiniões pessoais, foi fossilizado em dogmas rígidos. As críticas que dispensava ao mundo católico saíam de sua boca e pena, ambas devotadas aos mais duros e intransigentes dogmas. Neste sentido, não há revisão crítica nem em sua vida e nem em sua obra.
Há, ademais, uma incoerência intrínseca de seu pensamento - se é que existiu um. Saramago é fruto de muitas experiências que se propagaram mundo afora e lhe permitiram chegar ao Nobel de Literatura. A mais importante é a liberdade que gozou como poucos privilegiados e, muito provavelmente, não gozaria no regime soviético - apenas para citar o mais óbvio. Contestava um capitalismo que lhe deu abrigo e promoção. Criticava a Igreja Católica e os cristãos sem que fosse capaz de entendê-los no tempo. Falava de justiça, mas de uma justiça estrangulada pelos seu dogmas cultivados e deixados numa estante a vigiar os seus pensamentos. Afirmava que a "democracia agonizava no mundo", mas nunca foi capaz de estruturar o significado da própria construção frasal.
Em A Viagem do Elefante de 2008 ele nos contou a história do transporte de um elefante de Goa (Índia) até a Aústria, passando pela Espanha e Portugal. Tudo se passa no século XVI. Aquela transição exótica do elefante é uma espécie de uma longa tentativa de Saramago de transfigurar o ser humano. Não conseguiu. Sua mente ficou petrificada nos seus próprios limites dogmáticos. Embora voassem suas idéias literárias, o homem de Saramago permaneceu na sua tumba, sem chance de reviver e exercer seu potencial criativo. O homem de Saramago foi condenado pela Inquisição do célebre escritor português. Mesmo assim, a liberdade manda lembranças e aplaude a sua grandiosa obra literária.
terça-feira, 8 de junho de 2010
Em "Sex and City 2" a Hipermodernidade é Explícita
Há aqueles que criticam o vazio e o consumismo do filme Sex and the City 2 (EUA, 2010, direção de Michael Patrick King, com Sarah Jessica Parker, Kristin Davis, Kim Cattrall, Cynthia Nixon, Jason Lewis, David Eigenberg e Chris Noth). Há aqueles, ainda, que se divertem com o filme e disfarçam as suas próprias ambições, o desejo de cada um ser aquilo que assistem e as suas próprias frustrações em não viverem o que as mulheres-personagens saboreiam intensamente. Bom, estas são duas percepções que podemos extrair do ponto de vista "negativo" do filme. Todavia, há algo no ar que sai das salas de exibições no sentido norte das sociedades modernas. Como nos ensina Gilles Lipovetsky em seu livro "Tempos Hipermodernos":
"(...)a modernidade passou para uma velocidade superior em que tudo hoje parece ser levado ao excesso: são os hipermercados, o hiperterrorismo, as hiperpotências, o hipertexto, hiperclasses, enfim, o hipercapitalismo. O que isso significa? Que a modernidade não tem mais limites, não tem mais críticas fundamentais em relação a si mesma".
Estamos inseridos neste mundo onde a significação intrínseca das coisas é a própria coisa, o seu sabor imediato, o seu caráter hedonista e que se esgota com grande impacto e de forma instantânea. Os limites da modernidade inexistem e são transportados para o interior de cada ser. As personagens do filme nada mais são do que o espelho concreto (e ao mesmo tempo imaginário) da sociedade que vivemos. E se não vivemos ainda nesta sociedade, por quanto esta pode nos ser inacessível, há ainda a ambição e o desejo que podemos motivar dentro de nossa alma.
Sex and City 2 é uma aposta ainda mais ambiciosa na "coisificação" do espírito, na excessiva individualização da vida. Em certos momentos aquelas mulheres parecem estar reunidas para "curtir" juntas os prazeres de uma viagem exótica. Todavia, elas estão sós, sem maiores divagações coletivas e, de momento em momento, olham para os lados para verificar se o script da hipermodernidade está sendo cumprido: as roupas e bolsas da moda são oportunidade inequívoca de se afirmarem, os comportamentos tem de estar enquadrados em uma moldura, ao mesmo tempo, previsível e obrigatória. A realidade é esta e ponto final.
