Diz um ditado relativamente popular na América e no Reino Unido que "o diabo mora nos detalhes". Facilmente podemos parafrasear este adágio e analogamente dizer que a Justiça também repousa nos detalhes. Ademais, fazer a Justiça prevalecer é tarefa difícil e revestida de questões que vão muito além dos aspectos formais e ritualísticos contidos, por exemplo, na Ciência do Direito. O grande pensador e doutrinador austro-americano do Direito Hans Kelsen (1881-1973) afirma que "Se o direito for entendido e definido exclusivamente a partir das idéias de normatividade e validade, então seu campo nada tem a ver com a Ética." Portanto, há um campo autônomo do direito que pode inclusive contrariar a Ética e a Moral, muito embora esta distinção esteja relacionada apenas ao campo do estudo. Afinal, o direito não apenas se baseia na Ética e na Moral, mas tem por objetivo o exercício mais pleno possível da Justiça.
Some-se a idéia acima a reflexão de outro pensador alemão do Direito, Rudolf Von Inhering (1818-1892), que ensina que "o despotismo em toda a parte começou por ataques ao direito privado e violências contra o indivíduo." O direito é geral ("vale para todos"), mesmo que seja a partir do indivíduo. Dada a equação filosófica inversa o ataque ao direito do indivíduo é intrinsecamente o desmoronamento do Direito de toda a sociedade.
Pode parecer complicado quando percorremos o campo das idéias mais profundas do Direito e da Justiça. Todavia, cabe lembrar que no nosso cotidiano podemos ser dramaticamente afetados por estas premissas. Quando somos violentados em nossos direitos, vemos fenecer não apenas aquele direito, mas o direito de todos os outros indivíduos que sofreram (ou podem sofrer) esta mesma violência. Isto vale para uma condenação injusta, uma dívida cobrada injustamente ou a censura social ou individual por parte do Estado.
Pois é exatamente disto que trata o filme Doze Homens e Uma Sentença (The 12 Angry Men, EUA, 1957, dirigido por Sidney Lumet, com Henry Fonda, Martin Balsam, John Fiedler, Lee J. Cobb, E.G. Klugman, Jack Warden, Joseph Sweeney,Ed Begley, George Voskovec e Robert Webb). Neste teatro-cinematográfico, doze homens tem de decidir sobre a culpabilidade de um homem acusado de homicídio em primeiro grau e premeditado. Onze deles estão absolutamente convencidos de que o acusado merece a pena de morte na cadeira elétrica. Um deles (Fonda) tem dúvidas sérias sobre o caso. Para este último os fatos apresentados são apenas versões. Há os detalhes e é em cada um deles que mora o perigo de errar. É preciso estar certo da verdade. Na dúvida sobre esta verdade, a inocência deve ser presumida (In dubio pro reo). Aqui temos o primeiro paradoxo explorado no roteiro e na execução do filme: poderia na busca pela justiça apenas um homem estar certo e os outros todos errados? O filme não apenas mostra como demonstra que a maioria pode ser enganosa quando se está a tratar da busca pela Justiça ou outros valores sociais e individuais. Há um valor superior e absoluto na busca da verdade e isto é isento da necessidade de uma "maioria". A verdade pode ser improvável a priori. As aparências enganam.
Outro aspecto notável do filme é a sua visão sobre o caráter crítico e subjetivo de cada um. Todos nós somos fruto de uma história e carregamos conosco, princípios, preconceitos, visões e assim por diante. Dentre aqueles jurados há todo tipo de profissionais (corretor de bolsa de valores, relojoeiro, arquiteto, vendedor, professor de educação física, trabalhador braçal, etc.) e personalidades (agressivo, céticos, acomodados, preconceituoso, líder, ponderado, fútil, etc.). Como separar (ou considerar de forma ponderada) cada uma destas características no momento em que se decide sobre a vida de outra pessoa, no caso, um segregado social e marcado pela pobreza? Há de se notar que, para que o julgamento fosse válido, a unanimidade teria de ser alcançada entre aqueles doze homens. Neste contexto, portanto, o veredicto, deve ser fruto da visão coletiva e não da apreciação individual sobre o caso.
Fazer Justiça pode não ser ciência exata, mas para alcançá-la é preciso mastigar e mastigar as idéias, os fatos, os contextos, as contradições, as possibilidades e impossibilidades, as probabilidades e improbabilidades e, sobretudo, é necessário que haja "aproximação em relação ao réu (o outro)" de forma a que se possa compreendê-lo e, assim, contextualizar a eventual falta com a Lei. No filme, este processo apenas acontece por insistência do Jurado nº 8, o arquiteto Davies (Henry Fonda). Não fosse a sua obstinação pela exploração dos fatos, do contexto do réu, das eventuais falhas das testemunhas, os outros jurados não estariam dispostos a rever os seus pontos de vista. Tudo conspira contra o interesse do outro (no caso do filme, a vida do réu) quando o interesse de cada um (não necessariamente o seu papel de jurado) está em voga.
Há ainda outro detalhe que merece ser explorado: a presunção de inocência é sempre mais difícil de ser observada que a indicação da culpa. Aqueles homens no filme (e nós no nosso cotidiano) formamos uma idéia do "outro" (alteridade) a partir daquilo que conhecemos dele, o que pode ser mais ou menos abrangente. A nossa subjetividade aliena quando nos propomos a julgar o outro. De outro lado, a simples objetividade, nos escraviza perante os fatos sobre os quais conhecemos apenas as suas versões. Julgar, portanto, além de ser difícil é exigente de equilíbrio para eliminarmos o nosso "eu" e o "outro" das imediatas aparências que nos são colocadas à frente.
Doze Homens e Uma Sentença é um ensinamento sobre as fronteiras da Justiça e sobre o papel dos homens diante dela. O filme de Sidney Lumet (1924 - ) percorre as cenas desfilando conceitos, preconceitos e fatos e, ao mesmo tempo, desmoronando-os. Trata-se do primeiro filme deste excepcional cineasta que explorou em muitos outros de seus filmes (O Veridicto, Sombras da Lei, Sob Suspeita, apenas para citar três exemplos) os temas relacionados ao Direito, a Justiça e a ânsia que os homens têm pela Verdade, mesmo que ela não seja realizada plenamente.
Também parece-me que o filme de 1957 mostra que a intelligentsia de Hollywood já esteve em melhor forma. Naqueles anos 50, a América parecia mais preocupada com os valores fundamentais dos homens e a sua difusão social e política. Por agora, o cinema parece ter caído em larga medida na cilada do "politicamente correto" e uma relação canhestra com a reflexão de princípios e conceitos que não apenas guiam a sociedade, mas que a devem guiar.
Em Doze Homens e Uma Sentença o roteiro poderia ter se encaminhado facilmente para um desfecho rápido e óbvio. Não fosse por um homem empenhado na busca da Verdade (ou da ausência daquele verdade dos autos processuais), a vida de uma pessoa seria extinta. Assim como a vida se esvai nos dias de hoje quando a indiferença individual e coletiva prevalece e o direito e a justiça morrem.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
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Um comentário:
Excelente texto. Direito não é só normas, isso é menosprezar a complexidade humana (que é atingida pelas decisões do mesmo). A fuga do óbvio e conceitos pré-concebidos, a busca pelos pormenores e a psicologia humana é essencial na busca da verdade e consequentemente a justiça.
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