Considero Asa Branca uma espécie de segundo hino nacional. A diferença é que no nosso hino a evocação sobre a a coragem ("...verás que um filho teu não foge à luta...") é uma presunção idealista à capacidade do povo perante um perigo imaginado. Asa Branca é um retrato verdadeiro, com as cores cinzentas do sertão nordestino, no qual o sertanejo em meio ao sofrimento, de fato não foge à luta. Ao contrário, promete vitória em uma luta que necessariamente terá de travar:
"Quando o verde dos teus óio
Se espanhar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei,
Viu, Meu coração"
O Baião merecia há muito tempo uma presença maior nos meios culturais brasileiros. O Homem Que Engarrafa Nuvens é um belíssimo filme sobre o Doutor do Baião, o cearense Humberto Teixeira, autor de Asa Branca, juntamente com Luiz Gonzaga, este o Rei do Baião. O filme é muito bem dirigido por Lírio Ferreira e a produção ficou a cargo de Denise Dumont, filha de Teixeira.
A certa altura do filme, Gilberto Gil diz que há dois gêneros musicais genuinamente brasileiros: o samba e o baião. Eis uma daquelas verdades que refrescam o nosso sentimento de brasilidade. Estas duas invenções antropológicas e musicais percorrem todo o território nacional, não são fenômenos regionais, embora as suas raízes estejam deitadas sobre o solo sagrado do sertão. De outro lado, tanto o samba quanto o baião são armas que temos para nos afirmar em meio à globalização cultural.
Humberto Teixeira foi aquele que teve não apenas uma cristalina percepção ideológica sobre o baião, mas soube traduzi-la em versos e música. Não era apenas douto, era igualmente um poeta que soube reconhecer no "caboclo de cara larga" Luiz Gonzaga um parceiro para toda a eternidade. No filme há um desfile de personalidades a falar (e cantar) Teixeira: de Elba Ramalho a Sivuca, passando por Gil, Caetano, Chico Buarque, Gal e, até mesmo o cansativo Zeca Pagodinho. Tal pluraridade é marca da universalidade e multifacetada musicalidade do baião. Não é algo ocasional.
O Homem Que Engarrafava Nuvens percorre o sertão de Iguatu, cidade cearense localizada no polígono da seca onde nasceu Humberto Teixeira. Neste polígono também fica Exu, cidade natal de Luiz Gonzaga. Como diz Teixeira, ele já nasceu em 1915 de frente para o Rei do Baião. O diretor Lírio Ferreira soube dar foco à essência da vida sertaneja: o calor infernal, o vaqueiro vaidoso com seu terno de couro, os sanfoneiros cegos (da fome e da doença infantil), dos rios secos e dos sonhos urbanos da migração. Todavia, a lente de Ferreira também nos leva à New York e nos surpreende ainda mais no que se refere à possibilidade e flexibilidade musical do baião. Tudo revestido de poesia e musicalidade de primeira.
Finalmente, há uma falha, a meu ver, grave no roteiro. Trata-se da abordagem sobre a intimidade de Humberto Teixeira. Lamentavelmente, sua filha Denise explora aspectos sobre o amor paternal de seu pai, bem como analisa o amor de Humberto por sua mãe Margarida que a certa altura da vida "fugiu" com Luiz Jatobá para longe do "machista" Doutor do Baião. Segundo a ex-esposa, ele a oprimiu e obscureceu a sua carreira profissional. (Humberto Teixeira ficou o resto de sua vida "em frangalhos" (palavra de sua filha) em função do abandono de Margarida e criou sozinho Denise, depois de conquistar este direito judicialmente). Pois bem: os depoimentos sobre este tema pessoal de Teixeira carecem de clareza para a audiência do filme na medida em que ele ficou "exposto" sem que houvesse maior rigor que permitisse investigar o "seu lado da história". Assim sendo, o filme desaba, mesmo que não de forma definitiva, para uma psicanálise mal conduzida e tendenciosa. Fosse levantado o tema, melhor seria abordá-lo com mais seriedade. Sem conhecê-lo e de forma apenas metafórica fico pensando se aquele duro sertanejo, nascido em 1915 (no ano da seca contada no livro de Raquel de Queiroz), não tinha dificuldade para jogar para fora o seu coração, assim como fazia nos versos musicais do baião. Suas dificuldades amorosas mereciam mais cuidado e menos psicanálise. Infelizmente, o Doutor ficou nu. E ninguém o socorreu neste belíssimo filme.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
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