Os esterótipos são reais e efetivos: a viagem aos Emirados Árabes Unidos é a manifestação mais cristalina de tudo isto. Os árabes são travestidos de idiotas, o exótico é incorporado como se fosse um adereço e as personagens secundárias estão ali para servir aquelas moradoras de New York. O sexo oscila entre o comportamento falsamente moralista de Carrie (Sarah Jessica Parker) e a volúpia descabida e possível da personagem de Kim Catrall. Esta última já beira a menopausa, mas tenta conter o inevitável do tempo com suas 34 pílulas diárias de hormônios. Mais um pouco poderia engravidar, mas o que ela quer mesmo é o pênis alheio.
Tudo isto pode parecer novo, mas nem tanto é. William Shakespeare, já sentenciava na voz de Lady Macbeth na cena II de sua famosa peça:
" Nada se ganha e tudo se perde, quando nosso desejo fica satisfeito sem contentamento.Mais seguro é ser o objeto que destruímos, mais seguro do que habitar uma alegria duvidosa, construída pela destruição."
Não sejamos tão céticos ao assistir este filme. Incorporemo-nos por entre os objetos e nos deixemos consumir. Nem importa que Sarah Jessica Parker (Carrie) não seja tão deslumbrante (tem as pernas excessivamente tortas), que Cynthia Nixon (Miranda) esteja visivelmente acima do peso, que Kristin Davis (Charlotte) manifeste explícita masculinidade ou, até mesmo, a Kim Catrall (Samantha) seja apenas uma mulher ex-sexy e, até mesmo, meio caída.
Nesta infinita aparência do filme, podemos nos divertir e assistir os passos dos personagens que incorporamos na nossa própria vida. A produção bem acabada do filme, sem nenhuma invenção cênica ou estilística, nos dá a oportunidade de nos ocuparmos em desejar, e se pudermos, consumir tudo que lá está. (Atenção: o filme tem quase três horas!). Neste contexto, sequer a defesa das liberalidades hipermodernas tem conteúdo valorativo: o casamento gay, logo no início do filme, não passa de uma ocasião para revelar toda frivolidade vivente. O espetáculo da festa seria homofóbico não fosse tão sintonizado com a forma e a aparência hipermoderna. Os gays também são objetos de consumo.
Por fim, podemos pensar no que as mulheres que empreenderam as primeiras lutas feministas poderiam pensar sobre Sex and City 2. A revolução que elas preconizaram quis jogar o "ex-sexo fraco" dentro do sistema de trabalho e dos valores culturais dominados pelos machos. Sex and City 2 não apenas mostra como demonstra que a tarefa daquelas revolucionárias foi cumprida. Com a vantagem de que não há muros de Berlim para tombarem. As mulheres continuam a viajar, a fazer sexo selvagem, a comprar roupas caras e a trabalhar para pagarem tudo isto. O universo que nós temos é este e não há ninguém que queira mudá-lo. Os machos simplesmente entenderam a jogada. Fazem o jogo com algum prazer e muito cinismo.
"(...)a modernidade passou para uma velocidade superior em que tudo hoje parece ser levado ao excesso: são os hipermercados, o hiperterrorismo, as hiperpotências, o hipertexto, hiperclasses, enfim, o hipercapitalismo. O que isso significa? Que a modernidade não tem mais limites, não tem mais críticas fundamentais em relação a si mesma".
