Em Quarta-Feira de Cinzas o poeta anglo-americano T.S. Eliot nos recita por meio de uma bela poética (na tradução de Ivan Junqueira):
"Porque não mais espero conhecer
A vacilante glória da hora positiva
Porque não penso mais
Porque sei que nada saberei
Do único poder fugaz e verdadeiro
Porque não posso beber
Lá, onde as árvores florescem e as fontes rumorejam,
Pois lá nada retorna à sua forma".
A morte é uma das maiores angústias humanas e aquela que ao lado do amor mais foi e é revestida dos rituais humanos e divinos. Somente a morte contém a dicotomia daquilo que sabemos na plenitude - que vamos morrer - e o que nada sabemos - para onde vamos e por que morremos. Há uma combinação metafórica e real entre o nosso destino fatal e a completa ignorância factual sobre qual o caminho que tomaremos a partir de então.
O filme A Partida (Japão, 2008, dirigido por Yoshiro Takita, com Masahiro Motokim, Tsutomu Yamazaki, Kazuzu Yoshiyuki e Kimiki Yo) é ao mesmo tempo o clímax da morte e o seu anti-clímax, a escolha pela vida. Ao mergulhar no universo da morte por meio das cerimônias e os funerais, A Partida propõe uma saída para a fatalidade. Ao mesmo tempo nos deixa com a necessidade de fazer as escolhas que realmente importam.
Um violoncelista fica desempregado em função da dissolução da orquestra em que toca. Sabe de seu novo status depois de um concerto no qual respingaram as belíssimas notas da Sinfonia nº 9 de Beethoven e os versos cantados da Ode à Alegria (An die Freude) de Friedrich Schiller. Assim, o violoncelista se vê compelido a abandonar a carreira eventualmente promissora de músico e a arranjar um novo emprego. Uma mudança brusca de planos cujo saldo é um endividamento em função da aquisição de seu instrumento musical. Por meio de um anúncio de jornal, acaba por ir trabalhar numa pequenina empresa especializada em preparar cerimônias fúnebres. Ali, seduzido pelo salário atraente vê-se confrontado com os rituais de passagem da vida para a morte. Um ofício aparentemente sofrido e inquietante não apenas do ponto de vista pessoal, mas também pela ausência de prestígio social na nova profissão. Tem um mestre a lhe ensinar e uma esposa que oscila entre a recusa em aceitar a nova situação do marido e o amor abnegado por ele.
Há muita descobertas ao longo deste trânsito de atividade e profissão. Tudo muito longe das suas expectativas iniciais. Como sempre é.
O aprendizado mais custoso ao iniciado é aquele que ensina que não há pesar na morte. Ao contrário, pouco a pouco a leveza vai tomando conta dele na sua relação com a morte. Se há fato pesaroso a ser tratado e confrontado é a própria vida. A vida daqueles que ficam.
A certa altura do filme, seu mestre o convida a comer em sua casa. Em meio a deliciosa refeição ele diz que "para viver é preciso comer. E se é assim, melhor que seja algo saboroso." Deste diálogo muitas coisas confluem para a mente daquele que já não é um violoncelista. É preciso lidar com a brevidade da vida. Não apenas a brevidade temporal, mas a brevidade que os homens constroem para não gozar a plenitude da vida. Nas palavras de Sêneca: "Ocupam-se para poder viver melhor: armazenam a vida, gastando-a! Fazem seus planos a longo prazo; no entanto protelar é do maior prejuízo para a vida: arrebata-nos cada dia que se oferece a nós, rouba-nos o presente ao prometer o futuro."
Sempre percebi o cinema japonês como difícil de ser permeável e se fazer permeável às relações de diferentes culturas. Afora uns poucos e excelentes filmes nipônicos que pude assistir, falta ao cinema oriental em geral e ao japonês em particular a universalidade humana do cinema ocidental, sobretudo o europeu e norte-americano. Um visão pessoal, é claro. Todavia, A Partida consegue transpor ao mesmo tempo a intenção de ser inédito no seu argumento - coisa que não é - e a barreira cultural: o filme é universal, belo, delicado, suave e agudo. Tem uma fotografia exemplar e uma música que passeia com enorme cumplicidade com o roteiro.
Não há afetação na interpretação desta estória poética e o trabalho coletivo dos atores é brilhante - pouco importa o que se possa opinar sobre cada um deles.
Por fim, voltemos a morte e a superação desta. Não há segredos a compartilhar com um morto que é velado. Todavia, muitos de nossos segredos mais profundos se sobressaem quando estamos a velar os nossos amigos e parentes. A cerimônia do adeus a um morto, não é rito fúnebre no sentido lato de sua significação. É rito para a vida que nos pesa e a qual nos cabe libertá-la para o nosso bem e uso. A Partida nos ensina que quando dizemos adeus, estamos a dizer "até logo". Quando pensamos que tudo acabou, descobrimos que existe um recomeço a cada minuto que nos persegue. Resta saber se o tempo presente brevíssimo vale a pena ser vivido. Por nós mesmos. Como diz Eliot "nada retorna à sua forma".
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
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