Estamos inseridos neste mundo onde a significação intrínseca das coisas é a própria coisa, o seu sabor imediato, o seu caráter hedonista e que se esgota com grande impacto e de forma instantânea. Os limites da modernidade inexistem e são transportados para o interior de cada ser. As personagens do filme nada mais são do que o espelho concreto (e ao mesmo tempo imaginário) da sociedade que vivemos. E se não vivemos ainda nesta sociedade, por quanto esta pode nos ser inacessível, há ainda a ambição e o desejo que podemos motivar dentro de nossa alma.
Sex and City 2 é uma aposta ainda mais ambiciosa na "coisificação" do espírito, na excessiva individualização da vida. Em certos momentos aquelas mulheres parecem estar reunidas para "curtir" juntas os prazeres de uma viagem exótica. Todavia, elas estão sós, sem maiores divagações coletivas e, de momento em momento, olham para os lados para verificar se o script da hipermodernidade está sendo cumprido: as roupas e bolsas da moda são oportunidade inequívoca de se afirmarem, os comportamentos tem de estar enquadrados em uma moldura, ao mesmo tempo, previsível e obrigatória. A realidade é esta e ponto final.
Os esterótipos são reais e efetivos: a viagem aos Emirados Árabes Unidos é a manifestação mais cristalina de tudo isto. Os árabes são travestidos de idiotas, o exótico é incorporado como se fosse um adereço e as personagens secundárias estão ali para servir aquelas moradoras de New York. O sexo oscila entre o comportamento falsamente moralista de Carrie (Sarah Jessica Parker) e a volúpia descabida e possível da personagem de Kim Catrall. Esta última já beira a menopausa, mas tenta conter o inevitável do tempo com suas 34 pílulas diárias de hormônios. Mais um pouco poderia engravidar, mas o que ela quer mesmo é o pênis alheio.
Tudo isto pode parecer novo, mas nem tanto é. William Shakespeare, já sentenciava na voz de Lady Macbeth na cena II de sua famosa peça:
" Nada se ganha e tudo se perde, quando nosso desejo fica satisfeito sem contentamento.Mais seguro é ser o objeto que destruímos, mais seguro do que habitar uma alegria duvidosa, construída pela destruição."
Não sejamos tão céticos ao assistir este filme. Incorporemo-nos por entre os objetos e nos deixemos consumir. Nem importa que Sarah Jessica Parker (Carrie) não seja tão deslumbrante (tem as pernas excessivamente tortas), que Cynthia Nixon (Miranda) esteja visivelmente acima do peso, que Kristin Davis (Charlotte) manifeste explícita masculinidade ou, até mesmo, a Kim Catrall (Samantha) seja apenas uma mulher ex-sexy e, até mesmo, meio caída.
Nesta infinita aparência do filme, podemos nos divertir e assistir os passos dos personagens que incorporamos na nossa própria vida. A produção bem acabada do filme, sem nenhuma invenção cênica ou estilística, nos dá a oportunidade de nos ocuparmos em desejar, e se pudermos, consumir tudo que lá está. (Atenção: o filme tem quase três horas!). Neste contexto, sequer a defesa das liberalidades hipermodernas tem conteúdo valorativo: o casamento gay, logo no início do filme, não passa de uma ocasião para revelar toda frivolidade vivente. O espetáculo da festa seria homofóbico não fosse tão sintonizado com a forma e a aparência hipermoderna. Os gays também são objetos de consumo.
Por fim, podemos pensar no que as mulheres que empreenderam as primeiras lutas feministas poderiam pensar sobre Sex and City 2. A revolução que elas preconizaram quis jogar o "ex-sexo fraco" dentro do sistema de trabalho e dos valores culturais dominados pelos machos. Sex and City 2 não apenas mostra como demonstra que a tarefa daquelas revolucionárias foi cumprida. Com a vantagem de que não há muros de Berlim para tombarem. As mulheres continuam a viajar, a fazer sexo selvagem, a comprar roupas caras e a trabalhar para pagarem tudo isto. O universo que nós temos é este e não há ninguém que queira mudá-lo. Os machos simplesmente entenderam a jogada. Fazem o jogo com algum prazer e muito cinismo.
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